Estante

Cisnes selvagensTodos nós, que amávamos a revolução, temos que ler Cisnes Selvagens, de Jung Chang. Seu impacto foi enorme na Europa, exatamente por ser um livro necessário. Se ele passou até agora relativamente desapercebido no Brasil, não deve ser por acaso. Deve ser porque ainda nos recusamos a abandonar nossos mitos.

Trata-se de uma leitura dolorosa, porque o tempo todo somos tomados por perguntas sobre nós mesmos. Como pudemos nos deixar enganar tanto, e durante tanto tempo? Como podemos admirar tão profundamente a Revolução Cultural chinesa, que humilhava velhos professores de barbas brancas, e levava ao suicídio militantes dedicados do Partido Comunista, que transformava jovens educados em imbecis raivosos e petulantes, que encobria através de uma onda de terror sofisticado, a incompetência e a senilidade de Mao Tsé Tung?

Mas, Cisnes Selvagens é, acima de tudo, uma narrativa fascinante e um modelo de pesquisa histórica. A autora, Jung Chang, chegou a pertencer à "Guarda Vermelha" enquanto seu pai, dirigente comunista, era levado à loucura pela Revolução Cultural. Com uma bolsa de estudos na Inglaterra, sob a evidente influência da nova literatura feminista, Jung Chang decidiu passar suas idéias a limpo, pesquisando a história de sua família como parte da história da própria China. Começou com a avó, Yu Fang, que aos 15 anos de idade, em 1924, foi obrigada por seu pai a casar-se com um "general-caudilho", que já tinha três outras mulheres. Esse era um tempo em que vastas regiões da China viviam sob o domínio de bandidos ou chefes políticos igualmente cruéis e corruptos. O avô de Jung Chang foi um deles. Esse era um tempo, também, em que as mulheres ainda eram obrigadas a esmagar e manter amarradas as articulações dos pés, para que seu andar fosse tão gracioso como o deslocamento dos cisnes nas águas de um lago tranqüilo.

Mas são dois protagonistas masculinos que mais se destacam na narrativa feminista de Jung Chang: o Dr. Xia, praticante da medicina tradicional chinesa, com quem a avó de Jung Chang casou-se depois de abandonada pelo "general-caudilho", e seu pai, o "camarada Wang Yu", um filho de pequenos fabricantes de tecidos que desde jovem se juntou ao Partido Comunista Chinês. Através de atitudes do Dr. Xia, um terapeuta competente que emerge como uma espécie de sábio, ou o "homem bom" da história, temos um retrato dos costumes e da moral, da importância da família como instituição básica da sociedade chinesa, durante toda a primeira metade deste século.

Através do pai, um amante de livros e do Partido Comunista, um asceta, que cumpria com rigidez monástica os preceitos e normas do partido, temos um painel sugestivo e emocionante do período, por assim dizer, construtivo da Revolução Chinesa, o período que começa com a Longa Marcha de 1934 e vai até a derrota de Chang Kai-Chek e a proclamação da República Popular da China, em 1949. Um período em que o movimento comunista coloca-se como única força capaz de derrotar a corrupção e o banditismo que haviam se apossado da China.

A personalidade de sua mãe, Bao Qin, não aparece com a mesma força e nitidez, apesar de sua história ser igualmente dramática - e com alguns lances tragicômicos. Bao Qin foi a filha de Yu-Fang com o tal "general-caudilho", e, como estudante, havia se engajado em algumas ações clandestinas nos últimos meses da luta dos comunistas contra os japoneses. Foi numa dessas ações que conheceu o futuro marido, "camarada Wang". Seu casamento "comunista", foi seguido de longas marchas, nas quais Wang, como oficial do partido, tinha direito a um jeep, mas não podia dar carona para sua mulher, já grávida, porque isso significaria nepotismo. Foi assim que Bao Qin perdeu o primeiro filho, num aborto provocado por um marcha estafante. Houve, também, longos intervalos de separação, determinados pelo partido. Antes de serem marido e mulher, eram quadros dirigentes, e tinham assim, que obedecer regras superiores.

Segundo Cisnes Selvagens, Mao Tsé Tung começou a fazer besteiras logo depois da vitória contra o Kuomitang. Especialmente depois da guerra da Coréia. Eu ainda me lembro da história das mini-usinas de aço chinesas, que nos eram apresentadas no Brasil como a mais humana e inventiva forma de industrializar um país como a China. Em Cisnes Selvagens esse episódio marca o primeiro grande fracasso da Revolução, pois, milhões de camponeses foram levados a abandonar suas lavouras, para catar lenha e produzir aço em mini-usinas. O plantio da safra de 1958 foi totalmente abandonado e seguiu-se a fome generalizada. As estimativas são de que 30 milhões de camponeses podem ter morrido, desnecessariamente, como resultado do "Grande Salto Para Frente" do Presidente Mao. Nessa época, a intimidação política, através de campanhas resumidas em slogans canônicos, torna-se um método estabelecido de dominação e controle político e social. É a campanha para "suprimir os contra-revolucionários", depois a campanha dos três "anti", e depois dos cinco "anti", até chegarmos à campanha diferente do "deixem que floresçam cem flores", em 1965. Infelizmente, quem caiu na besteira de se expor, acreditando na história das cem flores, acabou vítima da campanha seguinte, a mãe de todas as campanhas, a Revolução Cultural.

A Revolução Cultural é entendida como uma maquinação de Mao, para restabelecer um poder abalado pelo fracasso do "Grande Salto para Frente" e outros fracassos, e como uma operacionalização do profundo culto de personalidade, de caráter religioso, à figura de Mao.

Foi uma campanha ao mesmo tempo de jovens contra adultos, de arrivistas contra veteranos, de oportunistas contra ingênuos. Todos os maus espíritos escondidos no interior das pessoas, adormecidos na fase da luta contra o Kuomitng, despertaram e correram soltos durante a Revolução Cultural.

O pai de Jung Chung é uma das vítimas. Obrigado a centenas de autocríticas kafkianas e intermináveis, preso, humilhado, desterrado, acaba por enlouquecer. A mãe também é submetida a humilhações e privações. Ao ponto de ousar dirigir-se a Pequim e apelar diretamente a Chu En Lai.

Um pequeno detalhe foi o que mais me chamou a atenção nessa parte do relato, um aspecto de rito da Revolução Cultural e do PC que tem muito a ver com o nosso PT, e que nos ajuda a entender uma das facetas do nosso partido. Trata-se do seguinte: durante todo o processo de perseguições, prisões e castigos a que a família foi submetida pela Revolução Cultural, Wang perdeu todos os seus cargos, mas nunca foi despojado de seu status, de membro do Partido Comunista, e membro dentro de uma faixa hierárquica bem determinada na nomenclatura partidária. Seus salários nunca deixaram de ser depositados na sua conta bancária e seu direito de morar no conjunto habitacional dos dirigentes do partido nunca foi cancelado (justamente por pertencer ao partido, o camarada Wang foi submetido a tanta humilhação). O status da mulher, Bao Qin, era menos nítido porque ela só foi admitida muito tardiamente no partido, e nunca ficou plenamente estabelecido que sua lealdade ao comunismo era total.

Com toda a carga crítica, Cisnes Selvagens não é um livro de ressentimentos e sim de sentimentos. Não é um livro "anticomunista", na linha do conhecido O Deus que falhou, pós-Muro de Berlim, que faz a exegese de um dos mais impressionantes processos revolucionários deste século. Não vá à luta sem ele.

Bernardo Kucinski é jornalista e membro do Conselho de Redação de T&D.