Estante

capa Com palmos medidaSão bastante conhecidos os versos pungentes de João Cabral de Melo Neto, ao se referir ao pedaço de terra que cabe ao homem nordestino, há séculos espoliado pelos coronéis e latifundiários de sua região:

Essa cova em que estás, com palmos medida,

é a conta menor que tiraste em vida.

É de bom tamanho, nem largo nem fundo,

é a parte que te cabe deste latifúndio.

Esses versos, do auto de Natal Morte e Vida Severina, serviram de inspiração para o título de um livro extraordinário, lançado recentemente pela Boitempo Editorial e pela Editora Fundação Perseu Abramo, com prefácio de Antonio Candido e ilustrações de Enio Squeff. Trata-se de Com palmos medida: terra, trabalho e conflito na literatura brasileira,de Flávio Aguiar, que é romancista, crítico literário e professor de literatura brasileira na Universidade de São Paulo.

O livro é uma extensa antologia de textos representativos de todas as épocas da nossa literatura, desde a "Carta" de Pero Vaz de Caminha até a obra de João Ubaldo Ribeiro, entre outros contemporâneos. São trechos de romances, fragmentos de memórias, crônicas de viajantes europeus,contos e poemas, toda uma literatura, enfim, que coloca o leitor diante de uma realidade incômoda, tão bem descrita por Antonio Candido: "No país imenso, homens espoliados passam nessas páginas privados da terra e dos mínimos vitais, oprimidos pelas diversas formas da prepotência, tratados freqüentemente como se fossem solo e mato, não seres humanos iguais aos que os oprimem e contra os quais por vezes se revoltam”.

Nada menos que 63 textos compõem a antologia, o que torna impossível, no espaço de uma resenha, fazer um comentário que contemple todos eles. A título de informação para o leitor, faço uma breve descrição das sete partes em que o livro está dividido.

A primeira trata do período colonial, dos séculos XVI e XVII, ou seja, dos tempos da conquista e da ocupação da terra, com destaque para textos de Pero Vaz de Caminha, Padre José de Anchieta, Pero Magalhães Gandavo e Padre Antonio Vieira.

A segunda, intitulada "O século das luzes" apresenta os autores brasileiros que no século XVIII se preocuparam em incorporar a terra como tema da literatura, o que ocorre principalmente com os poetas árcades Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Basílio da Gama e Alvarenga Peixoto. Mas o texto mais interessante traz a assinatura de Antonil, autor de Cultura e Opulência do Brasil, do qual foi aproveitado um excerto que trata da relação do senhor de engenho com os escravos.

Na seqüência cronológica, vem em seguida um conjunto de oito textos do século XIX, dos quais vale destacar os três primeiros que trazem a questão da escravidão ao primeiro plano. São eles: Os homens como nós, de José Bonifácio de Andrada e Silva; A Sentença, poema de Fagundes Varela; e Tragédia no Lar, poema de Castro Alves. O abolicionismo como tema aparece ainda no trecho de memórias de Joaquim Nabuco, Massangana. Os demais textos desta parte descrevem a ocupação e o trabalho com a terra nas regiões Norte e Nordeste do país, com trechos de obras de José de Alencar, Franklin Távora, José Veríssimo e Manuel de Oliveira Paiva. Em termos especificamente literários, trata-se do nascimento da literatura regionalista em nosso romantismo e seu desenvolvimento no realismo.

Os autores regionalistas, aliás, ocuparão um bom espaço da quarta parte da antologia, dedicada aos primeiros tempos da República. São treze textos, em que as transformações pelas quais passa o país, com o fim da escravidão e a imigração européia, são registradas ao lado dos velhos problemas relativos à terra, que permanecem em regiões mais pobres, como o interior nordestino. Nesse sentido,avulta na antologia a descrição que Euclides da Cunha faz do sertanejo, na obra Os sertões. Há também escritores notáveis, como Machado de Assis, Lima Barreto e Simões Lopes Neto. E vale mencionar ainda o belo conto de Monteiro Lobato, Café! Café!, que tematiza a crise da economia cafeeira em São Paulo.

"Os modernistas e a literatura da década de 1930". O conjunto de dez textos que compõem esta parte do livro traz uma boa amostra da melhor literatura do período. Escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz,José Lins do Rego, Jorge Amado e outros trazem em suas obras tanto as marcas da renovação modernista quanto a preocupação com os temas sociais. Eis como Flávio Aguiar resume as características dessa literatura que se politiza cada vez mais: "De Norte a Sul as páginas literárias cobrem-se de migrantes deserdados tanto pelas relações sociais iníquas como pela natureza adversa, no caso do Nordeste. Há um olhar crítico que se afirma sobre os processos de modernização das fazendas e das relações de trabalho no campo, que geram novas exclusões e problemas".

 De certa forma, toda a literatura brasileira de cunho social e crítico que surgiu a partir dos anos 50 inspirou-se nos escritores da década de 30. Há uma tomada de consciência do nosso estado de subdesenvolvimento, de suas causas mais profundas, da dependência, enfim, que faz de nossa vida econômica um mero apêndice do então chamado imperialismo americano. Boa parte da literatura brasileira torna-se explicitamente engajada, apresentando denúncias das desigualdades sociais, da miséria e da exploração do homem do campo. A sexta parte da antologia traz textos pungentes, como o João Boa-Morte, cabra marcado para morrer, de Ferreira Gullar, ou o Canto dos Palmares, de Solano Trindade, além de um excerto de Morte e Vida Severina. Comparecem ainda escritores importantes como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Érico Veríssimo, José J.Veiga e Antonio Callado, entre outros.

A última parte do livro cobre o período que vai "do auge da ditadura ao seu declínio". Ou seja, aqui estão presentes os escritores que, de alguma forma, registraram os problemas provocados pelo modelo econômico altamente concentrador de renda. A literatura enfoca os novos marginalizados, não só no campo como na cidade, bem como o novo tipo de excluído que surgiu: o sem-terra, que não quer migrar para a cidade e que inicialmente se assenta no corredor, isto é na faixa de terra entre o asfalto das estradas e a cerca das propriedades. Leia-se o belo texto de Murilo Carvalho, que encerra a antologia e trata desse assunto. Outros autores importantes arrolados nesta parte são Ariano Suassuna, Ivan Ângelo, Darcy Ribeiro, Márcio Souza, João Ubaldo Ribeiro e Luís Antonio de Assis Brasil.

 Duas coisas ainda podem ser ditas a favor desse livro. A primeira é que Flávio Aguiar fez uma seleção rigorosa dos textos, não só do ponto de vista do conteúdo crítico, mas principalmente de seu valor estético. A força dessa literatura está na maneira pela qual o conteúdo ganha forma artística. É esta que nos encanta e comove e nos faz solidários com o sofrimento dos nossos irmãos brasileiros. A segunda diz respeito ao próprio autor. Só um intelectual com o perfil de Flávio Aguiar poderia ter pensado neste livro. Seu passado de militância política nos anos 60, no movimento estudantil; sua atividade jornalística na imprensa alternativa dos anos 70, nos jornais Movimento e Em Tempo, tão visados pela ditadura; sua militância dentro da universidade, nos anos 80, que o levou à presidência da Associação dos Docentes da USP e à diretoria da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior; a assessoria prestada à CUT nas questões de educação;a candidatura a deputado federal pelo PT, em 1994, tudo isso somado revela o caráter de um intelectual de aguçada consciência crítica, atento às questões vitais de seu tempo e sempre disposto a debatê-las. Ressalte-se, pois, para terminar, o conceito de literatura que o orientou ao organizar este livro: "Uma derradeira observação: vista de modo amplo, em suas lacunas e realizações, nossa literatura é de testemunho - em favor dos aspectos positivos da civilização e de crítica contra a barbárie que o processo civilizatório ainda leva consigo. Dela emana um empenho ético, de raiz humanista, que pode ser objeto de discussão, mas nunca de renúncia".

 João Roberto Faria é professor de Literatura Brasileira na FFLCH/USP