Estante

Um pequeno e assombroso romance. Noir, talvez.

Nada na narrativa é totalmente inverídico – isso está registrado. Você é envolvido pela história, mergulha nela se por acaso debruçar-se sobre as primeiras linhas.

Manfredini, já experimentado escritor, e de sobra jornalista dos bons, abre o romance com a protagonista atirando – o seu lead para recuperar jargão jornalístico.

Três tiros na cabeça do rapaz. Ele, na cama de um hospital. Ele, filho dela, nem chegado aos 20 anos. Ao sentir o filho asfixiado com o próprio sangue, Marília dá mais dois tiros, e volta para a poltrona. Encosta a arma na testa, e puxa o gatilho.

Essa abertura dá a noção da intensidade do livro. Intensidade a percorrer cada página, a arrastar o leitor numa viagem frenética, de modo a entender a loucura de tudo aquilo.

É um mergulho no labirinto das zonas sombrias da alma humana. Mulher bela e sedutora. Incrivelmente culta. Mãe. Fez do filho a sua maior obra. Trouxe-o para o colo, manteve-o assim até o momento dos três tiros.

Formou-o. Das ciências biológicas às humanas, o menino tudo aprendeu. Contemplava o filho como a criação suprema dela. Saído do próprio ventre, a ela cabia dele cuidar. Todos os dias da vida, desde o nascimento, dedicara-se a esculpi-lo.

Nunca deixou fosse à escola. Ela foi mestra do menino, em tudo. Queria-o culto e brilhante. Extensão dela.

A casa, o laboratório para fazer medrar a obra-prima. Inebriava-se ao vê-lo declamar Goethe. Declamar em alemão. Era seu indizível orgulho, aquele rapazinho de 12 anos declamando Goethe em alemão.

O menino, o rapaz, quando se defrontava rapidamente fosse com o mundo externo, queria logo voltar à casa, ao útero. E ela, a cada volta à casa, feliz. Tinha-o para si.

E quando ocorrem os graves problemas de saúde do filho, vai percebendo a obra se esvaindo, escapando. E decide então matá-lo. Para livrá-lo do sofrimento e porque o objetivo da vida dela, erigir um ser perfeito, culto e belo, não mais era possível. E também como complemento acabar com a própria vida, agora sem sentido.

Para que viver se a extensão dela se fora, se perdera? Tentou na primeira vez. Fracassou, no hospital. Mas, em outro momento, à espera do julgamento, dá fim à vida, com um tiro na têmpora.

Sugiro fortemente a leitura.

Fiz apenas provocações, esperando tenham a capacidade de chamar leitores.

Sei das raízes onde ele foi buscar inspiração, tenho consciência de nada ali ser totalmente inverídico, como revelado na orelha da publicação.

Me impressiona a construção de Manfredini, a capacidade de moldar personagens. Como a vida, personagens complexas. Marília e os perturbadores demônios dela, capaz de contaminar o ambiente em torno, levá-los a outras pessoas, perturbá-las gravemente.

Não apenas ao filho, a quem se pode dizer um ser inteiramente dominado, sujeitado à tirania dela, incapaz de perceber tal tirania, quem sabe uma servidão voluntária, construída. Uma rica, riquíssima personagem, fruto do talento do autor, capaz de beber em fontes da realidade, como toda boa literatura, e transcendê-la.

Boa literatura.

Cabe refletir, e o livro chama a isso: qual a força maligna do amor obsessivo de mãe?

Que mal podem fazer as mães superprotetoras, aquelas a pretender cercar a cria, acariciá-la sempre, a cada momento, não deixar que se submeta aos rigores do mundo, e ainda querer que seja um ser especial? Só possível se ela cuidar dela, da cria, sem deixar ninguém mais intrometer-se?

Os demônios de Marília H não são tão incomuns. Estão à solta. Podem não chegar, e a maioria não chega, aos extremos de Marília. Mas, como Marília, atormentam a cria, ou as crias, sem perceber o efeito do maligno amor, aquele do abraço para sempre, capaz de impedir o voo livre e incapaz de perceber como os demônios agem, porque agem no submundo, a partir do inconsciente.

Essas mães estão por aí, em torno de nós, gente do bem. Como quem só quer proteger a cria. Dentro delas, os demônios. Incomoda ler isso, sei. Afinal, mãe é mãe – não é assim o senso comum?

E incomoda muito, a leitura do livro sobre os demônios de Marília H. Um certo mal-estar. Nos leva a Freud e ao mal-estar na civilização, mal-estar agravado nos dias atuais – quem há de negar ser Bolsonaro um sintoma desse mal-estar, a revelar a existência de tanta gente pronta a aceitar a barbárie, o negacionismo, a homeschooling?

Marília H nos deu a lição dos resultados da homeschooling.

Incomoda, o livro de Manfredini. Atormenta. Pode fazer perder o sono. Por penetrar em zonas sombrias, e volto, zonas sombrias tão perto de nós, no nosso cotidiano, e reveladas também nos movimentos da sociedade.

Como não lembrar a intentona golpista de 8 de janeiro, com exemplos evidentes do dito mal-estar da civilização brasileira? Quantos monstros afloraram ali?

Os demônios de Marília nos incomodam. Porque pertos de nós, esses demônios, vade-retro. O livro nos lembra de tais existências. Não estão lá na rua. Convivem conosco – esse é o grito do livro de Manfredini.

Mas a que serviria a literatura não fosse para incomodar?

São bem-vindos, os demônios de Marília. Nos acordam para o submerso. Nos revela a existência desse mundo. Nos convida a compreendê-lo. A nos cuidarmos face a ele. Se conseguirmos.

(Não posso ignorar o fato de Manfredini dedicar o livro a um querido amigo comum, memorável companheiro de lutas, José Carlos Zanetti, com quem compartilhei prisão na Bahia, falecido em março de 2022, uma justa homenagem).