Estante

O teatro, pelo menos no que concerne à tradição ocidental, ostenta uma existência de mais de 25 séculos, e cada pedaço dessa história constitui um momento fascinante, do qual se persegue ainda hoje a reconstituição. Como registro de um produto vivo da expressão cultural do homem em sociedade, a história do teatro sobrevive à custa de reconstruções hipotéticas, sujeita a constantes revisões e interpretações.

Isto se deve ao fato de que o teatro é um fenômeno de natureza efêmera, cuja existência consuma-se no próprio ato de sua apresentação. A historiografia tem dado conta - precariamente, a depender da distância do tempo - daquilo que persiste como registro escrito: relatos, testemunhas e, principalmente, dramaturgia. Esta tem sido particularmente privilegiada, não somente por restar como documento, mas também porque os estudiosos, ao longo dos séculos, viram no diálogo dramático a essência do teatro. Pensar o teatro como encenação, ou seja, como plasmação em ato de uma realidade ficcional, por meio de procedimentos e recursos cênicos, é conquista da modernidade. Essa noção foi forjada ao longo do século XIX, ganhando exemplaridade na produção daqueles que foram considerados os primeiros encenadores modernos, como Antoine e Stanislavski.

Ainda assim, grande parte dos manuais de história contemplam a dramaturgia como fio condutor. Romper com essa hegemonia, para o historiador contemporâneo, implica repensar o material histórico, abrindo frentes de pesquisa para a recuperação de dados e registros que contemplem a realização cênica, promovendo recortes e alinhamentos que não obedeçam ao critério puramente cronológico. Em suma, pesquisadores do teatro tentam afinar-se com os novos rumos da historiografia em geral.

Conseqüentemente, essa pequena história de quase três milênios oferece-se sempre a ser revisitada, em busca de novos eixos e conexões desta que é a arte mais coletiva e integradora entre as inventadas pelo homem.

No Brasil, o teatro se fez presente desde os primeiros momentos da colonização, constituindo um legado que, embora sem a aparente magnitude da tradição européia, concentra uma produção consistente e significativa, ainda insuficientemente explorada do ponto de vista do pensamento crítico. Felizmente, em especial ao longo das duas últimas décadas, a Universidade tem dado uma importante contribuição para o implemento da pesquisa e da produção teórica sobre o teatro, promovendo, através de seus cursos de pós-graduação, a ampliação do número de pesquisadores, com a elaboração de dezenas de teses e dissertações dedicadas ao assunto. No campo editorial, gradualmente novas editoras vêm somar-se às pioneiras, como a Brasiliense e a Perspectiva, na publicação de peças e estudos sobre teatro, compensando, em parte, o espaço que a crítica ensaística perdeu na grande imprensa.

Portanto, são inúmeros os bons motivos que nos fazem louvar a edição dos dois volumes de O Teatro Através da História. Ele é o resultado de um ciclo de palestras sobre temas da História do Teatro, idealizado e organizado por Tânia Brandão, que ocorreu entre março e maio de 1992, nas dependências do Centro Cultural Banco do Brasil. Em primeiro lugar, merece destaque a iniciativa do Centro Cultural Banco do Brasil de dar respaldo a esse evento, aventurando-se, agora, no campo editorial. Essa entidade, que no Pio de Janeiro tem sido responsável por bem sucedidos empreendimentos na área artística, demonstra discernimento e coerência em seu ativismo cultural ao promover a publicação deste livro, em co-edição com a Entoura e Produções Artísticas. Num país cuja política oficial na área da cultura é tão instável e sem diretrizes definidas, iniciativas como esta, que ousam no apoio ao pensamento crítico, Apontam, sem dúvida, para um caminho viável e necessário.

O segundo voto de louvor vai para Tânia Brandão, livre-docente do Departamento de Teoria do Teatro da Uni-Rio, por seu empenho em reunir intelectuais e pesquisadores do porte de Sábato Magaldi, Alberto Gusik e Ged Bornheim (poderia citar muitos outros nomes consagrados que estiveram presentes) para, num tour de force, divulgar entre nós a idéia do teatro.

O ciclo foi estruturado em dois blocos, um dedicado ao Teatro Ocidental e outro ao Teatro Brasileiro. Essa mesma divisão orienta respectivamente os volumes 1 e 2 da publicação recém-lançada.

A escolha do título - O Teatro Através da História - parece revelar uma clara opção no sentido de não constituir necessariamente uma história do teatro. No entanto, dada a abrangência do tema, por sua extensão histórica, dificilmente poder-se-ia fugir da presença de temas de caráter geral. Por outro lado, a pluralidade de abordagens, resultado da produção intelectual particular de cada pesquisador, dificulta a coordenação, sobre um eixo definido e coeso, das diferentes contribuições. Assim, é compreensível a opção de submeter-se ao critério cronológico na organização seqüencial dos temas, como forma de acomodar análises que tendem ao geral com aquelas focadas em objetos específicos.

Por razões óbvias, o primeiro volume tende à presença dos grandes temas. Nele se agrupam, ordenadamente, o teatro grego, medieval, commedia dell'arte, teatro elisabetano, século de ouro espanhol, classicismo francês, teatro romântico, teatro moderno e vanguardas históricas. Fechando o volume, apresentam-se temas aparentemente isolados ou capítulos centrados sobre figuras individuais de dramaturgos. Assim, são contemplados Pirandello, Brecht, Beckett e o teatro experimental.

O segundo livro, dedicado ao Teatro Brasileiro, ostenta maior liberdade na seleção dos sujeitos, oferecendo recortes mais instigantes da história. Também compreende conjuntos abrangentes, mas, com exceção do capítulo dedicado ao teatro colonial e do panorama sobre a dramaturgia moderna, pressupõe focos de análise específicos, como o teatro produzido nas décadas de 20-30, o teatro de revista, as modernas companhias de atores, os grupos ideológicos da década de 70, a produção de Os Comediantes do TBC. Completando o volume, ensaios sobre Martins Pena, Artur Azevedo, Nelson Rodrigues e João Caetano.

Refletindo a oscilação entre a abordagem de períodos mais extensos e a atenção a aspectos específicos da história, o resultado final do conjunto é um tanto híbrido, irregular no que concerne à construção e acabamento das análises, quando confrontadas entre si. Como é de se prever, os textos nos quais os autores se esforçaram por constituir uma visão panorâmica do período e da produção são os que mais facilmente incorrem em generalizações simplificadoras ou omissões. No plano interno dos capítulos, o caráter generalizador acaba, às vezes, por favorecer abordagens um tanto superficiais, como a assunção irrestrita do caráter popular do drama sacro medieval. Ou, então, revela um tratamento tradicional do objeto, como, por exemplo, a ênfase na literatura dramática em detrimento do espetáculo, como ocorre nas partes dedicadas ao romantismo e ao classicismo. Nos capítulos que apresentam um recorte temático, a proposta de visita à história se realiza de forma mais efetiva. É o caso do excelente texto de Fátima Saadi sobre Pirandello, a crônica deliciosa do teatro romântico brasileiro armada por Flávio Aguiar em torno da figura do grande ator João Caetano, da coloquialidade fabular de Fernando Peixoto falando sobre Brecht, ou a competente análise de Maxiângela Alves de Lima sobre o teatro político dos anos 60-70 no Brasil.

Porém, há que se ressaltar que nenhuma dessas observações críticas pode arranhar a qualidade e o valor desse empreendimento. No seu conjunto, O Teatro Através da História é uma importante coletânea de ensaios, editada em hora oportuna e destinada a ser bibliografia obrigatória para os que trabalham com teatro, em especial na esfera da educação. Subsidiariamente, não apenas confirma a presença viva do teatro entre nós, como comprova a existência de um corpo de pensadores competentes, realimentado por expoentes da nova geração, capaz de suprir a contento a produção de um pensamento crítico sobre o teatro, referido em nossa realidade e na tradição ocidental.

Silvana Garcia é professora do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP.