Estante

Muito tem-se falado sobre terceirização nos meios empresariais, acadêmicos e sindicais envolvidos com política industrial. Seria incorreto dizer que o tema é ainda inexplorado no Brasil. Análises e estudos sobre a questão podem ser encontradas em empresas de consultoria, assessorias e comunicações de pesquisa. Faltava um tratamento que sistematizasse os primeiros resultados e as principais idéias que norteiam a discussão a respeito.

Terceirização - diversidade e negociação no mundo do trabalho preenche essa lacuna e vai além. Trata-se de um conjunto de textos que com abordagens variadas a partir de duas grandes vias de acesso - a acadêmica e a sindical - faz mais do que cumprir um papel de informação e de organização do debate, sendo já por isso pioneiro: permite, pela sua riqueza, a abertura de uma frente de trabalho teórica em que pesquisadores e militantes sindi cais têm um prolífero campo de hipóteses a ser explorado.

A partir da leitura do conjunto dos textos ressalta a diversidade de questões ligadas à problemática da terceirização, as quais o livro tenta rastrear: o que muda de fato no interior de um tecido industrial herdeiro do modelo de concentração-verticalização-produção em série; como os sindicatos encaram essas mudanças; e as estratégias de negociação em termos das forças políticas que suportam as instâncias de representação do trabalho.

Desde já é preciso ficar claro que na querela da terceirização "ofensiva" versus "defensiva" ("predatória" ou selvagem") o tom da coletânea pende francamente para o segundo lado. E isso por um motivo simples: longe de uma tentativa apenas descritiva de cercar o fenômeno, assume um ponto de vista a partir das diversas configurações do chamado "mundo do trabalho". Nessa ótica, aparecem então modalidades de terceirização, e os contornos sociais que essas modalidades adquirem.

O artigo de Alice Rangel de Paiva e de Abreu e Bila Sorj toma a clivagem de gênero como chave para entender as diferentes formas que podem assumir, para os agentes, a subcontratação do trabalho.

Maria Cecília Iório nos mostra que a terceirização tal como é definida hoje para o setor fabril, é velha conhecida do campo, especificamente na relação definida como "integração" entre os pequenos produtores e agroindústrias. Ali, a estratégia de delegação da produção de matéria-prima a um terceiro envolve uma relação de confiança e uma seletividade que se orienta por critérios culturais e étnicos (privilegiamento da região Sul, onde predominam culturas oriundas da colonização européia), o que chama a atenção para a mobilização de vocações por parte do controle de qualidade, exigido muitas vezes na relação de subcontratação. Isso envolve uma "qualificação" que na verdade se espalha pela família do pequeno produtor.

É essa (falta de) legitimidade do trabalho familiar que é acompanhada por Rosilene Alvim no que tange o trabalho do menor: ela alerta para a necessidade de uma análise qualitativa que apreenda os deslocamentos do que é definido como "trabalho do menor" nos discursos e motivos apresentados pelas próprias famílias, isto é, em uma abordagem que leve em conta os padrões de cultura, e que as estatísticas podem apenas sugerir mas não enfrentar.

O artigo de Vera Telles nos adverte sobre os efeitos que a terceirização pode ter em um contexto em que os excluídos são punidos duplamente: pelo não acesso à relativa estabilidade do salariato mas também pelo estatuto de pré-cidadania que a situação de pobreza significa na sociedade brasileira.

Porém, não há apenas perspectivas sombrias: seu texto chama a atenção para as iniciativas de unia "nova contratualidade", na qual o exemplo das câmaras setoriais é mencionado. Sua importância está em que trata-se de uma forma de contratação partindo do próprio seio do trabalho "organizado" e cujo raio de abrangência toca diretamente todas as questões relevantes das relações de trabalho, onde a terceirização certamente não está ausente. Pode-se dizer, aliás, que o tema das câmaras setoriais atravessa grande parte dos textos, desde aqueles que o tomam explicitamente (Vicentinho), passando pelos que o discutem de forma marginal no interior de seus respectivos argumentos-chave (Sônia Gonzaga, José Ricardo Ramalho, Luís Paulo Bresciani), até aqueles que "roçam" a questão, como a própria Vera Telles.

Por meio de uma trajetória argumentativa toda particular e um pouco distante das outras contribuições do livro, Vera mostra de maneira bastante oportuna como é possível abordar a flexibilização de uma ótica mais ampla do que a questão exclusão/inclusão do mercado de trabalho, na medida em que ela se encontra atada necessariamente à problemática dos direitos e da cidadania, isto é, da generalização e universalização, em vez da segmentação e diferenciação. É possível entrever o fecundo espaço de reflexão que essa problemática inspira para os estudiosos das relações de trabalho, uma vez que flexibilização e terceirização são ter mos que vêm sendo entendidos como sinônimos no Brasil, por conta da terceirização predatória que se observa aqui, conforme nos adverte o artigo de Aparecido De Farias. Daí a importância das câmaras setoriais como instrumentos de regulação da relação capital-trabalho.

De fato, os exemplos concretos nos mostram que os efeitos negativos parecem sobrepor-se aos possíveis efeitos positivos da terceirização (p. 113-4) - assim é o quadro apresentado por Maria Berenice Godinho, que centra fogo no conteúdo sexuado das tarefas no processo de trabalho (como Abreu e Sorj) para nos mostrar o efeito diferenciador que decorre quando da "quebra" desse processo de trabalho, dos quais são exemplos a terceirização, o trabalho a tempo parcial, a informalidade, o serviço doméstico etc. Esses, aliás, não são problemas para a classe trabalhadora brasileira apenas (veja o exemplo da Toyota, citado por Godinho. p. 120).

Ramalho chama a atenção para o debate ideológico entre as centrais, e principalmente dentro da própria CUT, para o significado da estratégia de negociação. A reestruturação produtiva, afetando diretamente os sindicatos, impõe uma postura não apenas reativa mas principalmente propositiva, o que acarreta uma mudança de fundo na cultura política da vida sindical, e que termina por rebater em um constante reajuste das concepções estratégicas do movimento (o socialismo, por exemplo).

O mesmo mote é seguido no artigo de Iram Jácome Rodrigues, analisando a importância das Organizações por Local de Trabalho (OLT), que estiveram no centro das reivindicações do "novo sindicalismo" e que teriam passado, segundo ele, por uma acomodação na década de 80. As OLT são de extrema importância hoje pois adicionam à antiga reivindicação por autonomia e intervenção no processo de trabalho o controle das condições de uso do salariato, no interior do qual a terceirização joga um papel cada vez mais estratégico para as empresas. A organização por local de trabalho está para o sindicalismo de tipo negocial assim como o sindicalismo de porta de fábrica está para aquele de tipo conflitivo.

O artigo de Sônia Gonzaga atém-se à questão das práticas de negociações coletivas, nas quais um ponto a destacar é o paulatino afastamento do Estado como interventor obrigatório na resolução das questões trabalhistas. Pelo contrário, identifica-se um processo de "quase-legislação" nas negociações coletivas diretas e específicas, entre patrões e empregados, sobre os mais variados aspectos do mundo do trabalho. Os diversos casos arrolados como "padrões de negociação" são muito ricos e permitem observar como um tratamento de cunho mais contratual da terceirização pode ser atacado, uma vez que o raio de questões cobertas por uma negociação coletiva ampla (do qual o Contrato Coletivo de Trabalho é a tradução) seria bastante abrangente.

O texto de Bresciani, seguindo as pistas exploradas por Osvaldo Martines Bargas a propósito da nova configuração do capitalismo, é o que se aproxima de forma mais acurada do conteúdo da chamada "reestruturação produtiva", detalhando as principais mudanças técnicas, organizacionais e gerenciais.

O texto de Manoel Castaño Blanco é elucidativo pelo registro das formas concretas da terceirizição, hoje no Brasil, em um setor chave: a área bancária. E mais uma vez aparece o padrão predatório que tem assumido a "terceirização à brasileira", cujo principal alvo é fraudar o contrato de trabalho e as conquistas adquiridas.

Finalmente, o artigo de Heloisa Martins toma a questão da heterogeneidade da indústria como pano de fundo das estratégias dos sindicatos e discute teoricamente com base no discurso da "inevitabilidade" da reestruturação produtiva - presente tanto do lado do capital quanto do trabalho - uma questão que também freqüenta o artigo de Vera Telles: a possibilidade de generalização (p.26) das demandas ou de formação de uma identidade coletiva em um contexto de explosão das diferenças (por ramos, situações de trabalho, de salário, de contrato etc). Um outro ponto a destacar é o preenchimento de uma lacuna na literatura acerca da reconversão industrial: as pequenas e médias empresas. Elas são abordadas a partir de depoimentos dos próprios trabalhadores. Assim ficamos sabendo, por exemplo, que a ideologia de "ser dono de seu próprio negócio" envolve dificuldades que não compensam o abandono da condição assalariada. Mas isso não é para todos: o depoimento aqui é de um operador especializado. Para a grande maioria, o horizonte não é tanto de escolha, pois o pavor maior é o desemprego, o "estar na rua" (p.38).

Em todos os textos, um denominador comum mais largo poderia talvez ser traduzido pelo reconhecimento de que, se a terceirização faz parte de um movimento aparentemente irreversível do capital, que ela então se processe dentro das margens de negociação existentes e por vir. Assim, os sindicatos e trabalhadores, de forma ampla, não surgem no cenário da política industrial como baluartes da recusa (que o neoliberalismo logo traduz por "atraso"), mas como demandantes e sustentadores de direitos.

Leonardo G. Mello e Silva é professor da Faculdade de Ciências Sociais da USP.