Estante

No último dia 16 de fevereiro, dom Pedro Casaldáliga completou 90 anos de idade. Em todo o país, a vida e o pensamento de dom Pedro foram celebrados nas comunidades eclesiais de base e pastorais sociais com intensidade. Trata-se do último grande representante vivo de uma geração de bispos, arcebispos e cardeais, que por mais de vinte anos representou nacional e internacionalmente a experiência da Igreja do Brasil e da América Latina de compromisso com os pobres, a expressão mais conhecida da Teologia da Libertação.

Forjada num período histórico de ditaduras militares e plena inserção do Brasil e da América Latina num projeto subordinado ao imperialismo e às elites locais a ele associadas, essa geração de pastores tinha em comum um perfil que associava grande envergadura moral e intelectual, coragem e desassombro pastoral e espiritualidade encarnada. Dom Pedro, hoje convivendo com o “irmão Parkinson”, é um ponto de referência fundamental desse período de nossa história em que presos e perseguidos políticos, negros, indígenas, camponeses, operários e lideranças de movimentos populares tiveram na Igreja Católica uma aliança fundamental para enfrentar a ditadura militar e a opressão política, a exploração econômica e o preconceito discriminatório impostos pelo regime.

No final do ano passado, o primeiro aniversário de morte de dom Paulo Evaristo, cardeal Arns, arcebispo emérito de São Paulo, falecido em 14 de dezembro de 2016, teve igual reverência. Afinal de contas, pela liderança marcante que exerceu na Igreja do Brasil a partir de São Paulo, pelo papel central que teve na resistência democrática, pelo peso que sua opinião teve no pontificado de Paulo VI e na concretização das linhas teológicas e pastorais das Conferências de Medellín e Puebla do Episcopado Latino-Americano, dom Paulo é – nessa constelação de bispos como dom Hélder Câmara, dom Aloísio Lorscheider, dom Luciano Mendes de Almeida, dom José Maria Pires, dom Marcelo Carvalheira, dom Valdir Calheiros, entre tantos outros – a figura mais expressiva de uma hegemonia do compromisso evangélico com os pobres, que marcou o enfrentamento da ditadura e a reconstrução democrática no Brasil por cerca de mais de vinte anos.

Entre as muitas homenagens e obras que o aniversário de morte de dom Paulo suscitou, o relançamento do livro Dom Paulo – Um Homem Amado e Perseguido, de Evanize Sydow e Marilda Ferri, é sem dúvida um marco. Reler essa história na edição revista e atualizada, lançada pela Expressão Popular, a partir do projeto que as autoras desenvolveram no final dos anos 1990 para a conclusão de seu curso de Jornalismo, foi uma grata revelação. Um mergulho não só na história de dom Paulo, mas na história comum que, como eu, milhares de militantes cristãos despertados para a consciência crítica e o engajamento político a partir daquela experiência de Igreja dos Pobres vivenciada nos duros tempos do arbítrio, construímos juntos com ele e sob sua liderança.

O que une aquela pesquisa de campo das jovens estudantes de 1999 com o livro relançado em 2017? Em primeiro lugar, a marca vívida do pensamento de dom Paulo presente no texto, com certeza assegurado pela singular relação pessoal das autoras com dom Paulo e com dezenas de pessoas que com ele conviveram. Dom Paulo mesmo registrou que as autoras “fizeram o que fez o maior escritor cristão da Antiguidade, dom Jerônimo. Foram para ‘scriniacordis’, quer dizer, examinaram os segredos do coração de algumas pessoas e puderam revelar aquilo dentro do livro. Coisas que eu mesmo confessei a elas e não confessei a outros”.

Em segundo lugar, o detalhamento fundamentado do período mais pungente da vida e testemunho de dom Paulo, o período em que sua voz profética ecoava nacional e internacionalmente em defesa dos direitos humanos e das vítimas das violações do Estado de Exceção não apenas constituído no Brasil, mas em articulação com outros governos ditatoriais da América do Sul. Esse é o filet mignon do livro, mais de trezentas páginas (das cerca de 450 páginas do total do livro) dedicadas ao período em que dom Paulo foi arcebispo de São Paulo (de 1970, quando foi sagrado arcebispo após quatro anos de trabalho como bispo auxiliar do cardeal Rossi em São Paulo, até 1998, quando foi substituído por dom Cláudio Hummes após longo e sofrido processo de desgaste com a guinada conservadora na Igreja promovida pelo pontificado de João Paulo II).

É nesse período que a figura de dom Paulo se agiganta. Ele era um fino intelectual, de produção acadêmica brilhante e cultura geral e teológica de primeira linha, um franciscano de espiritualidade profunda, um metódico estudioso e um zeloso pastor. Tinha uma dimensão ecumênica que sobressaía mesmo nesse período em que, movida pelo espírito renovador do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica se abria para o entendimento com outras denominações cristãs e para o diálogo inter-religioso. Era articulado, sabia como ninguém construir sínteses e mover pessoas na direção de sua efetivação histórica. Os vários capítulos do livro em que seu enfrentamento com o regime militar é descrito honram sua memória e a dos que com ele desafiaram a opressão e conquistaram direitos sociais, políticos e econômicos legados às gerações posteriores.

O gostinho de quero-mais derivado da leitura do agradável livro de Evanize e Marilda fica por conta do período em que dom Paulo resiste à onda conservadora que se abateu sobre a Igreja nos pontificados de João Paulo II e Bento XVI. Dom Paulo com certeza, no fim da vida, deve ter tido a secreta alegria de ver, com o papa Francisco, muitas de suas teses teológicas e pastorais perseguidas nos estertores do século 20 e início deste novo século e milênio no interior da Igreja que amava e servia.

Os capítulos finais apenas registram esse período, em que a Arquidiocese de São Paulo sangrou com medidas administrativas que dividiram seu território, que enquadraram o vigor das comunidades e pastorais sociais na “grande disciplina” do novo Código de Direito Canônico de 1983, que enfraqueceram a colegialidade na relação com os bispos-auxiliares e o clero na condução da Igreja, que diminuíram o protagonismo do laicato, as inovações litúrgicas e o compromisso político dos cristãos e cristãs. Nesse mesmo período, mesmo enfraquecido perante Roma, dom Paulo foi solidário com seus irmãos franciscanos perseguidos, como Leonardo Boff, com seus irmãos bispos colocados “na geladeira”, assistindo ao desmonte de parte de sua obra, com os leigos e leigas que atuavam com base nos princípios éticos e teológicos que com ele aprenderam. Novos estudos e livros se impõem, para resgate dessa história de resistência e solidariedade.

Tenho para com dom Paulo uma dívida impagável de gratidão, pelo que inspirou na minha juventude, pela referência teórica e prática que significou para a luta pelos direitos humanos e pelo que ajudou a construir na minha militância política, em particular nos primeiros anos de minha atividade parlamentar na Assembleia Legislativa de São Paulo e na construção de muitos dos atuais mecanismos de proteção legislativa aos direitos humanos ainda vigentes. Quem ler Dom Paulo - Um Homem Amado e Perseguido entenderá por que esse catarinense de Forquilhinha que se tornou cidadão do mundo mudou a vida de muita gente, indivíduos, coletivos, classes sociais e nações.

Recomendo ainda dois outros importantes registros da vida e mensagem desse grande homem desse mesmo finzinho de 2017, o filme de Ricardo Carvalho, Coragem, as Muitas Vidas de Dom Paulo Evaristo Arns, e a exposição fotográfica de Douglas Mansur, Os Caminhos de Dom Paulo em São Paulo, em itinerância pelas comunidades, fazendo Memória, Verdade e Justiça para com dom Paulo. Imperdíveis.

Renato Simões é membro da Comissão Executiva Nacional do PT. Como deputado estadual por três mandatos (1995 a 2007) criou a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo