Estante

livros-contra-ditadura.jpgA oposição à ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) ocorreu de diversas formas. No campo político há desde a oposição consentida no plano parlamentar, representada pelo MDB, até a luta armada em grandes cidades e a conhecida ação no Araguaia. No campo cultural a repressão buscou desarticular os vínculos da criação cultural com a ação política que marcou a expressão das culturas brasileiras até 1964, por meio da censura e do direcionamento de verbas para projetos de interesse do regime. Aos produtores culturais que a ele não se enquadraram coube criar alternativas, seja nos meios tradicionais, seja em formas inovadoras. A imprensa alternativa ou nanica é, talvez, a mais conhecida e rica experiência nessa linha de atuação, tendo abrigado inúmeros projetos e produtores em seus veículos.

Livros contra a Ditadura: Editoras de Oposição no Brasil, 1974-1984, de Flamarion Maués, lançado em dezembro de 2013 pela Publisher, faz parte de um campo de estudos que tem por objeto o mercado editorial e vem apresentando trabalhos que contribuem para compreendermos como a cultura impressa se desenvolve entre nós e participa das culturas brasileiras – e, no caso da obra de Maués, da cultura política do período abordado, que coincide com a longa transição da ditadura civil-militar para o regime civil.

Experiência significativa no campo cultural abordada pelo autor é o surgimento de editoras de oposição, ligadas ou não a organizações políticas, e responsáveis pelo lançamento de um expressivo conjunto de publicações de oposição ao regime. Essas empresas contribuíram para fazer circular ideias anteriormente censuradas e, com isso, trouxeram de volta à cena política personagens fundamentais do conturbado ambiente da redemocratização brasileira.

No campo da cultura impressa, a abertura do regime teria como elemento significativo o florescimento de uma literatura política que pretendia expor ideias e denunciar fatos que haviam ocorrido como parte do projeto político da ditadura civil-militar. Editoras que, em sua maioria, surgiram na segunda metade dos anos 1970, dirigidas por editores que iniciavam suas atividades na área como parte da militância política. Publicaram obras de parlamentares de oposição, depoimentos de exilados e ex-presos políticos, romances-reportagem, livros de denúncias contra o governo, clássicos do pensamento socialista.

Maués mostra como o ambiente da abertura apresentou, de um lado, as condições para que a literatura política se tornasse importante canal de disseminação de ideias, gerando livros que se tornaram best-sellers, lançados por editoras políticas. De outro, referindo-se a essas editoras, “colaborou também para a dispersão e banalização das mesmas” (p. 237). A partir de suas análises é possível identificar aspectos favoráveis e desfavoráveis à edição de livros de esquerda no período 1974-1984:

  • •Favoráveis: declínio da ditadura, que já não reprime os movimentos de oposição como no período anterior; interesse do público pelos temas relacionados à ditadura e por livros clássicos do pensamento socialista; existência de organizações políticas que viram no livro uma possibilidade de tornar públicas suas ideias e realizar o debate político em torno de diferentes concepções;
  • Desfavoráveis: a novidade logo deixou de sê-lo; surgiram muitas editoras com perfis semelhantes e editoras tradicionais também viram condições de mercado para a edição de livros clássicos do pensamento socialista e de diferentes modos de análise da ditadura.

A pesquisa que deu origem ao livro foi realizada para o mestrado em História na USP, apresentado em 2006. O texto tem acréscimos e atualizações em relação ao da dissertação que valorizam o resultado final. O trabalho identificou quarenta editoras de oposição, das quais 32 pequenas ou microempresas e oito médias ou grandes (Alfa Omega, Brasiliense, Civilização Brasileira, Codecri, Global, Paz e Terra, Vozes e Zahar).

Seguindo tendência até hoje mantida, concentram-se em São Paulo (26) e no Rio de Janeiro (nove). As demais (cinco) atuavam em Belo Horizonte e Porto Alegre. As pequenas, em sua maioria, existiram por curtos períodos de tempo e estiveram sempre envolvidas em dificuldades econômicas. Como a pesquisa demonstra por meio de entrevistas com editores e colaboradores dessas empresas, foram organizadas com finalidades políticas e as questões propriamente empresariais, como financiamento, distribuição, entre outras, não eram tratadas com a relevância necessária para seu funcionamento. Comentando esse aspecto, o autor afirma: “Não deixa de ser irônico que, para a criação dessa forma de atuação política, fosse necessário entrar no campo empresarial, em grande medida estranho à maioria dos protagonistas dessas iniciativas” (p. 238). No caso da Editora Kairós, por exemplo, uma das sócias, Magali Gomes Nogueira, explicita essa questão: “Eu não acho que faltou visão empresarial, nós é que nos recusamos a ser empresários, é diferente. (...) Nós éramos trotskistas!, éramos contra o capitalismo” (p. 167).

Os livros que circularam como fruto do trabalho dessas editoras, ao mesmo tempo em que “...promovem e estimulam o debate de ideias, eles são também frutos de uma situação em que já se tornava possível, novamente, trazer à tona tais debates. São, portanto, frutos da abertura política e colaboraram para ampliá-la” (p. 31). Esse movimento fez parte da relação da ditadura civil-militar com a área da cultura e da comunicação, como registra a história do período. Houve grande expansão dos sistemas de comunicação como parte do projeto político do regime e, ao mesmo tempo, censura e repressão seletivas, realizadas de acordo com cada meio ou veículo de comunicação. No caso do mercado editorial, o regime foi responsável por sua “expansão, censura e modernização”, título do excelente apêndice apresentado no livro, no qual temos informações sobre o mercado editorial brasileiro pós-1964. Entre outras importantes mudanças nesse mercado, destacam-se a expansão do livro didático a partir da institucionalização de políticas de Estado, e o crescimento dos livros publicados como parte de projetos políticos que geraram editoras de oposição, definidas por seu engajamento, em grande medida responsável pela estruturação de seus catálogos. Como vemos no livro, no Brasil tais editoras tiveram perfil eclético e não eram necessariamente de esquerda, apesar de isso ser verdade para ampla maioria.

Buscando as motivações que levaram à criação das empresas, seu financiamento, modo de operar e, sobretudo, suas vinculações políticas, Maués identifica um modo de fazer política por meio da produção e circulação de publicações com ideias conflitantes com as da ditadura. Para definir edição política parte da ideia desenvolvida por alguns autores europeus, como Anne Simoni, Julien Hage e François Valloton, que esboçaram seus conceitos básicos (p. 24). A tipologia proposta por Maués indica dois grupos: editoras de oposição e editoras de oposição engajadas. A maioria das incluídas faz parte do subgrupo engajadas, aquelas nas quais há predomínio de publicações de oposição e envolvimento com organizações políticas de combate ao regime. Além de descrever cada uma, o autor traz estudo de caso de três, Ciências Humanas, Kairós e Brasil Debates, ligadas ao PCB, à organização OSI/Libelu e à dissidência do PCdoB que depois deu origem ao PRC, respectivamente. As informações obtidas lhe permitiram apresentar uma “tipologia das editoras de oposição engajadas” (p. 235-236), na qual destaca as principais características desse tipo de empreendimento editorial.

Para finalizar, retomamos Robert Darnton, pesquisador do campo da cultura impressa e importante referência para a pesquisa do autor. Segundo ele, “os livros não se limitam a relatar a história: eles a fazem”. Este, de Maués, é sobre alguns dos que fizeram história, contribuindo decisivamente para os debates acerca dos rumos políticos que o país tomaria a partir da abertura.

João Elias Nery é pós-doutor, pesquisador e docente na área de Comunicação Social. Atualmente realiza estágio pós-doutoral na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each/USP)