Estante

Companheiros do Fundação Maurício Grabois (FMG), ligada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), e da Editora Anita Garibaldi lançaram recentemente livro Arte, Política Cultural e Cidadania, organizado por Javier Alfaia, diretor de Cultura da FMG, contendo 24 artigos e quatro entrevistas dedicados à temática das políticas culturais, tratando de temas como: exercício do poder, estética e hegemonia; pós-modernismo e atualidade da teoria marxista; cultura e cidades; política cultural para capitais e grandes cidades; Cultura Viva e políticas culturais na América Latina; políticas integradas de cultura e educação, políticas e culturas digitais; políticas públicas de cultura entre 2003-2016; cultura e projeto nacional; cultura e plano nacional de desenvolvimento; além de textos sobre relevantes personalidades culturais brasileiras, a exemplo de: Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Luiz Gonzaga, Mário de Andrade, Jorge Amado, Adoniram Barbosa, e entrevistas com Jorge Mautner, Thiago de Mello, Sérgio Ricardo e Maria Augusta Vieira.

O livro, cuidadosamente ilustrado, reproduz muitos textos publicados originalmente na revista Princípios. Ele expressa o pensamento de uma corrente política da esquerda brasileira e reúne estudiosos, políticos e gestores culturais que têm se destacado na vida político-cultural recente. Dentre eles: Javier Alfaia, Jandira Feghali, Manuela D’Ávila, Manoel Rangel, Alexandre Santini, Juana Nunes, Fabrício Solagna, Elder Vieira, Madalena Guasco Peixoto, Vandré Fernandes, Joan Edesson de Oliveira, Claudio Gonzalez, Mazé Leite, Jeosafá Fernandez Gonzalez, Vandré Fernandes, Fábio Palácio, Carolina Ruy, Anselmo Pessoa Neto, Adalberto Monteiro e Augusto Buonicore.

Antes de quaisquer comentários, cabe ressaltar a importância de que companheiros de esquerda pensem a cultura e as políticas culturais no Brasil e no mundo contemporâneos. A participação ativa de setores políticos de esquerda na imaginação, formulação, debate, legislação, gestão e acompanhamento das políticas culturais deve ser saudada como dado alvissareiro do crescente interesse pela temática no país. Desde o primeiro governo Lula e a inauguradora gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, felizmente, o tema das políticas culturais passou a frequentar como mais vigor a agenda da esquerda e da própria democracia brasileira, sempre tão fragilizada pelos recorrentes ataques de segmentos autoritários, que habitam as classes dominantes.

Na tradição da esquerda brasileira, infelizmente, esta não é uma atitude comum. Mesmo em momentos nos quais a esquerda obteve grande presença no campo cultural como no pós-1945 e nos anos 60 até 1968, com o Partido Comunista, ou mais recentemente com o Partido dos Trabalhadores, as reflexões, em artigos, livros, encontros e congressos, foram bastante escassas, em especial aquelas que tematizam a cultura em suas conexões com a história, a sociedade e a contemporaneidade. Neste universo, o pensamento acerca das políticas culturais é ainda mais exíguo.

No exterior, a situação não é muito distinta, ainda que em alguns casos ela seja melhor. Em geral, a tradição da esquerda se debruçar sobre as políticas culturais tem sido pequena. O desafio da revolução ou de transformações sociais reformistas colocou, algumas vezes, o tema em cena não só no plano do pensamento, mas em patamares sobremodo práticos, como ocorreu em potentes processos político-culturais, a exemplo da Revolução Russa, da chamada revolução cultural chinesa e de outras demandas político-culturais envolvidas em outras experiências de possíveis transformações da sociedade capitalista. No conjunto, os equívocos no tratamento da cultura superam as políticas culturais afinadas com as transformações da sociedade. A atenção com os aspectos socioeconômicos, políticos e até militares envolvidos deixou, na maioria das vezes, em plano secundário, a essencial dimensão cultural de todo e qualquer processo efetivo de mudança da sociedade.

O patamar quase sempre secundário da questão não apaziguou a disputa em torno das possíveis culturas a ser buscadas e construídas em meio ao desenvolvimento da mutação societária. Durante a Revolução Russa, por exemplo, estiveram em disputa diferentes alternativas, nem sempre conflitantes e excludentes, como: a democratização da herança cultural produzida pela humanidade, postura compartilhada por certa tradição de setores de esquerda; o desenvolvimento de uma cultura nova e proletária, conforme o movimento do Proletkult; a construção de uma cultura de vanguarda em sintonia com a vanguarda política, como defendiam os futuristas russos; a imaginação de uma cultura socialista, na visão de Trostky, dentre outras alternativas menos representativas. No livro Políticas Culturais: diálogos possíveis trato com mais vagar a questão. A cultura nacional-popular apareceu reivindicada como caminho de alguns processos de transição da sociedade, como ocorre em Gramsci e em autores brasileiros. Não cabe no âmbito do presente texto enumerar todas as possíveis proposições políticas de cultura a serem buscadas no processo de transição da sociedade capitalista para outra mais democrática.

O tema não se esgota e parece ter necessária atualidade, com destaque em um mundo no qual os procedimentos de ruptura social mais radicais parecem não estar em horizonte próximo e os processos possíveis de imaginação e construção de novas sociedades são realizados ou não em temporalidades extensas, através de lutas múltiplas, longas disputas e prolongados embates. No dizer de Gramsci, em lutas de posição e não de lutas de movimento. Ou seja, em horizonte de democracias, mesmo que a própria noção de democracia esteja sendo hoje disputada, entre polos possíveis: um deles mais à direita como democracia reduzida à sua dimensão de regime político e em outro mais à esquerda como democracia mais ampla, envolvendo não só regime político, mas afetando as diferentes expressões do poder inerentes à sociedade, em dimensões econômicas, sociais, comunicacionais, militares, educacionais, culturais etc.

O livro, organizado por Javier Alfaia, revela um louvável esforço de reflexão sobre questões culturais e de políticas culturais, ainda pouco usual no Brasil, em particular entre si tratando de instituições e militantes políticos. A história brasileira não traz muitos exemplos neste horizonte. Mesmo no âmbito da esquerda, no geral historicamente mais interessada e sensível à cultura, o número de livros publicados sobre o assunto ainda são poucos. Dois outros livros coletivos recentes fazem parte do imprescindível esforço de tematizar à esquerda as políticas culturais: Política Cultural e Gestão Democrática no Brasil (2016) e Cultura e Política no Brasil atual (2021).

Os temas colocados em discussão no livro, dada sua complexidade, são inúmeros. Impossível tratar de todos eles no âmbito limitado da resenha. Temáticas fundamentais como as relações da cultura com a educação, grandes cidades, desenvolvimento, projeto nacional, estética, comunicação, culturas digitais e outras, frequentam as páginas e as reflexões presentes na publicação.

Tomo apenas alguns pontos para mostrar a atualidade de questões colocadas em cena pelo livro. Em tempos de imperiosa necessidade de transversalidade da cultura e de suas políticas culturais, o livro registra a pequena conexão engendrada pelas inovadoras políticas culturais, experimentadas entre 2003-2016, com alguns movimentos e entidades representativas de segmentos sociais democráticos e de esquerda da sociedade civil, a exemplo das centrais sindicais, entidades estudantis etc. Reanimar tais conexões deve comparecer como exigência vital para a atuação política da esquerda, em especial se lembrarmos que, em momentos da história do país, a atuação das entidades sindicais teve outra perspectiva. Os sindicatos anarco-sindicalistas no Brasil tinham a luta cultural como fundamental. O interessante livro Nem Pátria, Nem Patrão, de Francisco Foot Hardmann, anota a boa tradição.

No contemporâneo, o tema da cultura não pode deixar de realizar tais interconexões, além de outras, em especial aquelas que dialogam com as culturas geradas por movimentos identitários presentes no Brasil hoje. O tema da cultura aparece com força como transversal a um conjunto significativo de manifestações presentes no cenário atual. Elas não são nada desprezíveis para pensar e mudar o país na contemporaneidade. O enlace dessas lutas com os tradicionais embates de classe e de nação efetivados pela esquerda, por certo, aparece como tema a demandar imaginação e ação.

Um ponto me parece essencial para os tempos em que vivemos, o tema da democracia, do papel da cultura na construção da democracia e na refundação do Brasil, com destaque para a discussão sobre a atuação do estado democrático no campo cultural. Depois das experiências traumáticas: do estado ditatorial, com sua produção de cultura oficial; do estado neoliberal, com seu estímulo à cultura mercantil; e mais recentemente da atroz combinação do estado autoritário e ultraneoliberal, gerador da guerra cultural, que destrói diversidade cultural e impõe monocultura: torna-se fundamental tematizar a complexa relação do estado democrático e a cultura. O tema aparece em diversos instantes no livro. Recorto uma de suas passagens mais expressivas. Na página 147, Javier Alfaia escreve: “O estado democrático e comprometido com as necessidades das maiorias sociais não pode se apresentar como uma estrutura neutra. (...) O Estado, além de estar alerta quanto ao embate, deve assegurar que o possível conflito se realize de maneira democrática e com resultados construtivos”. Bom tema para reflexão e ação de todos aqueles, cidadãos e partidos, empenhados na transformação democrática do Brasil, em especial atentos à dimensão político-cultural da transformação.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor na Universidade Federal da Bahia (UFBA)