Estante

Diante da dor dos outrosSusan Sontag retoma um tema que lhe é caro e ao qual dedicou há um quartel de século o livro Sobre a Fotografia

Discurso conciso, argumentos cerrados e erudição – no presente caso, começando por Platão – tornaram-se suas marcas registradas. Debruça-se agora sobre uma investigação cheia de riscos: que sentido pode ter a multiplicação das imagens do horror que nos acossam via jornal, televisão, cinema, tela do computador?

Admitindo em nós um lado turvo que fica fascinado, examina diversas instâncias, cogitando se o excesso de exposição visual pode despertar a indignação ou, ao contrário, incitar à reprodução de atos de violência (tão prestigiados pela cobertura midiática). Ou então, em alternativa talvez ainda pior, anestesiar.

Ela sabe do que fala. Dissidente tarimbada, afora tomar posição contra a invasão do Iraque, o que lhe valeu a impopularidade em seu país, apóia a causa palestina, esteve no Vietnã e passou uma temporada em Sarajevo. Nos escombros da cidade sob fogos cruzados, dirigiu a encenação, mais do que oportuna, de Esperando Godot, de Beckett.

Material para reflexão não falta. O ponto de partida é dado pelos célebres desenhos de Goya Os Desastres da Guerra, que registram as atrocidades cometidas pelas tropas francesas quando da invasão da Espanha, em 1807. Recente mostra nos Estados Unidos serve-lhe para meditar sobre o resgate de velhos álbuns, então vendidos como suvenir, com retratos de restos humanos que sobraram de linchamentos de negros. Como a técnica da fotografia é moderna, as mais antigas provêm da Guerra da Criméia e de Secessão. As duas conflagrações mundiais do século XX produziram farta iconografia, sobretudo no que se refere aos campos de concentração e extermínio nazistas.

Mas data praticamente de ontem a abundância, decorrente de surtos de beligerância em Ruanda e Serra Leoa, ou como aquele que jogou uns contra outros sérvios, bósnios e croatas, ocupando a década de 1990 e ensangüentando a ex-Iugoslávia. Acrescente-se o interminável dissídio entre Israel e Palestina, similarmente acirrado nos últimos anos, bem como o atentado ao World Trade Center. E aqui o livro chama a atenção para a censura sem frinchas que funcionou como cortina indevassável, de tal modo que ninguém viu fotos de um cadáver sequer, todos os 3 mil escamoteados num golpe de prestidigitação sem paralelo.

Outra área que o livro aborda é a dos crimes aliados durante a Segunda Guerra. Pondera sobre as imagens humanas das seqüelas do lançamento das duas primeiras bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, nos últimos dias da guerra, quando o Japão já estava de joelhos, que incineraram mais de 100 mil pessoas em segundos. Até hoje paira a suspeita de que a tentação de testar uma arma de efeitos até então desconhecidos sobre gente de verdade foi irresistível, sobrepujando a lógica bélica. Menos divulgado é o bombardeio de saturação de Dresden, na Alemanha, na noite de 13 de fevereiro de 1945, portanto também nos estertores da contenda e sem objetivos militares, matando 30 mil civis e arrasando a jóia barroca da Europa Central, cuja reconstrução só agora chega a termo.

Ao longo de trinta anos de carreira, Susan Sontag destacou-se por escrever livros importantes, lidando com áreas difíceis de circunscrever. Sua obra, além de crítica literária e dramaturgia, inclui romances, como O Amante do Vulcão ou Na América. Mas é no ensaio que sua garra se mostra mais marcante. No memorável A Doença como Metáfora, mergulhando na experiência pessoal, erradicou passo a passo as superstições e preconceitos que envolvem atualmente o câncer e no passado a tuberculose. Assim, mostrou como as tera-pias servem sobretudo para culpabilizar a vítima, fazendo-a responsável por seus males, suscitando sentimentos de auto-rejeição e de punição merecida, resguardando a incúria da medicina e de seus praticantes. Completou-o mais tarde A Aids e Suas Metáforas, assunto que ou soçobra na mudez, ou se beneficia de eufemismos, tão penoso é de encarar. O presente livro confirma suas qualidades, das quais não é a menor o exercício da faculdade de pensar com dignidade e brio alguns dos intoleráveis nós górdios que nos confrontam.

Em entrevista à BBC, a ensaísta declarou recentemente que a eleição do presidente Lula, a quem conhece pessoalmente e de quem é fã, enche de esperança um mundo conflagrado. São palavras revigorantes, que merecem acolhida redobrada, vindas de quem vêm.

Aos 70 anos, chegam-lhe finalmente galardões de todos os lados. Afora o National Book Award norte-americano, recebeu o Jerusalem Prize, o Prêmio da Paz conferido uma vez por ano pela Feira do Livro de Frankfurt e o Príncipe das Astúrias, da Espanha. Por ocasião da cerimônia de entrega deste último, o presidente Lula, também premiado, discursou defendendo a distribuição da riqueza no planeta, conquistando mais uma admiradora.

Walnice Nogueira Galvão é crítica literária e integra o Conselho de Redação de Teoria e Debate