Estante

Vivendo no Fim dos TemposVivendo no Fim dos Tempos, o livro mais recente de Slavoj Zizek, lançado pela Boitempo Editorial, aborda o fim das políticas universalistas; a crise dos movimentos identitários e como a direita liberal se apropriou da agenda esquerdista; a crise profunda em que se encontram as esquerdas ao redor do mundo, que, sistematicamente, ao chegar ao poder se aliaram a grupos conservadores e abriram mão de suas agendas mais progressistas, como aborto, drogas, LGBT etc.

O avanço do fundamentalismo

Um problema: a maneira como os partidos de esquerda, antes arautos do desassossego social, abriram mão de tal espaço e, assim, surgiram os populistas fundamentalistas, embrenhados numa retórica socialista revestida com a ideologia religiosa. O autor atenta para o crescimento desses grupos, que fez com que os partidos de esquerda os reunissem em suas fileiras, resultando em fundamentalistas na esquerda e na direita. Como consequência desse fenômeno da política recente, segundo Zizek, observamos o surgimento do “populismo fundamentalista de direita”. O que torna ainda mais interessante a análise é que o filósofo desenha esse quadro não apenas a partir da Europa – retrata um cenário que se alastra nos Estados Unidos e na América Latina, inclusive com referências diretas sobre o Brasil.

Frente a isso, questiona: mais uma vez a esquerda falhou? E, para tanto, lembra que ascensão do nazismo significou que a luta revolucionária à época falhou, e o mundo pós-Segunda Guerra viu crescer e tomar corpo o “mundo global, o mercado global e o império global”. E a partir desse contexto a esquerda se recriou em vários cantos do mundo com novas siglas e organizações. Hoje, porém, ao ter chegado ao poder e se aliado a forças que antes repudiava, tornou-se confusa, mais uma vez, para seu público, e nesse tempo surgiram os grupos políticos com um discurso muito claro: economia de mercado e sociedade com base nos valores cristãos ou em algum livro “sagrado” que oriente determinado séquito. Vivenciamos, assim, nas palavras do autor, a “transformação da força emancipatória em populismo fundamentalista”.

A impressão que se tem, às vezes, é que Zizek, apesar de toda a sua empolgação frente a novos movimentos e organizações, em determinados momentos, é o que mais corre das utopias e acaba por tratá-las com ironia. No final das contas, pede uma volta ao marxismo leninista, afirma que é preciso retomar algumas diretrizes do antigo líder soviético.

Em seu livro Em Defesa das Causas Perdidas, já havia polemizado com autores que têm proposto desde o fim da década de 1990 novos paradigmas à política esquerdista e também às organizações sociais. Negri e Preciado são classificados como “ultrautópicos”, ou, nas palavras de Zizek, “emancipatórios radicais”, ao propor novas organizações sociais, formas de fazer política, ao vislumbrar – destaque para a espanhola Beatriz Preciado – um mundo de lutas onde as questões étnica e identitária sejam superadas, pois essas formas de luta estão esgotadas e não dão mais conta de transformar o sistema liberal tão criticado pelo autor.

Zizek parece não sair do lugar, ao contrário, volta ao passado (no caso à Revolução Soviética) para que possamos entender o que deu errado e, assim, objetivar uma transformação do presente. A partir disso podemos concluir que o título de sua obra seja uma crítica profundamente irônica: o fim do mundo para que novas ideias surjam?

Ainda sobre a organização da esquerda atual e como esta tem lidado com as populações faveladas, que “são um grande potencial de movimentação e mobilização política”, Slavoj Zizek alerta: se os partidos de esquerda não começarem a trabalhar a organização política e social dessas populações, quem o fará serão os “fundamentalistas religiosos”.

Luta de classes do século 21?

A relação entre os sujeitos, os produtos, o trabalho e o valor de troca é levada à última consequência no livro. O filósofo se apoia em trabalhos recentes e questiona as análises propostas por Marx em O Capital a respeito do trabalho; dialoga com o trabalho de Adorno e Horkheimer, especificamente com a Dialética do Esclarecimento e o desaparecimento/destruição da luta de classes. Zizek problematiza a luta de classes e tenta trazê-la para os tempos atuais, atenta para uma “liberdade” da troca dentro dessa relação e para a capacidade infinita do sistema capitalista/mercado, quando em crise, se recuperar e se reinventar, e a partir disso questiona se os trabalhos desenvolvidos por Marx e outros pensadores (de mesma linha) podem dar respostas à crise capitalista atual.

Acima de tudo o livro deixa claro que a crise que se espalha não afeta apenas o mercado, mas as ideias sobre novas políticas para o mundo, como diz o autor, “um mundo pós-político”, que é também um lugar que vive em crise com seus partidos políticos. Além de uma crise de ideias e respostas para a crise capitalista, o mundo está de frente para o “apocalipse”, mas pode ser que depois do “dilúvio apocalíptico”, assim como na Bíblia, se reerga. Sobre os rumos e propostas para a contenção da crise, o que observamos na obra é o sistema capitalista editando novas medidas que afetam diretamente os trabalhadores e as classes mais populares.

A política de austeridade defendida por Angela Merkel é o corte do investimento governamental sobre os serviços públicos: educação e saúde, por exemplo. E como bem coloca Zizek, por mais que a população se revolte, não existe salvação do capitalismo sem o resgate dado aos bancos (Espanha, Irlanda e Estados Unidos) visto que todas as economias dependem da salvação destes.

Retorno ao marxismo?

Será que devemos realmente ficar revirando os escritos de Marx, revendo-o e atualizando para buscar entendimento sobre a crise que se abate não apenas sobre o mundo econômico, mas, acima de tudo, sobre o mundo político e suas representações partidárias? O debate estabelecido por Zizek em seu ...Fim dos Tempos é brilhante, mas um certo mal-estar vai tomando conta à medida que nos aprofundamos no debate.

Sem sombra de dúvida a obra de Marx ainda pode ajudar na elucidação de fatores e tragédias produzidos pelo mundo do capital. É igualmente fato, porém, que dois séculos correram desde o mundo estabelecido por ele; o capital ganhou novas formas de valorização e também no que diz respeito à criação de relações sociais a partir dos objetos. Ler Marx para o mundo de hoje é cada vez mais equivocado, isto é, se for uma leitura isolada, sem levar em conta o contexto epistemológico do capital e sua crise neste século 21. A impressão que se tem é que o fim dos tempos se abate sobre nós a cada página que avançamos do livro, mas podemos arriscar que seja este mesmo o objetivo do autor: a coisa vai melhorar só depois da catástrofe definitiva do capital.

Ao mergulharmos na obra de Zizek, pelo menos nesta, a sensação ao chegar ao término do livro é de vazio, como se não houvesse possibilidade de uma ação política além do que está posto – liberalismo e comunismo – e de que devemos voltar aos ideais comunistas, uma espécie de retorno ao básico da cartilha comunista/marxista, para repensar o que deu errado (o autor se aprofunda nessa questão). Mas, se pensarmos no que foram os anos 1990 e todo o debate que a década envolveu, não foi exatamente isto: o mundo pós-Muro de Berlim estupefato e buscando entender o que deu errado na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas?

Ao tempo em que o filósofo vislumbra um apocalipse político, pensadores como Negri e Preciado ultrapassam a fronteira do “fim dos tempos” e apresentam novas maneiras de pensar um novo mundo político. Zizek está certo quando atenta para o forte grau eurocêntrico de Negri, mas, por se tratar de um objeto político, assim como o foram o Manifesto Comunista e O Capital, tal projeto pode ser adaptado e repensado segundo o país do grupo político que visa estabelecer um projeto de “Multidão” como meio para superar as velhas dicotomias do mundo político fundado na Revolução Burguesa. Apesar de fazer pesadas críticas às velhas dicotomias esquerdistas, o livro de Zizek nos incita a repensar a proposta comunista como solução para o caos econômico-político global. Será?

Marcelo Hailer é jornalista e mestrando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP

Referências
Michael Hardt e Antônio Negri. Multidão: Guerra e Democracia na Era do Império. Rio de Janeiro. Editora Record: 2005.
Beatriz Preciado. O Manifesto Contrassexual. Madri. Editora Opera Prima: 2002.
Slavoy Zizek. Em Defesa das Causas Perdidas. São Paulo. Editora Boitempo: 2011.