Estante

capa Reflexões sobre a revolução na EuropaO lançamento no Brasil do último livro do alemão Ralf Dahrendorf, Reflexões sobre a Revolução na Europa, permite conhecer as opiniões de um dos mais destacados intelectuais europeus.

O livro versa sobre os eventos de 1989 no Leste Europeu, que derrubaram o Muro de Berlim, destronaram a nomenklatura, há anos encastelada no poder, e redemocratizaram os países ex-comunistas, inaugurando uma nova era que o autor do livro saúda com a seguinte expressão: "Que tempo para se estar vivo!".

Antes de escrever, Dahrendorf havia conversado com um amigo, durante a viagem que fez à Polônia, sobre o futuro dos países libertos do comunismo. O futuro está em aberto, mas são inteiramente precipitadas as afirmações de que o Leste irá escolher o caminho de volta ao capitalismo. Muitas perguntas lhe foram feitas por seu amigo polonês, sem que houvesse condições para respondê-las. De volta à Grã-Bretanha, no seu gabinete em Oxford, e "cercado por livros e papéis", diz ele, "é que encontro os recursos necessários para tentar responder devidamente ao que me perguntou" (p. 6).

As perguntas são muitas, todas permeadas de temor e incertezas. "O que é que tudo isso significa e para onde caminha? O que fará a economia de mercado ao tecido social do país (no caso a Polônia)? E o que dizer da ameaça alemã? Não iremos ver uma Europa balcanizada, dominada pela única potência que está se unificando, e não se desintegrando?".

Sim, a redemocratização no Leste causa temor e incerteza, que se misturam à esperança trazida pela Revolução de 1989. Não poderia ser diferente numa situação em que valores criados pelo comunismo absolutista são varridos e outros estão sendo criados. "Fender e derrubar o Muro e vender os pedaços por moeda forte constitui uma experiência maravilhosa e mesmo lucrativa, mas construir uma nova cidade exige tempo e um pesado tributo de emoções, energias e recursos" (p. 18).

São temores do nacionalismo revigorado na Europa, principalmente na Alemanha, que ostenta o lugar de potência econômica mundial. As experiências ficam por conta da volta à democracia, aos direitos civis e humanos violados pelos regimes comunistas. Tudo isso por si só já causa incertezas às pessoas que estão passando por um estado de anomia, e levarão muitos anos para acreditar no futuro.

No entanto, os eventos de 1989 criam muitas vantagens, como a Reunificação da Alemanha (apesar dos temores que isto gera) e a Reunificação da Europa. Porém, a mais importante é a unificação da linguagem. Diz Dahrendorf que "sem ela eu não poderia nem mesmo ter iniciado esta carta". Antes, o mundo se dividia em duas línguas comunista e capitalista -, e tudo o mais seguia essa separação, a ponto de se falarem cultura, democracia, ciência (lembre-se Lysenko) proletárias ou burguesas.

A unificação da linguagem quer dizer que agora "a conversa, a discussão, podem realmente mudar opiniões" (p. 21); ninguém mais recorrerá a sagradas teorias para provar verdades absolutas, como era feito antes nos países comunistas. Aliás, comunista era sinônimo de "ser superior, detentor do futuro. Stalin, por exemplo, lançou sobre o túmulo de Lenin uma frase que sintetiza bem a arrogância comunista: "Nós, os bolcheviques, somos de um estofo diferente do dos outros homens" (cit. por Edgar Morin, in: Da natureza da URSS). Frases como esta certamente não cabem no mundo de hoje e soam como coisa velha, mas serviram para fundamentar a idéia de que o marxismo e o comunismo eram verdadeiros e o futuro a eles pertencia.

Dahrendorf é a favor de uma nova ordem mundial, no sentido kantiano, "com instituições realmente internacionais". Defende que a nação-Estado não está totalmente superada, pois cumpre ainda o papel de repositório dos direitos básicos de cidadania. Principalmente, porque a união européia vem se dando basicamente sob interesses econômicos e geopolíticos, que são importantes, mas insuficientes para criar uma cidadania européia.

Mas a principal contribuição que podemos extrair do livro Reflexões é o termo "sociedade aberta", usado para designar o caminho a seguir depois do fracasso do comunismo e da exaustão da social-democracia. Este termo é emprestado de Karl Popper, que fala: "podemos voltar aos animais. Mas se queremos continuar humanos, só há um caminho, o caminho para a sociedade aberta". (cit. por Dahrendorf, p. 38). Popper defende o ponto de vista segundo o qual não existem esquemas predeterminados e a história é um processo aberto para as possibilidades.

Seguindo a trilha proposta por Popper, Dahrendorf elege a liberdade como o valor-guia (para usar uma expressão muito usada por Agnes Heller em (A filosofia radical) que sustenta a sociedade aberta. Isso quer dizer que há muitos caminhos, mas certamente o que nos propicia viver bem é o da sociedade aberta, onde liberdade e direitos humanos são valores supremos.

Ao falar de sociedade aberta; Dahrendorf defende uma teoria da história em que o imponderável ocupa lugar destacado. Primeiro, ele diz que "não há maior perigo para a liberdade humana do que o dogma, o monopólio de um único grupo, de uma ideologia, de um sistema" (p. 38). É certo que as pessoas sentem-se mais seguras vivendo em um mundo fechado. "Mas se queremos seguir em frente, melhorar a nós mesmos e às condições em que homens e mulheres vivem neste planeta, temos que aceitar a perspectiva desorganizadora, antagonista, incômoda, mas orgulhosa e estimulante de horizontes abertos".

Não é por acaso que dirige críticas contundentes (a meu ver acertadas) a Marx, Hayek e Fukuyama. Ao primeiro, porque defende uma teoria determinista-objetivista, em que o socialismo "não era uma perspectiva desejável, mas resultado necessário das contradições e conflitos do capitalismo burguês" (p. 60). Marx "invocou a marcha inexorável da História" e, por isso, "versões do positivismo entraram em um curioso casamento com o socialismo" (p. 61). Quanto a Hayek, este defende os sistemas fechados em "processos naturais, espontâneos, auto-organizáveis". É como se as escolhas fossem tão-somente entre sistemas, capitalista ou socialista. Ao contrário, Dahrendorf acha que as lutas de sistemas foi uma prática antiliberal. E não só isso, "todos os sistemas significam servidão, incluindo o sistema 'natural' da ordem de mercado total, na qual ninguém tenta fazer coisa nenhuma, salvo observar regras do jogo, descobertas por uma seita misteriosa de conselheiros econômicos" (p. 55). Fukuyama dispensa comentários; é defensor da tese segundo a qual o colapso do comunismo representa o fim da história. Dahrendorf o trata com desdém: "Fukuyama é uma caricatura de argumento sério" (p. 52).

Por último, a sociedade aberta, segundo Ralf Dahrendorf, é um termo antitético a todas as teorias que têm como premissa a imanência na crença de um portador do futuro. Em uma teoria assim concebida não há lugar para a liberdade, por isso não há lugar para uma práxis realmente libertadora.

Além disso, a sociedade aberta é, acima de tudo, a plena cidadania, a garantia dos direitos civis e a garantia de que todos terão acesso a bens e serviços. A cidadania plena é, aliás, "uma oportunidade, uma chance de levar uma vida ativa e plena de participação no processo político, no mercado de trabalho, na sociedade" (p. 140).

Francisco Campos é assessor na Câmara Municipal de São Paulo

Ralf Dahrendorf

Ralf Dahrendorf certamente é um desconhecido para a maioria dos militantes de esquerda. Merece, portanto, uma breve apresentação.

Nasceu em Hamburgo, em 1929. Estudou filosofia e filologia clássica, mas foi como sociólogo que escreveu suas mais importantes obras, e tornou-se conhecido fora da Europa. Em 1944, foi para num campo de concentração nazista. Em 1947 entrou no Partido Social Democrata alemão, saindo para o Partido Liberal. Foi membro do parlamento e ministro na Alemanha. Durante quatro anos (1970-1974) pertenceu à Comissão Executiva da Comunidade Econômica Européia.

Atualmente vive na Grã-Bretanha, onde dirige o St. Antony's College (Universidade de Oxford). Entre as suas obras mais importantes destacamos: Homo Sociologicus (in Ensaios de Teoria da Sociedade, Zahar Editores); La Libertá che cambia, Il Conflito sociale nella modernità, Per un nuovo liberalismo, Pensare e fare politica (todos na versão italiana). A Editora da Universidade de Brasília publicou alguns livros do autor, como Liberdade e Sociedade e O liberalismo e a Europa. Jorge Zahar Editor anuncia para este ano o lançamento no Brasil de Conflito social moderno.