Estante

Carlos MarighellaEm primeiro lugar, é preciso saudar o livro de Emiliano José como forma de restituir o lugar que Marighella merece, antes de mais nada, como brasileiro. O próprio Emiliano o entende como um passo fundamental, não somente no resgate dos principais fatos que marcaram a última fase do revolucionário e de sua morte, mas também como um patamar importante alcançado na conquista de sua memória legítima de cidadão, de político e de revolucionário. É uma contribuição importante para ajudar a recompor a sua figura de lutador no imaginário do povo brasileiro.

Todos que conheceram Marighella são unânimes em dizer que ele era um homem de coragem e audácia fora do comum! Não somente porque adotou a luta armada como forma de combate, nem apenas porque abominava a ditadura dos militares, mas por ser incorruptível e absolutamente determinado, por não ter jamais passado informações que levassem as polícias políticas das diversas ditaduras a prender companheiros seus, mas sobretudo por ter rompido com a política do Partido Comunista Brasileiro e adotado as relações e as posições internacionais do guerrilheirismo cubano, na intenção absolutamente obstinada de mudar radicalmente a estrutura do país. Em razão disto, Marighella foi jurado de morte pelos organismos de repressão. Tornou-se também o inimigo number one da CIA e de seus auxiliares no Brasil. A sua notoriedade como político que enfrentou a repressão dos anos 30 e do Estado Novo, a sua saída das prisões de Vargas para se eleger deputado federal, sua capacidade de romper mais tarde, em meados dos anos 60, com o legalismo e o pacifismo de Prestes e do PCB, sua participação na Conferência da Organização Latino Americana de Solidariedade e sua opção pela luta armada e pela guerrilha, transformaram-no na consubstanciação do famoso aforismo, lema de todas as polícias políticas do mundo: comunista bom é comunista morto. Portanto, como aconteceu com relação a Che Guevara, prender Marighella vivo seria um imenso incômodo para os aparelhos repressivos e para o Estado brasileiro.

Emiliano, ex-preso político que sofreu torturas nas mãos dos seus algozes, nunca conseguiu se desligar da história desse período e, assim como com o livro Lamarca, o capitão da guerrilha, escrito com Oldack Miranda, transforma o livro dedicado a Marighella num libelo antiditatorial.

Trata-se de um texto corajoso, escrito numa linguagem clara, às vezes coloquial, quase aritmética. Faz economia de arrodeios. Dá nomes aos torturadores, muitos dos quais, provavelmente, ainda estão vivos, escondendo-se da própria sombra. Nesse campo, alimenta a reflexão apenas pela enunciação de fatos.

A maior parte do livro se concentra na reconstituição da complexa rede de fatos e relações que explicam como Marighella foi emboscado e assassinado pelos agentes repressivos comandados pelo tragicamente célebre Sérgio Paranhos Fleury. Detentor de um aparelho repressivo dentro do aparelho maior, Fleury disputava com "outros" colegas as "honras" de assassinar o anjo doce do poema de Capinan. Mas além disso, o livro relata os acontecimentos ligados a uma verdadeira teia de pessoas que, presas ou não, tiveram alguma relação com a morte do político baiano. Nisso também ele age com coragem, responsabilizando, ou melhor, relatando o comportamento de alguns dos militantes políticos que estiveram ligados à "captura" do primeiro da lista. Estes militantes, a exemplo dos padres dominicanos e do hoje economista Paulo de Tarso Venceslau, após sofrerem bárbaras torturas, durante dias seguidos, terminam revelando involuntariamente a seus supliciadores, direta ou indiretamente, como chegar até Marighella. No livro de Emiliano, a responsabilidade imediata dos dominicanos parece serenamente aceita por eles mesmos. Este já não é o caso de Venceslau.

Debruçando-se sobre a história recente do Brasil, Emiliano não capitula diante de argumentos tais como o historiador não pode tomar partido. Procura esclarecer o grau de responsabilidade de cada um. O próprio Emiliano revela que existem controvérsias sobre o caso, mas aceita a hipótese de que Venceslau tem mais responsabilidades do que admite. Expõe esta idéia apoiado no depoimento dos dominicanos e de outros como Alípio Freire, na época companheiro e amigo de Venceslau. Não identifico no livro nenhuma vontade de estigmatizar esse atores históricos, mas talvez caiba a relativização conclusiva que parece ser a do próprio Emiliano, de que esses personagens não se tornaram traidores, colaboradores; mas vergaram na tortura. No caso dos padres e de Venceslau, após longos dias de sevícias indescritíveis! É verdade que o autor se estende talvez um pouco além da conta sobre essa passagem, tamanha a sua vontade, quase obsessiva, em esclarecer o emaranhado de fatos imediatos que desembocaram na morte de Marighella.

Marighella foi um furor de determinação. Após a sua captura pelos agentes dos golpistas em um cinema no Rio de Janeiro, em 1964, havia jurado que jamais seria preso ou torturado novamente. Ele também se recusou a sair para o exílio. Às vésperas da emboscada que sofreria em 4 de novembro de 1969, ao ser admoestado por companheiros da sua organização de que não seria aconselhável ir ao encontro que se revelou fatal, sobretudo em função das várias prisões ocorridas naqueles dias, ele se recusou de modo peremptório a dar-lhes ouvido. Emiliano também não poupa o seu protagonista de grande responsabilidade pela facilidade dada à repressão para matá-lo. O ponto ao qual Marighella se dirigiu já havia sido utilizado várias vezes por ele mesmo. Agiu assim em total liberalismo como se dizia naqueles tempos! O que fez com que Marighella agisse assim? Talvez uma de suas divisas ajude a conjecturar uma hipótese: ele gostava de dizer que não havia tido tempo de ter medo! Certamente ele estava mais que consciente de que muito provavelmente não sairia vivo daquela guerra. Muito embora seu maior desejo fosse escapar desse cerco, dele não conseguiu sair senão para ocupar seu lugar na história. Uma ironia dolorosa aparece para fazer pensar esse momento: Marighella tinha fixado para o dia 9 de novembro uma viagem dedicada a examinar as condições da implantação de uma guerrilha no campo. Ele queria fugir ao que chamava de cerco estratégico da ditadura.

Emiliano constrói sua narrativa partindo do assassinato de Marighella. O leitor é arrebatado pelo clima tenso daquele contexto e, como se estivesse lendo um romance policial, dificilmente largará o livro antes de vencer o primeiro capítulo. É o capítulo da morte. São os contatos na clandestinidade, as questões de segurança nas organizações, os esquemas dos pontos de encontro dos militantes, os cercos da polícia, os furos a estes, as fugas, os tiroteios, as prisões, o terror das torturas, a capacidade de resistir de alguns e as fraquezas de outros. Nessas páginas, o foco da narrativa se desloca do personagem central. Marighella paira como pano de fundo para dar lugar a cenários de medo, sofrimento, angústia, revolta, mas também de solidariedade, amizade, carinho e afeto, de vitórias e derrotas pessoais e coletivas, algumas momentâneas, outras definitivas. Tais acontecimentos são relatados de tal sorte que a imagem de Marighella aparece às vezes humana e às vezes mítica, como ele de fato pairava nas cabeças dos militantes, alguns muito jovens, ou na imaginação dos policiais. Dentre os participantes da emboscada (algo em torno de 45 agentes estiveram envolvidos na ação final), muitos acreditavam que Marighella era uma sorte de "deus do mal", que vestia calças carregadas de explosivos para impedir a sua captura de graça, tal qual os heróis anarquistas descritos por Victor Serge em Memórias de um revolucionário ou por Hans Magnus Enzensberger em O curto verão da anarquia. Não resisto aqui à tentação de parafrasear Victor Hugo, a partir de uma de suas imagens tão acertadamente recuperada pelo professor Antonio Candido no prefácio do livro: "Deus abençoa o homem, não por ter achado, mas por ter procurado". Marighella procurou acertar. Inclusive reatando com personagens dos anos 30 e que, desde então, dentro e fora do PCB, combateram os ditames da III Internacional. Por isso foram estigmatizados como inimigos da classe operária. Foram anarquistas, socialistas e trotskistas.

Foram várias gerações de militantes do PCB e de outras organizações que tinham uma admiração a toda prova por Marighella e por aquilo que nele, embora não suficiente, parece absolutamente necessário ao revolucionário: a coragem. Isso Marighella tinha de sobra e esta característica, junto com a ousadia do seu caráter, fizeram-no viver esses tempos, desafiando permanentemente a morte. Marighella encarnou mais do que ninguém, naqueles tempos, a aura do revolucionário cheio de experiência, quase infalível. E de fato ele tinha mais de trinta anos de experiência militando em situações adversas. Mas no relato, a imagem que nos aparece mais forte é a do último período, a do Marighella guerrilheiro, cansado de lutar sob a tática considerada reformista, conciliadora e legalista do PCB. Depois do golpe de 1964, questionado por Ana Montenegro sobre sua decisão, ele respondeu dizendo-se "cansado de ficar na praia esperando a onda". Contudo, mesmo nesse período, as suas antinomias fizeram com que ele continuasse acreditando na necessidade de uma etapa democrático-popular, anterior ao socialismo e em que o principal inimigo do povo brasileiro era o imperialismo americano. Não por acaso sua organização se chamava ALN (Ação Libertadora Nacional). Acreditava ainda na luta de uma suposta "burguesia nacional" que foi, de fato, destituída de qualquer veleidade política pela ditadura e, nos últimos tempos, pelo neoliberalismo.

Contudo, esta e outras questões são pouco exploradas no livro ou simplesmente não aparecem. A relevância de discussões como essas, acerca da natureza da revolução brasileira, e a participação de Marighella nesse processo não é o que prende o olhar de Emiliano. Dois terços do seu livro estão voltados para a última fase da vida desse baiano. Seu texto é direto, jornalístico. Uma reportagem biográfica, como ele mesmo a define. Historiadores zelosos, preocupados com tratamento de pé de página para cada citação ou depoimento, podem tirar o cavalinho da chuva. Filósofos da história, preocupados em tudo explicar de modo transcendental, não venham para esta praia. Biógrafos acostumados a dar tratamento psicológico a seus biografados, não alimentem ilusões nesse domínio. Tais perspectivas são formas de tratar a matéria histórica que não se coadunam com o espírito de Emiliano. Ele é voraz e tem pressa como o seu protagonista. Por isso escreveu o livro em três meses e provavelmente não esgotou todas as fontes que acumulou. Assim, muitas questões ficaram de fora do seu estudo ou foram abordadas rapidamente, tais como, por exemplo, a natureza do marxismo de Marighella, o balanço que este faz do stalinismo e do culto à personalidade, em especial depois da crise mundial do comunismo nos anos 500. Das questões-chave desse período, a que ele melhor esboça reside na demora de Marighella em romper com o PCB: desde 1948 suas divergências com Prestes e um setor importante da direção do partido vieram se acumulando.

No entanto, essas questões não são fáceis de serem respondidas. Contudo, elas precisam, pelo menos, ser colocadas com muita clareza. O fato de Emiliano ter optado por não construir uma narrativa cronologicamente linear pode ajudar a entender isso. Determinado a guardar a tensão inicial do livro, vira a cronologia histórica de ponta-cabeça. O tempo histórico é revolucionado com idas e vindas quase permanentes ao passado e ao presente. Mas isto não constitui um defeito. Trata-se da característica de um texto escrito em determinadas circunstâncias, com tempo e espaço delimitados e com objetivos previamente estabelecidos. A bem da verdade, os primeiros anos de seu biografado guardam linearidade na exposição. Mas são os únicos. De todos os modos, nós leitores, que gostaríamos de ter escrito o livro, já estamos contentes em ter podido lê-lo.

Jorge Nóvoa é professor doutor da UFBA e editor responsável da revista O olho da História.