Estante

Fundamental para entender a nossa realidadeAos 78 anos, Celso Furtado, vem de publicar dois livros. São os últimos, até aqui, de uma série de 34, iniciada em 1946, e que revelam um pensador na plenitude de seu ofício, o vigor de uma atividade em que a inteligência e a coragem sempre teceram-se fortes e lúcidas. E não só isto tem nos dado Celso Furtado. Dá-nos, com suas entrevistas desassombradas e consistentes, o exemplo de uma voz que não se recusa a denunciar os descaminhos da globalização neoliberal em curso, ao mesmo tempo que aponta alternativas, postula reformas, forceja por transformações que realizem o sonegado encontro do Brasil com a distribuição da renda, da riqueza, do poder e da informação.

Em O capitalismo global, como em Seca e poder, ambos de 1998, Furtado dá mostras de uma de suas mais decisivas características: a capacidade de buscar dar respostas concretas a problemas concretos, lição também, lembre-se, leninista, que ele vem exercitando desde seu primeiro livro de análise da realidade brasileira, A economia brasileira, de 1954.

Deste livro, luminoso e antecipador de teses que ele desenvolverá mais tarde, a esta parte, sua obra é o permanente enfrentamento aos desafios básicos de nosso itinerário histórico: como superar o subdesenvolvimento; como emancipar nossa sociedade no sentido da instauração de um processo de desenvolvimento que seja capaz de contemplar os interesses dos grandes contingentes de nossa população historicamente marginalizados e excluídos dos frutos da modernização, que aqui impôs-se inconclusa, parcial e excludente.

O capitalismo global, pequeno volume, conjunto de oito ensaios, é um livro de um mestre em vários sentidos. Em sua concisão está a segurança de um estilo sóbrio e elegante, sem derramamentos, de quem aprendeu, como Graciliano Ramos, o poder da continência, a eficácia da fala que, como uma flecha, é todo o tempo certeira e limpa. De outro lado, O capitalismo global é manifestação da formidável coerência dos temas e propósitos do autor. Já se disse que todos somos movidos por nossas obsessões. Furtado também o é. O que o distingue é que as suas são como faróis que, multiplicando-se, são instigação, recusa à acomodação, ao pensamento único, permanente desafio ao estabelecido nos campos do conhecimento e do poder político e econômico.

O capitalismo global é um livro cuja atualidade reafirma traço decisivo do pensamento de Celso Furtado: sua atenção às grandes questões de nosso tempo e o compromisso de pensá-las a partir de um ponto de vista crítico, isto é, criativo, teoricamente, e comprometido social e politicamente com os interesses democráticos e populares. É este o sentido de sua ação como economista, como técnico, como homem de governo, como intelectual, como cidadão.

Não se quer nesta resenha a polêmica, a voz crítica que, com razão ou não, sempre se levanta diante do pensamento alheio. O que se pretende é apresentar um livro que merece a leitura e a atenção de tantos quantos se interessam pela compreensão de nossa realidade.

O livro inicia-se com um ensaio, 'A longa marcha da utopia', que é uma espécie de síntese de sua obra autobiográfica. Estão ali as suas grandes influências intelectuais, Manheim, Marx, as grandes disciplinas formadoras do seu pensamento, a economia, a história, a sociologia, no fundamental, a grande aposta na imaginação e na coragem como as armas principais para a superação do establishment econômico dominante e seus compromissos conservadores. Neste esforço Furtado é um dos pioneiros, como Prebisch, como Aníbal Pinto, entre outros, na invenção de uma perspectiva que busca pensar o Brasil e a América Latina a partir da constatação da presença historicamente decisiva do subdesenvolvimento, e da necessidade da mobilização de instrumentos analíticos e político-sociais que o superem.

O segundo ensaio, 'O novo capitalismo', é um balanço da trajetória da constituição da chamada globalização considerada do ponto de vista de suas conseqüências econômico-sociais mais importantes: a concentração da renda e a exclusão social (p.26).

O terceiro ensaio, 'Globalização e identidade nacional', retoma o tema da globalização submetendo-o a escrutínio que ressalta a importância do mercado interno como instrumento adequado para garantir o dinamismo econômico e a superação do subdesenvolvimento (p.43).

O quarto ensaio, 'A superação do subdesenvolvimento', é, talvez, o ponto alto do livro. O conceito de desenvolvimento, que é declinado ali, é o mais belo e compreensivo das muitas aproximações intentadas por Furtado. Diz ele: 'Quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos desenvolvimento'. (...) 'A ciência do desenvolvimento preocupa-se com dois processos de criatividade. O primeiro diz respeito à técnica, ao empenho do homem de dotar-se de instrumentos, de aumentar sua capacidade de ação. O segundo refere-se ao significado de sua atividade, aos valores com que o homem enriquece seu patrimônio existencial' (p.47).

Nesta bela passagem, quanta distância, quanta superioridade intelectual em relação aos modelos tão fúteis e elegantes quanto cínicos que fazem hoje a delícia do pensamento econômico dominante?

Coerente, Furtado revisita três grandes modelos experimentados neste século para superar o subdesenvolvimento - a coletivização dos meios de produção; a perspectiva das reformas; a aposta na ofensiva em direção aos mercados externos - atualizando a perspectiva das reformas, a que incorpora os aspectos ambiental e cultural, mantendo no essencial a mesma denúncia quanto ao caráter perverso do comportamento das classes dominantes no Brasil. Diz ele: 'a permanência do subdesenvolvimento se deve à ação de fatores de natureza cultural. A adoção pelas classes dominantes dos padrões de consumo dos países de níveis de acumulação muito superiores aos nossos explica a elevada concentração de renda, a persistência da heterogeneidade social e a forma de inserção no comércio internacional'. (p. 60)

Daí que as propostas que decorrem desta visão tanto apontem para políticas sociais que reduzam os padrões de consumo dos grupos de elevadas rendas, quanto promovam efetiva distribuição primária da renda, como ele disse em outro livro, Brasil, a construção interrompida, de 1992. São desafios renovados, que atualizam a reiterada encruzilhada brasileira e cujo sentido geral é se o país será o que tem sido, o espaço de desigualdade e da reiteração de privilégios, da dependência e da marginalização e exclusão social, ou se será capaz de incorporar suas amplas massas excluídas ao melhor da modernidade e da industrialização.

Para Furtado, a alternativa efetiva do ponto de vista democrático e popular ao vagalhão da globalização neoliberal é o fortalecimento do mercado interno, o que pressupõe transformações profundas nos campos político, econômico e cultural (p.80).

Celso Furtado, nesta encruzilhada, há muito escolheu seu caminho, seus companheiros, de ontem, de hoje, das Ligas Camponesas ao MST, os que lutam, no campo e na cidade, contra a injustiça e a miséria e, apesar de tudo, continuam nutrindo esperanças, tanto maiores quanto se tem o exemplo deste grande homem.

João Antônio de Paula é professor do Cedeplar/Face/UFMG.