Estante

capa Uma aposta no futuroUma Aposta no Futuro poderia ter apenas traçado o rápido desenvolvimento da câmara setorial da indústria automobilística nos primeiros anos da década de 90. Glauco Arbix, no entanto, em sua tese de doutoramento, foi muito mais longe ao escrever um livro de leitura indispensável não somente para os estudiosos do mundo do trabalho (economistas, sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc.). Também os militantes sindicais e políticos interessados na constituição de um projeto nacional e os empresários dispostos a superar a utopia destruidora do mercado auto-regulável, encontrarão aí contribuição substantiva para o debate sobre as condições de um futuro ancorado em objetivos nacionais e em políticas públicas democraticamente negociadas.

Tendo por base extenso levantamento de informações, inclusive por intermédio de dezenas de entrevistas com os principais protagonistas daquela inusitada experiência histórica, o livro de Glauco é bem escrito e de fácil leitura, incorporando diferentes níveis de análise e distintas áreas do conhecimento.

Em um momento histórico ainda favorável à geração de um conhecimento em migalhas, Uma Aposta no Futuro mostrou uma saudável e incomum retomada da interdisciplinaridade e de uma visão mais ampla nos estudos do trabalho. Desta forma, rompeu com visões limitadas, sejam aquelas que, buscando o conhecimento específico ignoram o que mais geral existe (conhecendo a árvore mas não vendo a floresta), sejam aquelas que em nome de uma lógica abstrata e/ou de uma inexorabilidade das transformações terminam saltando do passado ultrapassado para o futuro utópico, ignorando as possibilidades do presente e favorecendo a passividade e a ausência de ação social coletiva.

A câmara setorial da indústria automobilística aparece no livro de Glauco, então, com uma extraordinária riqueza e vitalidade, em uma dimensão e natureza complexas e inovadoras. Ainda que ad hoc limitada setorialmente e com seus objetivos estratégicos pouco delineados, a câmara setorial da indústria automobilística foi precursora de outras e apontou para a necessidade de ampliação de seus objetivos e funções. Soube aproveitar-se de disputas no interior do governo, dos distintos posicionamentos empresariais e de uma manifesta ampliação da intervenção política nacional e cidadã por uma parcela dos trabalhadores e de seus sindicatos. Rompeu por algum tempo com políticas do governo Collor (abertura comercial indiscriminada, ausência de políticas defensivas e acentuada recessão das atividades produtivas) e mostrou a possibilidade do exercício democrático e de políticas públicas.

No entanto, o discurso e a prática neoliberal mostraram-se desde o início visceralmente opostos a quaisquer mecanismos democráticos regulatórios como as câmaras setoriais. Com sua recomposição, ainda no governo Itamar Franco, o que passou novamente a valer foi a maior desregulação dos mercados e da concorrência. Assim, todo e qualquer mecanismo regulador deveria ser eliminado da concorrência entre indivíduos, empresas, regiões e nações.

Aos indivíduos, restaria a relação direta e atomizada com o mercado, com o menosprezo das atividades coletivas e da solidariedade. Às empresas, restaria a concorrência sem bases reguladas, valorizando-se exclusivamente o curto prazo e os fatores tradicionais de custo e preço. As negociações, quando aceitas, dar-se-iam apenas no plano da empresa, com o menosprezo das questões nacionais, regionais ou setoriais. Ao Mercosul restaria uma integração onde a equalização de condições econômicas, mercados, condições e relações de trabalho far-se-ia tendo por base os países mais atrasados. Ao Estado nacional, subordinado e passivo em sua integração com a economia mundial, não caberiam políticas defensivas nacionais (câmbio, por exemplo) e setoriais (industriais, por exemplo) e restaria apenas a busca incessante de redução das condições e relações de trabalho.

O livro de Glauco Arbix analisa com extraordinária vitalidade o ambiente econômico de estagnação dos anos 80 e de hostilidade à produção industrial dos primeiros anos dos 90, acompanha o nascimento das câmaras setoriais, debate teórica e conceitualmente o corporativismo, avalia os acordos realizados e observa o despotismo do econômico, do pensamento único e da desestruturação do Estado, tão em voga desde a ascensão de Collor.

Entre a defesa da tese de doutoramento e a publicação de Uma Aposta no Futuro transcorreu mais da metade do governo FHC. Este período, senão longo, foi intenso e revitalizador da desregulação dos mercados e da concorrência. Como a primeira edição do livro deverá esgotar-se rapidamente pelo interesse que irá despertar nos estudiosos, sindicalistas, empresários e políticos democratas, talvez desde já Glauco pudesse pensar num posfácio para as seguintes edições. Afinal, quais as conseqüências das políticas de abertura passiva e indiscriminada do governo FHC, de ausência de políticas setoriais industriais ou agrícolas, de boicote às negociações setoriais ou nacionais, de sobrevalorização do câmbio e de acentuados juros? Apenas dificultam o crescimento econômico, favorecem o déficit das balanças comercial e de pagamentos, ampliam a dívida interna, desestruturam a produção e o emprego nacional? Ou as conseqüências deletérias destas políticas poderiam recolocar as condições de uma aposta no futuro de um país que necessita redefinir democraticamente suas políticas públicas e conformar um amplo projeto nacional?

Jorge Mattoso é professor do Instituto de Economia, pesquisador e diretor executivo do Cesit, da Unicamp. Autor de A Desordem do Trabalho e co-organizador de O Mundo do Trabalho e Crise e Trabalho no Brasil.