Estante

Paul Singer é o mais destacado teórico, no Brasil, de uma concepção de socialismo construído a partir das transformações das relações de produção sob o capitalismo - em suas palavras, da "hipótese de que o socialismo, enquanto modo de produção, teria de ser desenvolvido ainda sob a hegemonia do capitalismo, ou seja, como um modo de produção subordinado, integrando a formação social capitalista; por meio da "livre iniciativa dos trabalhadores em competição e contraposição ao modo de produção capitalista dentro da mesma formação social" (p.9). Uma utopia militante: Repensando o socialismo busca fundamentar esta hipótese em um quadro de conceitos e análises revitalizados a partir "do fracasso histórico da tentativa de alcançar - ou de construir' - o socialismo através da estatização dos meios de produção e da instituição do planejamento centralizado da economia"(p.9). Neste sentido, sua preocupação teórica fundamental é redefinir a revolução, estabelecendo outros conceitos do que seria revolução social e revolução política (e retomando noções como formação social e modo de produção, infra-estrutura e superestrutura). Exemplifica suas concepções por intermédio de uma análise da revolução social que instaurou o capitalismo (p. 23-62) e da revolução social socialista, iniciada na Inglaterra no século XIX como reação da classe operária à revolução capitalista (p. 63-134).

Uma formação social é composta por diferentes modos de produção.  O predomínio do modo de produção capitalista define o caráter capitalista da sociedade atual, mas ele compete ainda hoje no mercado com outros modos de produção de mercadorias, simples ou cooperativos, e coexiste com formas não mercantis de produção, como a pública e a doméstica. Assim,"o desenvolvimento de modos de produção socialistas em formações sociais capitalistas já está ocorrendo há mais de 200 anos"(p.10).

Com uma sistematização das análises da revolução industrial e da resistência operária de autores como Marx, Mantoux, Cole, Dobb, Landes e Thompson, Singer tece um amplo quadro histórico pelo qual o desenvolvimento do modo de produção capitalista, propiciado pela grande maquinofatura, gerou um movimento que "implantou no capitalismo, ainda em constituição, instituições destinadas a enfrentar e/ou compensar as tendências à concentração da renda e da propriedade, de exclusão social e de destruição criadora, inerentes à dinâmica do capital... Os implantes socialistas no capitalismo resultam de algo como um processo de tentativas e erros... (Não da] concretização de um projeto mas o resultado de inúmeras lutas no plano político, social e econômico, que se estenderam por um crescente número de nações, à medida que a revolução capitalista foi se estendendo a novos países e continentes" (p. 132). Esta recuperação corresponde à maior parte do livro e é a mais rica, mostrando detidamente como o capitalismo engrenda um movimento de resistência ao seu desenvolvimento. Concordo com Singer que, neste momento histórico defensivo que vive o movimento socialista,o balanço histórico-crítico das formas organizativas que reforçam os laços de solidariedade entre os explorados e oprimidos é sumamente importante.

Mas creio que a "reelaboração conceitual" empreendida no livro não faz justiça à sua parte histórica. Isso se deve, em certa medida, a seu caráter sumário (cerca de dez páginas na introdução e na parte 1). Mas não só.

Para Singer, é "necessário separar o conceito de revolução social do de revolução política" (p.11). Revoluções sociais constituem processos de mudança entre formações sociais (p.10 e 19). Ele recupera, nesta definição, a célebre passagem de Marx do prefácio de Para uma crítica d'A economia política, enfatizando que se é verdade que, para o capitalismo,"a revolução social é a transformação superestrutural, condicionada e exigida pela evolução das forças produtivas; para o socialismo ela não foi condicionada pelo desenvolvimento das forças produtivas, resultando basicamente de lutas reativas do movimento operário e aliados contra os prejuízos econômicos acarretados pela dinâmica cega da acumulação" (p.20). Para o desenvolvimento da revolução social capitalista, isto é, para a instauração de formações sociais capitalistas, as três grandes revoluções burguesas foram cruciais, rompendo impasses e detonando torrentes de inovações institucionais, submergindo resistências que tinham paralisado estes processos por longos períodos. Já "no caso da revolução socialista,o papel das revoluções proletárias é bastante controverso" (p.21). Singer duvida que elas tenham contribuído para o avanço da revolução socialista, para o desenvolvimento de formas socialistas no capitalismo que conduziriam à superação da sociedade capitalista.

Creio que temos aqui duas questões de ordem diversa. De um lado, Singer mescla de maneira indissolúvel, em sua argumentação, a defesa do socialismo como emancipação e autogestão e a rejeição da organização de uma economia socialista em bases planificadas, afirmando que a planificação centralizada é incompatível com a democracia e portanto com a autogestão. 0 socialismo presssupõe a transferência do controle efetivo dos meios de produção dos capitalistas aos trabalhadores e isso requer que os trabalhadores desejem isso e estejam habilitados a geri-los. Mas nas várias experiências stalinistas, o controle efetivo ficou nas mãos do poder estatal. Singer afirma que isso não constitui um desvio totalitário de revoluções políticas que, de outro modo, desembocariam no socialismo, mas uma exigência do próprio planejamento centralizado.

Para Singer,a organização em bases planificadas da economia seria intrinsecamente totalitária; ele diz isso, com outras palavras, em um texto em que comenta A economia do socialismo possível, de Alec Nove: "a questão é que a liberdade individual é incompatível com o planejamento centralizado" (TD n º 29, p.94). E fundamenta isso, ratificando os argumentos de Nove:

Marx teria se equivocado ao defender a planificação como forma de organização da economia sob o socialismo, já que ela pressupõe o fim da escassez. Ora, como novas necessidades estão sempre surgindo,"continuamos tão longe quanto estávamos [na época de Marx] da superação da escassez". Uma sociedade de abundância seria então inatingível. E portanto a única forma de alocação fundamental dos recursos, mesmo em uma sociedade socialista continuaria sendo o mercado - e não como defende parte importante do movimento socialista, uma planificação central democraticamente gerida, que pelo menos reduza o mercado a um papel subordinado na formação social. Há pelo menos duas outras explicações alternativas ou complementares que não podem ser descartadas sumariamente (e Singer não trata delas): a supressão da democracia foi o desfecho da luta política no curso do processo revolucionário, em que o projeto socialista foi derrotado particularmente no curso da revolução russa; ou a burocratização resultou fundamentalmente do atraso econômico. De minha parte, desconfio de qualquer determinismo muito forte. Por que não pode haver uma planificação democrática? Imagino que Singer remeteria seus leitores para o livro de Nove, mas de qualquer maneira isso teria que ser tratado com alguma abrangência em Uma utopia militante.

De outro lado, e esta é uma discussão bastante diferente da primeira, que não é tratada enquanto tal, ficamos com a impressão que a revolução política socialista deve ser descartada ou ser colocada como uma hipótese muito remota. A trilha fundamental para o socialismo já teria sido indicada pela social-democracia, que mostrou que o poder de Estado poderia ser compartilhado entre representantes do movimento operário e do capital (para Singer, processo equivalente a uma revolução social e política) (p.157). "Após a adoção da democracia política, mudanças superestruturais profundas podiam ser alcançadas sem a necessidade de desalojar do governo os seus eventuais ocupantes. Isso mudou o caráter dos movimentos revolucionários. Antes da democracia, o objetivo tático destes movimentos tinha de ser a tomada do poder, pois sem ela os demais objetivos eram inatingíveis. Mas, dentro da democracia, o objetivo tático passou a ser mobilizar a opinião pública para eventualmente conquistar as mudanças por meio de medidas políticas e/ou a adoção de novos valores e novas condutas por parte da população" (p.160). As conseqüências desta posição ficam mais claras na parte IV de Uma utopia militante – um ensaio, com todas as qualidades da obra de Paul Singer, sobre a evolução do capitalismo de sua origem até a atualidade, como uma seqüência de revoluções e contra-revoluções, analisando as diferentes etapas do capitalismo.

Singer trata também dos problemas colocados hoje pela combinação entre a terceira revolução industrial e o acirramento das tendências à conglomeração. Para ele, estas estruturas empresariais mais vastas provavelmente se transformem em entes mistos, com características de firma e de organizações políticas. Ganharão formas mais autoritárias e repressivas, caso se preservem como firmas unas, ou formas mais democráticas, caso trabalhem a descentralização e autonomia de suas partes como firmas-redes (p.177-181).

Para a crescente massa de excluídos, Singer aponta o ressurgir do cooperativismo e sua articulação em uma “economia solidária”. O calcanhar-de-aquiles dela é a carência de capital. Mas “se o movimento operário, que partilha o poder estatal com o capital, quiser alavancar o financiamento público da economia solidária, a cara da formação social vai mudar. Um novo modo de produção capitalista”(p.182). Isso, todavia, ainda parece ter um papel subordinado face às transformações na forma de organização do grande capital. Singer enfatiza que “uma volta pura e simples ao capitalismo dirigido dos anos dourados também não é possível. Para tanto, uma retomada do controle estatal sobre a movimentação internacional dos capitais privados seria indispensável. Além disso, seria preciso encontrar uma solução não reacionária ao impasse da estagflação"(p.176) - em seu diagnóstico do capitalismo atual, o neoliberalismo surge como uma reação da classe capitalista ao impasse da estagflação, que resulta das pressões inflacionárias decorrentes de conflitos distributivos; o capital o resolve eliminando o poder de pressão dos trabalhadores, realimentando o exército industrial de reserva por meio do desemprego estrutural.

A conseqüência é que democratizar a empresa (e me parece que Singer se refere às grandes corporações) acaba se colocando como um imperativo, que conclui: "para além do neoliberalismo, pode-se vislumbrar transformações sistêmicas do capitalismo em gestação. Por enquanto, empresa capitalista e democracia são antípodas. Estamos diante de um dilema histórico: ou a liberdade do capital destrói a democracia ou esta penetra nas empresas e destrói a liberdade do capital" (p.182).

Mas seria a democratização da grande empresa capitalista, nas condições sumamente regressivas do capitalismo globalizado, um horizonte histórico mais plausível para organizar a nossa atuação do que a revolução política socialista, pensada à luz das lições do trágico século que se encerra? Qualquer que seja a resposta, e me parece que ela não está apenas no plano teórico, a leitura deste livro é muito estimulante e nos leva ao centro do debate sobre o socialismo.

José Corrêa Leite é membro do Conselho de Redação de TD e editor do jornal Em Tempo