Estante

Capa AllendeAllende e as armas da política, do espanhol Joan Garcés, permaneceu inédito no Brasil pelo menos por dezessete anos, a despeito da importância desse livro.

É verdade que há uma vasta lista de obras sobre a experiência chilena, escrita por pessoas que viveram de perto aquela situação, algumas das quais do núcleo do poder. Contudo, a leitura do livro de Garcés é imprescindível, tal a clareza do autor ao construir coerentemente a estratégia político-institucional do governo e da Unidade Popular, bem como o fornecimento de informações que ajudam a esclarecer os dilemas vividos pela esquerda chilena.

Salvador Allende vence a eleição presidencial com 36,3% dos votos, derrotando o candidato da direita Jorge Alessandri (34,8%) e o candidato da ala progressista da Democracia Cristã, Rodomiro Tomic (27,8%). Nesse caso, não havendo vencedor com mais da metade dos votos, a Constituição chilena transfere para os deputados e senadores a decisão de eleger o presidente do país. Começa uma disputa direta pelo poder entre todo o bloco progressista, incluindo a esquerda da Democracia Cristã, e a direita que se apoiava nos Estados Unidos. Tratava-se de garantir a tradição do Chile em que o Congresso Nacional sempre referendava o candidato que tivesse mais votos, ainda que não alcançasse o quorum de metade mais um.

Ocorre que os Estados Unidos não aceitavam que o Chile fosse governado por uma pessoa abertamente marxista e apoiado por uma frente de partidos de esquerda que propunha um programa de transformações socialistas. Aliás, a vitória de Allende deixou a direita perplexa, tanto quanto a esquerda em todo o mundo, pois até aquela data só se tinha como verdadeiro o modelo russo de transição para o socialismo, enquanto que no Chile se chegou ao poder através de uma eleição democrática. A eleição de Allende abriu um debate sobre a questão democrática que perdura até os dias de hoje.

No entanto, a experiência chilena acabou tragicamente no fatídico dia 11 de setembro de 1973, quando o Palácio la Moneda sucumbiu ao bombardeio dos golpistas. Aquele dia apenas concretizou o golpe anunciado já na posse do novo presidente. Joan Garcés conta com detalhes a preparação do golpe final. Segundo ele quando Allende ganha a eleição, o presidente norte-americano Richard Nixon encomenda à CIA um golpe para impedir que o Congresso desse posse ao candidato eleito. Os Estados Unidos estavam dispostos a lançar mão de qualquer meio para proibir que um país da América Latina fosse governado pela esquerda. Moviam-se pelo medo diante da ameaça comunista, que está resumido em uma observação de um empresário italiano: "Se Allende vencer, e com Fidel Castro em Cuba, você terá um sanduíche vermelho na América Latina e, eventualmente, toda ela será vermelha".

A primeira tentativa de golpe foi pensada a partir da CIA com a anuência do então presidente do Chile Eduardo Frei, da Democracia Cristã. O plano ITT-CIA-Frei, como batizou Joan Garcés, consistia num boicote financeiro e em ações terroristas. O objetivo era criar um clima de terror para pressionar o Congresso a rejeitar o nome de Allende. Os Estados Unidos mandam um recado sem meias palavras, caso Allende assumisse o governo: "faremos tudo quanto esteja em nossas mãos para condenar o Chile e o povo chileno às maiores privações e miséria" (pág. 80). Enquanto isso o chefe das Forças Armadas era assassinado por grupos direitistas, fato que gerou uma grave crise política. A situação era tensa e imprevisível, mas o povo resistiu e a esquerda teve competência para articular o apoio do Congresso para o seu candidato. O golpe fracassou porque, como diz Garcés, "as condições objetivas do país naquele momento e a tática observada pela UP, bem como a ala esquerda do PDC, conseguem frustrar aquele plano" (pág. 134). Allende toma posse mas a situação só piorou até o golpe que o derrubou definitivamente.

A participação norte-americana nos acontecimentos chilenos ficou evidente em pelo menos quatro ocasiões antes do golpe: assassinato do ex-ministro democrata-cristão Pérez Zujovic em junho de 1971; reação direitista à presença no Chile de Fidel Castro, no começo de 1971; a primeira destituição pelo Parlamento de um ministro, em janeiro de 1972; desenlace do putsch preparado pela CIA e pelas empresas norte-americanas, em março do mesmo ano (pág. 137). Como a esquerda reagia à clara intenção de derrubar o presidente Salvador Allende?

Em primeiro lugar os partidos da Unidade Popular não tinham uma estratégia coesa para reagir às forças direitistas. Isto fica claro nos debates dentro do governo e dentro da UP. Enquanto a posição da maioria era atuar para fazer as mudanças estruturais, respeitando o estado de direito, uma parte considerável defendia uma ruptura revolucionária com o objetivo de implantar o socialismo. Além de setores do PS e do Mapu, também o MIR concordava (e agia) com essa posição. Segundo eles, "primeiro havia que destruir esse aparato de Estado, conquistar o poder para o proletariado e, depois, instaurar os mecanismos de planificação" (pág. 195). Portanto, não havia unidade numa questão central de disputa acirrada, a estratégia, sem o que dificilmente um governo pode dar certo.

A falta de unidade foi decisiva nos rumos do governo. No momento que a crise institucional atinge grande proporções em meados de 1972, Allende propõe uma saída ousada para a crise, que consistia em substituir as velhas instituições por outras novas. "No final de julho designou uma comissão de alto nível, integrada por destacados membros de todos os partidos da UP, para que estudassem a substituição das estruturas do estado por outras de caráter popular" (pág. 207). E assim foi feito. A comissão trabalhou vários dias e apresentou ao presidente uma proposta que sequer foi apreciada pelo Conselho Político da UP.

A direita foi criando as condições para derrubar Allende tanto no plano militar quanto no plano político. As Forças Armadas cada vez mais se distanciavam do governo, ao mesmo tempo em que o campo conservador ocupava espaço, principalmente depois que a ala progressista perde a disputa dentro da Democracia Cristã. Ou seja, a esquerda perde visivelmente a batalha política, abrindo caminho para a direita dar o golpe fatal.

Segundo diz Joan Garcés, "a direção política da UP e do governo, como conjunto, não tiveram visão política suficiente para isso, nem unidade tática e estratégica indispensável para encontrar a saída". "A contra-revolução encontrou, desse modo, uma brecha por onde penetrar em sua ação perturbadora, até aumentá-la de forma tal que derrubou toda a estrutura onde repousava a força das organizações populares e do governo" (pág. 208).

Se é verdade que a estratégia político-institucional foi derrotada, é preciso que se relativize a concepção segundo a qual o fracasso do governo se deve tão-somente a essa linha política. Joan Garcés brilhantemente mostra os limites do caminho pacífico para o socialismo, tal como ele se deu no Chile. Digo isto porque o processo chileno é usado para se criticar a via democrática e enaltecer a ruptura armada, sem se dar ao cuidado de analisar as condições objetivas e subjetivas em que ocorreu o governo de Salvador Allende. Para quem propunha a saída armada, Joan Garcés faz a seguinte observação: "a tática insurrecional alentada por um setor da esquerda foi sempre inviável na prática. As condições objetivas internas do país e o contexto internacional a condenavam irremediavelmente ao fracasso imediato" (pág. 229). Qual era a saída? A resposta a essa pergunta Garcés não nos dá, sobretudo porque não é a sua intenção. Por isso mesmo o livro é leitura obrigatória, induz o leitor a tirar suas próprias conclusões.

A experiência do governo Salvador Allende é também tratada em: Um rumor de botas, de Eder Sader; Dialética de uma derrota, de Carlos Altamirano; Transição, socialismo e democracia, de Sérgio Bitar; Transição ao socialismo, de Maurício Paiva; Os dois últimos anos de Salvador Allende, de Nathanael Davis.

Francisco Campos é secretário de Movimentos Populares da Comissão Executiva Estadual do PT/SP