A Agência Popular Solano Trindade, na região de Campo Limpo, é uma iniciativa de fomento à cultura atrelado a desenvolvimento local de extrema importância
A Agência Popular Solano Trindade, na região de Campo Limpo, é uma iniciativa de fomento à cultura atrelado a desenvolvimento local de extrema importância
A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte
A cultura comum, ou ordinária, como definiu Raymond Williams, é de todos. Assim, “a cultura é todo um modo de vida, e as artes são partes de uma organização social que é claramente afetada de forma radical por mudanças econômicas” (Williams, 1958).
A afirmação acima contrapõe a evolução do conceito de cultura em seu processo histórico definido pelos cânones das belas-artes. O resultado de tal processo são políticas culturais que priorizam expressões artísticas em sentido estrito e se referem a um “conjunto diversificado de demandas profissionais, institucionais, políticas e econômicas, tendo, portanto, visibilidade em si própria” (Botelho, 2001). Mas, então, onde estão as políticas públicas para a definição de cultura apontada por Williams? Talvez a resposta esteja, segundo Isaura Botelho, na dimensão antropológica, em que a cultura é compreendida como modo de vida, que se produz pela interação social, modos de pensar e sentir, na construção de valores, no manejo de identidades e sociabilidades (Botelho, 2001).
Alguns programas de democratização da produção cultural, como o Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e o Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, são referenciais de políticas focadas nos processos e nos produtos culturais, na diversidade cultural e na articulação em redes, ou seja, apontam para a dimensão antropológica. No entanto, na dimensão econômica da cultura sucumbem aos processos de sustentabilidade.
A pesquisadora Isaura Botelho, contudo, sugere dois tipos de investimento para fomentar a produção na dimensão antropológica. O que interessa à discussão é o primeiro, que se refere a “uma articulação das pessoas diretamente interessadas, unindo, pelos laços de solidariedade, demandas dispersas em torno de objetivos comuns, formalizando-as de modo a dar essa visibilidade ao impalpável, em torno de associações de tipos diversos” (Botelho, 2001).
O primeiro investimento sugerido pela autora converge nas dinâmicas de produção cultural que vêm se estabelecendo em diversas localidades da cidade de São Paulo. Atualmente, existe uma série de coletivos engajados em promover a democratização dos meios de produção cultural. As iniciativas juvenis se mostram mais pujantes, pois estão abertas ao diálogo, às novas tecnologias, a novas experiências – e preferem se arriscar mais para preservar a autonomia, o protagonismo e a própria identidade. Alguns projetos do Programa VAI, que atende um perfil juvenil, surpreendem pelo enorme impacto que geram nas regiões onde são implantados.
Agências de fomento à cultura
Nesse sentido, vale ressaltar uma ação que vem ocorrendo no extremo sul da capital paulista, na região de Campo Limpo, onde pulsa uma iniciativa juvenil de fomento à cultura de extrema importância para a compreensão das novas possibilidades de desenvolvimento local atreladas à economia da cultura. Essa iniciativa é a implantação de uma agência de fomento à cultura popular, a Agência Popular Solano Trindade.
No entanto, para entender como a cultura passou a mobilizar uma ação tão expressiva na região, é necessário buscar suas origens nas ações dos movimentos sociais que ali se organizaram na década de 1960 para lutar por melhor qualidade de vida. Com o envolvimento das mulheres nas lutas políticas, sociais e comunitárias, em 1987 foi fundada a União Popular de Mulheres de Campo Limpo e Adjacências (UPM), no bairro Maria Sampaio, para organizar um espaço de reivindicação e desempenhar um papel de pressão política como sociedade civil. Em 2005, a associação foi contemplada com um Ponto de Cultura do Programa Cultura Viva para atuar com atividades culturais no âmbito de oficinas para a terceira idade e interações com artesanato, desencadeando ações voltadas para a geração de renda.
Em 2009, por meio de parceria entre a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senes-MTE), o Instituto/Banco Palmas, a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP) e a União de Mulheres, surgiu a possibilidade de constituir um banco comunitário (Bergamin, 2011, p.3).
Nesse contexto, nasceu o Banco União Sampaio, que contou com recursos para estruturação do espaço físico, profissionalização, fabricação da moeda, o sampaio, e criação de lastro. Segundo Rafael Mesquita, coordenador cultural da associação, o nome do banco e o da moeda foram escolhidos por um processo de eleição popular. Além do lastro de R$ 2 mil para a emissão de sampaios (que circula no comércio e nos serviços locais), o banco obteve crédito de R$ 8 mil para empréstimos produtivos. Os recursos destinam-se a empréstimos pessoais, sem taxa de juros, para necessidades emergenciais, e crédito produtivo, com empréstimos de até R$ 500 e juros inferiores aos de mercado, para investimentos em empreendimentos próprios (Bergamin, 2011, p.5).
Entretanto, pelas características da equipe do banco e pela experiência do Ponto de Cultura, criou-se uma linha de crédito cultural para financiar processos e produtos culturais. Essa iniciativa permitiu articular uma rede de trocas de contatos e serviços ligada às produções periféricas que extrapolou para a zona sul. O fomento do banco, contudo, ficou limitado diante da demanda por crédito cultural, e as discussões caminharam para a concepção da Agência Popular Solano Trindade.
Moeda Cultural Solanos
A agência é um projeto coletivo, que teve como ponto de partida o financiamento do Programa VAI. Suas ações são orientadas pela cooperação e pelo associativismo de agentes culturais preocupados com o desenvolvimento cultural e o fortalecimento da identidade da região. A agência pesquisa e implementa alternativas para sustentabilidade, profissionalização, ferramentas de comunicação, formação de público, ampliação de opções de consumo cultural e, consequentemente, estímulo ao desenvolvimento local.
Entre as ferramentas escolhidas para fortalecer o desenvolvimento local, a Moeda Cultural Solanos é uma alternativa ao escambo. Seu objetivo é facilitar a troca de produtos e serviços culturais na cadeia de produção cultural, o que acaba por impactar diretamente na ampliação do consumo cultural e na formação de público. A moeda é lastreada pelo trabalho, mas sua circulação beneficia a redistribuição de recursos na esfera da própria localidade. Rafael Mesquita, também coordenador da agência, diz que muitas vezes as ações culturais ficam emperradas por falta de dinheiro; entretanto, quando se identificam possibilidades além das relações em espécie, como o escambo, o dinheiro se torna secundário, a partir da riqueza que a cooperação pode agenciar e transformar. Uma ação cultural viável para todos.
Com o fomento recebido do Programa VAI (2011 e 2012) e do Prêmio Economia Viva, a agência realizou um amplo trabalho de mobilização e adesão para emplacar a proposta e executou uma extensa agenda de reuniões abertas para a construção das seguintes frentes de atuação: fomento, Fundo Popular de Cultura, Linha de Crédito Cultural e captação de recursos; produção, democratização do acesso aos meios de produção cultural, moeda solanos, criação e manutenção de espaços de produção coletiva; comercialização, escoamento da produção, novos espaços de comercialização, representação jurídica, portfólio dos cadastrados; e comunicação, circulação, fruição e difusão da produção, articulação com outras redes, parcerias.
Atualmente a agência aglutina cerca de duzentos produtores de arte e cultura, oferece diversificada carteira de serviços e tem sede física, que conta com uma estrutura de ateliês, estúdio de gravação, estúdio de audiovisual, escritório popular e profissionalização. Além do espaço físico, um portal, ainda em elaboração, terá loja virtual, TV e rádio.
“Cultura como um modo de vida”
A dimensão notória das práticas desenvolvidas pela agência para fomentar a cultura em suas três dimensões se confirma à medida que as ações são realizadas por esses protagonistas. Embora tenham, em parte, recursos de políticas públicas, as ações não são responsáveis por esse complexo arranjo local. O que o garante é compreender a “cultura como um modo de vida” para fortalecer laços comunitários, gerar economia local, formar seus públicos e profissionalizar a classe produtora de arte e cultura.
Apesar de previsto pelo Plano Nacional de Cultura o estímulo à dimensão econômica, as políticas são inexpressivas no campo da democratização dos meios de produção cultural. O Plano da Secretaria de Economia Criativa (SEC-Minc) prevê estímulo aos arranjos produtivos locais e à criação de moedas, mas ainda não há nada concreto. Espera-se, no entanto, que leve em consideração as experiências de ações coletivas de economia da cultura que estão pululando pelos territórios e as tenha como um referencial a seguir.
Ana Paula do Val é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da USP e especialista em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris-8. Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Fundação Armando Álvares Penteado e em Artes Plásticas pela Stadelshule – Schule Belletristik de Frankfurt. É pesquisadora de Políticas Públicas para o Acesso à Informação (GPOPAI-USP)
Referências
BOTELHO, Isaura. “As dimensões da cultura e o lugar das políticas públicas”. São Paulo em Perspectiva, 15 (2), 2001.
WILLIAMS, Raymond. A Cultura é de Todos (Culture is Ordinary). 1958. Tradução de Maria Elisa Cevasco. Departamento de Letras da USP.
BERGAMIN, Marta A. “Moeda social em São Paulo: inventando novos arranjos comunitários”. XV Congresso Brasileiro de Sociologia. Curitiba (PR). Julho de 2011.