Estante

Maria Victoria Benevides já contribuiu para a compreensão da história política brasileira com seus trabalhos O governo Kubitschek (1976) e A UDN e o Udenismo (1981), ambos publicados pela editora Paz e Terra. O seu novo livro, entretanto, tem um interesse especial para quem é hoje militante do Partido dos Trabalhadores. Ao recuperar a história do PTB paulista no período 1945-1964, Maria Victoria desenha o perfil de uma tradição com a qual nós do PT rompemos e polemizamos até hoje.

E que tradição é essa? É a que reúne o fisiologismo na prática partidária ao peleguismo no movimento sindical. É a que se fia no movimento popular para constituir um partido para os trabalhadores e não dos trabalhadores. Uma prática que está estreitamente vinculada ao trabalhismo getulista, que envolveu o país nas suas versões perversas da representação política e da participação popular.

O PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) foi fundado em 15 de maio de 1945 para ser a "mão esquerda" de Getúlio Vargas. Sua função era articular à sua volta o apoio político da nova massa de trabalhadores que surgia nos centros urbanos. Um dos seus principais objetivos consistia, portanto, em frear a influência do Partido Comunista sobre os sindicatos e também sobre os trabalhadores desorganizados.

A grande questão do livro é a seguinte: se ao PTB estava dada a tarefa de mobilizar a seu próprio favor os trabalhadores, por que é justamente em São Paulo, o maior parque industrial do país, que o partido se revela inexpressivo eleitoralmente? Se a nível nacional o PTB foi o partido que mais cresceu no período 1945-1964, em São Paulo sofreu grandes baixas, correndo até o risco de desaparecer.

A autora aponta basicamente dois motivos para tal fraqueza. O primeiro é a presença forte de Ademar de Barros e de Jânio Quadros na política paulista. O segundo é o fisiologismo exacerbado que levava o partido a intermináveis lutas internas, impedindo-o de constituir-se como opção ao ademarismo e ao janismo.

Jânio e Ademar nunca definiram muito bem sua posição em relação a Getúlio Vargas. Ambos procuraram firmar identidades próprias sem no entanto abdicar definitivamente do prestígio do "pai dos pobres". Na disputa entre essas duas figuras políticas o PTB paulista acabou por funcionar como o fiel da balança, ora aliando-se a um, ora a outro, sem maiores critérios do que o interesse do momento. Getulismo e trabalhismo passam a ser sinônimos e representam a conquista da legislação trabalhista, o salário mínimo, a criação de empresas como a Petrobrás. O PTB paulista tira sua força não dos votos, mas do fato de ser um partido "palaciano", dependente da mística getulista e dos favores que poderia fornecer aos seus aliados através do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, órgãos que controlava.

Segundo a autora, essa mística getulista, que não apresenta um programa mas um suposto conjunto de feitos em prol do país, ajudava também a justificar a tutela do Estado sobre os sindicatos, enfatizando a necessidade de "proteção" do trabalhador. Nos movimentos grevistas os líderes do partido atuavam muito mais como porta-vozes do governo do que dos trabalhadores.

Ambigüidade doutrinária e peleguismo, eis as faces do trabalhismo petebista. Isso, entretanto, não justificaria o fracasso eleitoral somente em São Paulo. Em sua pesquisa Maria Victoria recupera depoimentos de dirigentes estaduais petebistas (sendo Ivete Vargas a mais expressiva), nos quais se afirma o boicote da direção nacional do partido ao diretório de São Paulo em favor do "monopólio dos gaúchos". Maria Victoria concorda com o argumento, mas vai adiante: sendo São Paulo o estado onde o movimento dos trabalhadores era potencialmente o maior e mais forte do país, não interessava a Getúlio ou a outro dirigente do PTB o fortalecimento excessivo do partido. Era importante deixar o movimento trabalhista disperso entre diversos partidos, o que evitaria uma possível perda de controle por parte do governo. Essa atitude, segundo Maria Victoria, contava com a total cumplicidade do PTB paulista, que expurgou muitos "radicais" de seus quadros.

Nesse trabalho, Maria Victoria não se propôs a discutir o valor dessas concepções nem demonstrar seu peso na organização sindical e partidária da atualidade. No entanto, por alguns momentos a autora, que é hoje militante do PT e membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, não resiste, felizmente, à tentação de voltar ao presente para fazer uma ponte entre aquilo que estamos chamando de tradição política e a atuação concreta de hoje. Em primeiro lugar, lembra o momento da disputa pela legenda do PTB entre Leonel Brizola e Ivete Vargas, em 1980. Maria Victoria afirma que a mística de Getúlio e de sua carta-testamento permanece viva e influenciando setores importantes da sociedade até hoje, o que justifica tal disputa.

Em segundo, compara o PTB paulista e sua prática fisiológica com atitudes de políticos como Orestes Quércia ou Newton Cardoso. Se a tradição ideológica do PTB permanece viva através da memória ainda cobiçada de Getúlio, seu lado mais pragmático ainda legitima atitudes clientelísticas como "próprias" da política e está hoje na cabeça de quem acha que partidos ideológicos não são possíveis.

Por fim, declara, cheia de esperança, que a vitória do PT em 88, surpreendendo muita gente dessa "república de bacharéis, oligarcas e coronéis", indica que algo poderá mudar no cenário brasileiro.

Elisabeth Lima é socióloga

Cronologia

1945 – 07/04 – Fundação da UDN (União Democrática Nacional) cujo candidato à sucessão presidencial é o brigadeiro Eduardo Gomes.

08/04 – Fundação do PSD (Partido Social Democrático) cujo candidato à sucessão presidencial é o general Eurico Gaspar Dutra, apoiado por Getúlio Vargas.

15/05 – Fundação do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro).

29/10 – Deposição de Getúlio Vargas da presidência da República.

02/12 – Dutra vence a eleição presidencial.

1946 – 18/09 - É promulgada a nova Constituição do Brasil.

1947 – 19/01 - Ademar de Barros (PSP-PTB-PCB) vence as eleições para o governo do Estado de São Paulo.

1950 – 15/06 – Ademar lança em São Paulo a candidatura de Getúlio à Presidência da República e a de Lucas Garcez ao governo do estado.

18/09 - Getúlio vence as eleições presidenciais com 49% dos votos válidos. Lucas Garcez (PSD-PSD e ala do PTB) é eleito governador de São Paulo.

23/03 – Jânio Quadros é eleito prefeito de São Paulo.

1954 – Jânio Quadros (PTN-PSB-PTB) é eleito governador de São Paulo.

24/08 – Getúlio Vargas suicida-se.

1955 – 03/10 – Juscelino Kubitschek é eleito presidente com 36% dos votos válidos.

1958 – Carvalho Pinto (UDN-PDC-PTN-PR-PSB e ala do PTB) é eleito governador de São Paulo contra Ademar de Barros (PSP e ala do PTB).

1960 – 03/10 – Jânio Quadros é eleito presidente com 48% dos votos válidos. João Goulart, do PTB, é vice.

1961 – 25/08 – Jânio Quadros renuncia à Presidência da República.

07/09 – João Goulart toma posse na Presidência da República. Ademar de Barros (PSP-PSD-PRP) é eleito governador de São Paulo, derrotando Jânio Quadros (PTN-MTR).

1964 – 01/04 - Golpe Militar.

03/04 - Deposição de João Goulart.

07/04 – O general Castelo Branco é declarado presidente.

1965 – 27/10 – O AI-2 extingue os partidos políticos.

24/11 – O Ato Complementar n.º 4 cria o sistema bipartidário: ARENA e MDB.