Estante

A experiência do Orçamento Participativo de Porto Alegre retratada no livro de Tarso Genro e Ubiratan de Souza representa uma excelente possibilidade de conhecer uma iniciativa que se tornou emblemática pela importância do processo implantado e pela legitimidade obtida.

Pela voz de atores diretamente envolvidos no processo de consolidação desta proposta inovadora, o livro mostra as complexidades e os avanços, notadamente quanto ao funcionamento da sociedade civil como interlocutora num processo de aprendizado sobre o desafio de democratizar a gestão da coisa pública, a partir de práticas mobilizadoras centradas na vida do bairro, visando acima de tudo equilibrar desigualdades organizacionais entre os grupos participantes.

O complexo processo de construção da cidadania no Brasil, num contexto de agudização das desigualdades, é perpassado por um conjunto de questões que necessariamente implicam a superação das bases constitutivas das formas de dominação e de uma cultura política baseada na tutela, no clientelismo e no patrimonialismo político. O desafio da construção de uma cidadania ativa se configura como elemento determinante para a consolidação de sujeitos-cidadãos, portadores de direitos e deveres.

A constituição de cidadãos, enquanto sujeitos sociais ativos, se consubstancia a partir da transformação das práticas sociais existentes e na sua substituição pela construção de novas formas de relação, que têm na participação um componente essencial. O enfrentamento do patrimonialismo político é uma tarefa complexa e demorada em virtude do enraizamento das práticas de instrumentalização. O desafio é o de construir novos hábitos, de neutralizar o clientelismo e de aproximar o cidadão do processo decisório.

A efetiva participação da população nos processos decisórios, como é o caso do Orçamento Participativo1, requer um esforço crescente de institucionalização da possibilidade de atendimento das demandas em bases negociadas. Trata-se de processar demandas e pressões e de implementar mecanismos formais que contemplem tanto os setores organizados e mobilizados, como que envolvam os setores desorganizados. Isto está sendo construído dentro de uma lógica que não está apenas permeada pelo imediatismo e utilitarismo, mas por uma radicalização da democracia, que alargando os direitos de cidadania nos planos político e social constrói efetivamente novas relações entre governantes e governados. Este processo de gestão possibilita conhecer o funcionamento e os limites da máquina de Estado e estimula a construção de uma relação de co-responsabilização e de disputa, visando produzir consensos cada vez mais qualificados.

A relevante experiência do Orçamento Participativo em Porto Alegre está diretamente vinculada à capacidade que a administração local tem de criar canais legítimos de participação, combinando elementos da democracia representativa e da participativa. Trata-se de uma experiência que tem se multiplicado, enquanto referência da adoção de um processo participativo, baseado no conceito de esfera pública não-estatal que incide sobre o Estado, com ou sem o suporte da representação política tradicional. Esta é constituída por uma multiplicidade de organizações sociais, admitindo a tensão política como método decisório e dissolvendo o autoritarismo do Estado tradicional. Nesse contexto, a participação adquire uma linguagem e uma prática de ruptura com o corporativismo territorialmente determinado, com ênfase numa lógica presidida por uma abordagem universal da cidade, criando para os setores populares uma opção viável e altamente competitiva de participação política alternativa às práticas clientelistas.

As transformações político-institucionais apresentadas abrem um estimulante espaço para a construção de uma nova institucionalidade que tem na participação um componente importante.

As dimensões diferenciadas de participação mostram a necessidade de superar ou conviver com certos condicionantes sociopolíticos e culturais, na medida que o salto qualitativo começa a ocorrer a partir de diferentes engenharias institucionais que “têm uma progressiva penetração de formas públicas de negociação dentro da lógica da administração pública”.

Isto também reforça a importância de pensar a participação como um método de governo que pressupõe a realização de certas pré-condições necessárias à sua viabilização, dadas as características da cultura política brasileira.

Os complexos e desiguais avanços revelam que estas engenharias institucionais ocorrem pela superação das assimetrias de informação e pela afirmação de uma nova cultura de direitos. Estas experiências inovadoras fortalecem a capacidade de crítica e de interferência dos setores de baixa renda por meio de um processo pedagógico e informativo de base relacional, assim como a capacidade de multiplicação e aproveitamento do potencial dos cidadãos no processo decisório dentro de uma lógica de não cooptação.

Entretanto, esta e outras experiências em marcha ainda estão longe de representar um paradigma de significativa repercussão no atual quadro brasileiro, principalmente em virtude da falta de vontade política dos governantes e da fragilidade do tecido associativo. Os grupos organizados que interagem e pressionam representam iniciativas fragmentárias que não atingem o cerne de uma sociedade refratária a práticas coletivas. A realidade brasileira é marcada por um contexto de baixa institucionalização, em que a maioria da população pouco se mobiliza para explicitar sua disposição de utilizar os instrumentos da democracia participativa visando romper com o autoritarismo social, além do fato da maioria das organizações sociais serem relativamente frágeis ou extremamente especializadas, tendendo a estabelecer relações particularizadas e diretas com a administração pública local.

Os desafios para ampliar a participação são apresentados no livro, que explicita a tecnologia implementada: a agenda de práticas comunitárias e o rol dos principais atores intervenientes estão intrinsecamente vinculados à predisposição dos governos locais para criar espaços públicos e plurais de articulação e participação, nos quais os conflitos se tornam visíveis e as diferenças se confrontam, enquanto base constitutiva da legitimidade dos diversos interesses em jogo. Isto nos remete à necessidade de ter como referência uma engenharia institucional legítima aos olhos da população, que garanta espaços participativos transparentes e pluralistas numa perspectiva de busca de eqüidade e justiça social configurada pela articulação entre complexidade administrativa e democracia.

O que esta experiência também mostra é que o alargamento da cidadania está associado a uma proposta de garantia da governabilidade, o que pode ser atestado pelas duas reeleições em 1992 e 1996.

O livro mostra que é possível aprender a praticar democracia sem tutela, começando pelas práticas básicas de decisão coletiva para priorizar escolhas socialmente eqüitativas, mas é importante ressaltar a importância do tempo para viabilizar a implantação de um processo no qual se configura uma nova vivência das práticas comunitárias, em que a população aprende não só a se articular na defesa dos interesses locais, como também a negociar numa perspectiva de fortalecimento da cidadania ativa.

Pedro Jacobi é professor associado da Faculdade de Educação da USP e pesquisador do Cedec.