Estante

Comunicação digitalAfinal, o software livre muda o capitalismo?

A pergunta é filhote de uma discussão ainda mais ampla: é a tecnologia que conduz o homem do reino das trevas à imensa luz da civilização? A técnica é mãe da História? E se não existir mais história com h, qual o sentido maior de tanta tecnologia?

São discussões que nos afligem, ocidentais, pelo menos desde a Grécia antiga. Os orientais acharam formulações menos trágicas para esses dilemas, aprendendo muito cedo (há milênios) a combinar sempre o yin-yang, o pensamento e a prática, a técnica e a arte, o ser e o não-ser no tempo e na poesia.

Marx deu à técnica um papel muito privilegiado no processo de “evolução das forças produtivas”. Resta saber o que significa essa evolução, alertava o economista-filósofo, se as relações sociais de produção resultarem na distribuição desigual dos frutos da própria evolução tecnológica.

De novo, a contradição. Entre capital e trabalho, mas também entre tecnologia (forças produtivas) e sociedade (relações sociais de produção). A síntese? A construção de um outro futuro, em que a força e a socialidade pudessem coexistir mais harmoniosamente.

A síntese pós-revolucionária, no entanto, nem sempre saiu conforme o imaginado (e bota imaginação nisso!). Em geral, um dos “lados” acabava levando a melhor – às vezes a força, a tecnologia, o controle, noutras vezes a invenção, a inovação, a mudança cultural e a emancipação do ser humano, com graus variados de controle sobre indivíduos e coletivos.

Em alguns momentos, os dois lados da mesma moeda, a história econômica, pareciam fulgurar igualmente, projetando sobre o futuro uma inevitabilidade do progresso. Momentos mágicos de desenvolvimento tecnológico e ao mesmo tempo social, como o Brasil dos anos 50 com Juscelino Kubitscheck. Ou como o longo ciclo de expansão da economia mundial no pós-guerra, animada pelo extraordinário avanço tecnológico produzido por duas guerras mundiais seguidas, mas posto a serviço da democracia, da repactuação de sistemas coloniais e da criação de novas utopias, das quais a mais interessante e que chegou à minha geração foi a dos rebeldes de 1968, alegres netos da bomba atômica.

A principal decorrência direta do sucesso tecnológico ocidental que responde pelo seu predomínio em escala planetária foi o surgimento da indústria eletroeletrônica ou dos sistemas de informação. Games e outros softwares são produto direto da Guerra Fria. Entre os cálculos para criar uma nova bomba ainda mais potente que a anterior e um show do Grateful Dead, sobrava um tempinho para bolar sistemas que eventualmente teriam fins pacíficos ou de mero entretenimento. A cultura digital é um spin-off do complexo militar-industrial e, talvez, a sua face “yin”.

Afinal, o software livre muda o capitalismo?

Em Comunicação Digital e a Construção dos Commons, as dificuldades de lidar com a globalização começam pelo título, que inclui uma palavra em inglês – commons. Já começa daí a questão crucial, para o tema do próprio livro, a saber: em que medida temos controle sobre nossa própria linguagem, nossa capacidade de expressão e representação? Por que é mais fácil indicar um “commons” na língua inglesa em vez de assumir de vez uma opção lingüístico-filosófica, por exemplo, assumindo-nos como “coletivos”? Mas o diacho é que realmente o tal do commons vai além do coletivo, está mais próximo da anarquia de direita ou eventualmente de uma versão soft do socialismo libertário. É também uma visão que de fato se afirmou com muita intensidade em solos de fala anglo-saxã, em que o associacionismo, uma espécie de hipervalorização de valores comunitários (a pequena cidade no interior formada por herdeiros de pioneiros, o chamado evangélico para a ação em favor de si e do próximo), ganhou força e animou em alguma medida a própria Independência americana e os sonhos de uma vida de liberdades civis.

Nesse sentido, faz mais lógica ver o software livre como um produto do capitalismo que se transforma por outras razões, pois evidentemente há mais nos commons que a história local do desenvolvimento social norte-americano. Ao apontar para uma agenda em que se colocam em primeiro plano as redes virais, a abertura do espectro eletromagnético e as novas possibilidades de regulação na economia, no direito e na cultura, nossos autores brasileiros conseguem a proeza de nos esclarecer, mesmo sem traduzir o tal do commons na capa, que acompanhar esse movimento é uma condição crucial para nos mantermos devidamente conectados ao desenvolvimento capitalista. E mais, justamente por envolver a dimensão da regulação, Gindre, Brant, Werbach e Amadeu nos chamam a atenção para a oportunidade histórica, diante de nossos olhos e teclados, de participar do design desse capitalismo digital que emerge do ciclo guerreiro do longuíssimo século 20.

Mas não adianta esperar o 21, é preciso fazê-lo (sem fazer marketing de operadora de telefonia). Heidegger, um desses pensadores limítrofes que no final caíram na esparrela totalitária, abriu na passagem do século 19 para o 20 a questão do ser diante da tecnologia para o horizonte da linguagem.

Ao colocar em cena esse terceiro elemento, a comunicação, o software livre e todo o conjunto de temas que interessam para a governança da internet nos levam a tomar consciência de uma história que não é dialética, mas trialética ou triádica: o ser e a tecnologia (as “coisas”) fazem sentido apenas se nos comunicamos sobre elas e com elas.

A coletânea publicada pela Fundação Perseu Abramo traz ainda uma pérola, que é o texto de Yochai Benkler “A economia política dos commons”. Aliás, ao longo de 2007 ocorre, no Instituto de Estudos Avançados da USP, um ciclo de debates sobre a obra desse hacker da economia política que conta com a participação de Sérgio Amadeu da Silveira, que nesse livro contribui com texto atual e de leitura urgente sobre redes virais e espectro aberto. Os interessados na economia política do Linux não podem perder de vista as idéias de Benkler (o ciclo terá transmissão ao vivo pela internet).

A filosofia por trás da economia política dos commons é a de que somos capazes de operar os ícones que nas várias linguagens desenham espaços de negociação de nossas relações sociais. Essa é a saída para escapar da velha sanha humana de resolver tudo pela força (e pela tecnologia proprietária).

É preciso força, sim, domínio das forças da natureza, mas a conversão dessa potência em inovação social depende de nossa capacidade de simbolizar, codificar, operar e criar nossas próprias imagens, identidades, códigos e utopias. Utopias que, como o commons, podem dialeticamente se universalizar.

Gilson Schwartz é economista, sociólogo e jornalista, lidera o grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento, criado no Instituto de Estudos Avançados em 1999 (www.cidade.usp.br). É professor de Iconomia no Deptº de Cinema, Rádio e TV da ECA-USP e blogueiro da revista Época Negócios (www.epocanegocios.com.br).