Política

Memória, por excelência, é o terreno privilegiado da atividade política de Fúlvio Abramo, 78 anos de idade e 60 de combate socialista

 

 

Memória é a especialidade do Centro de Documentação Mário Pedrosa, o Cemap. Memória é, também, a herança viva dos revolucionários das gerações passadas que depositam todo o seu aprendizado na construção do jovem Partido dos Trabalhadores. Memória, por excelência, é o terreno privilegiado da atividade política de Fúlvio Abramo, 78 anos de idade e 60 de combate socialista. Fundador e presidente do CEMAP desde 1981, ele é também militante do Partido dos Trabalhadores.

Dentro do Cemap, um dos poucos núcleos que têm como objetivo recuperar a história do movimento operário, Fúlvio Abramo reúne documentos, fotos e depoimentos do passado. Publicou, este ano, em colaboração com o historiador Dainis Karepovs, o livro Na Contracorrente da História (editora Brasiliense), com os documentos mais importantes da primeira organização trotskista brasileira, da década de trinta, que até hoje estavam desaparecidos.

Para dentro do PT, ele traz uma vida inteira de luta, uma luta que já é tradição em sua família. O seu avô materno, por exemplo, Bôrtolo Scarmagnan, anarquista ativo, fazia discursos em praça pública ainda quando da greve de 1917, em São Paulo. O seu sogro, por outro lado, o comunista Rudolf Josip Lauff, antes de chegar ao Brasil, havia combatido no Exército Vermelho, e acompanhado o trem comandado por Leon Trotsky, que percorria a vasta extensão da Rússia revolucionária invadida por potências estrangeiras.

Em sua casa, nas proximidades da Universidade de São Paulo, onde vive com a mulher, Anna Steffania Lauff, de 74 anos, Fúlvio Abramo concedeu esta entrevista, no início de novembro. Nela, ele fala de memória. Da sua memória política. Da memória política dos trabalhadores brasileiros. Memória, afinal, é o nome da seção que ele vem inaugurar em TEORIA E DEBATE.

Comecemos pelo ano de 1917. Greve Geral no Brasil, vitória da Revolução Bolchevique na Rússia, você, aos 8 anos de idade, entre duas influências: o humanismo de seu pai, Vicenzo, e o anarquismo inflamado de seu avô, Bôrtolo.

Antes eu faço questão de frisar que não falo de minha pessoa, da minha participação pessoal. O que quero focalizar é, através desta minha participação, por modesta que ela tenha sido, as fases da história recente do nosso país e do nosso movimento de esquerda. A influência da educação elitista que meu pai deu a mim e meus irmãos começava pela grande biblioteca que ele sempre colocou à nossa disposição. Desde criança nós tínhamos que aprender a falar e escrever italiano, francês e português, como se fossem nossas línguas próprias. Além disso, no Dante Alighieri aprendíamos muito bem literatura universal, história etc. A Divina Comédia, por exemplo, nós passamos três anos lendo, comentando e estudando. Sem falar nos clássicos latinos e gregos. À parte esta educação clássica e aparentemente conservadora, recebíamos o influxo da participação do meu avô, que era forte dentro da família. Não apenas na minha família, mas também na família da outra filha do meu avô Bôrtolo, a Eginia, que era casada com um socialista italiano chamado Ettore Tommasini. Estavam sempre conosco, com seus filhos Alfio, um moço muito inteligente, que se dedicou precocemente à luta sindical, e o Arnaldo, mais novo. Meu avô, ajudado por seu filho Olindo, era confeiteiro. Uma vez ele juntou muito dinheiro e não achava certo um anarquista ter dinheiro. Então visitou os parentes na Itália, e quando voltou não tinha mais nenhum tostão. Como ele tinha seu próprio negócio, não era sindicalizado, mas era um anarquista superativo, que fazia discursos em praça pública. O último desses discursos que eu vi foi na praça da Sé, acho que em 1926. Ele falou por quase uma hora, naquela mistura de italiano, venetto e português, que realmente mantinha a massa empolgada. Era uma manifestação conduzida pelas centrais sindicais.

E a greve, Fúlvio?
A greve de 17 alterou totalmente o nosso ritmo de vida. Parecia uma revolução dentro da nossa rotina. A gente morava no lpiranga, pertinho do centro das grandes greves das indústrias têxteis dos Jaffé, e das indústrias de móveis. A gente assistiu a diferença entre os dias comuns e os dias de greve. Nós sofremos o bloqueio da cidade, quando o comitê de greve tomou conta da cidade inteira e organizou a distribuição de alimentos para a população. Para nós estes alimentos não chegavam. Passamos quase vinte dias comendo somente pombas - nós tínhamos uma grande criação de pombas - e polenta (risos). Eu me lembro muito bem. Havia falta de tudo, até de bondes. Os bondes não circulavam no lpiranga e muitas vezes passavam colunas de operários organizados pela avenida Independência, onde a gente morava. De repente os bondes voltaram e eu ouvi dizer, já naquele tempo, que os estudantes de Direito do largo de São Francisco tinham tomado a direção dos bondes.

Os estudantes foram lá furar uma greve que não era deles?
Pois é. Anos mais tarde eu vi uma piada que foi publicada no jornal A Platéia, de influência anarquista, e que depois passou a ser de influência comunista. Foi uma piada imortal. Dizia que havia uma greve em perspectiva e que os estudantes de Direito tinham bravamente se voluntariado a substituir os grevistas. A Platéia dizia então que dentro em breve seria declarada a greve das prostitutas e que a Faculdade de Direito já tinha se proposto a substituí-las.

Voltando a seu avô. Ele foi responsável por suas primeiras leituras anarquistas?
Mas é claro. Eu passava boa parte de minhas férias na casa de meu avô, que fazia com que eu lesse pra ele, em voz alta, os velhos anarquistas, como Kropotkin e Bakunin. Eu tinha dez, onze anos. Era uma forma muito inteligente dele fazer a gente se interessar pelo assunto. Como já líamos muito bem o italiano... porque em português não havia nada.

E quando você partiu para os primeiros agrupamentos?
Foi no que eu chamo de segunda fase de minha formação política, a partir de 1924, com a tentativa de golpe da Coluna Prestes. Nessa época eu já começo a discutir política com meu primo Arnaldo o meu irmão mais velho, Athos. Athos era poeta e crítico de teatro. Desde criança, eu e minha irmã Lélia participávamos de um grupinho de teatro do Athos. E foi, aliás, nesse teatrinho que se chamava Apolo, lá no Ipiranga, que minha irmã começou sua carreira de atriz. Bem, mas eu já discutia política com eles, mas naquela ocasião eu não aderi porque tinha certos problemas, coisas que para eles estavam resolvidas e para mim não estavam. De forma que não entrei no grupinho que eles formavam, Athos, Arnaldo, o Alfio e a minha prima Athia, que era uma das mulheres mais bonitas do mundo. Casou-se com meu irmão Athos. São os pais de Perseu Abramo. Pelo nome dela, Athia quer dizer atéia, você já vê. Só mesmo anarquistas para dar um nome desses.

Este grupo já era marxista?
Não. Mas já se interessavam pela Revolução Russa. Mas no Brasil a Revolução Russa teve uma repercussão muito torcida, porque ela não chegava aos militantes de base, diretamente. Ela era apenas acessível pelo que se publicava em espanhol ou então em italiano. Ficou acessível então só para uma pequena elite que sabia ler nestas línguas. Por isso, inclusive, a formação do Partido Comunista no Brasil foi tão prejudicada. Tão prejudicada que os anarquistas pensavam que a revolução era uma revolução anarquista. Tanto que formaram o primeiro partido comunista, formado pelo Leuenroth, e que depois não foi reconhecido pela Internacional - mas foi dos anarquistas pensavam que a Revolução era fundado no Brasil. Tão mal informado eles estavam. Agora: nós não estávamos desinformados.

Mas esse grupo do Athos não tinha relações com o PC reconhecido, o que foi fundado em 1922?
Tinha sim senhor, o Alfio era do PC. Eu é que não queria aderir porque tinha certas discordâncias.

Explique melhor essas discordâncias.
Toda a coisa chegava para nós de uma forma muito esquemática. Naquele tempo não havia análises que chegassem aqui sobre o movimento. Tinha o livro do John Reed, Os Dez Dias que Abalaram o Mundo. Foi uma forma fantástica de comunicação da Revolução com o resto do mundo, mas através do entusiasmo e do sentimento. Circulou entre nós em italiano. Mas eu sempre resisti a aderir por causa da concepção errada da forma que se poderia dar à revolução mundial, e também por causa da burocracia. Isso foi até 1928, quando eu, de uma vez por todas, me defini como contestador da linha do Partido Comunista, antes mesmo de conhecer Lívio Xavier e Mário Pedrosa, e antes mesmo deles romperem com o PC e começarem a sua luta contra a direção. Embora, é verdade, as discussões que eles colocavam viessem desde 1926. Heitor Ferreira Lima já me disse - e isso vou confirmar com ele numa pesquisa que faremos na revista do PC entre 1924 e 1926 - que aqueles problemas levantados pelos documentos trotskistas da década de 30, publicados no livro Na Contracorrente da História, em parte, já eram preocupações publicadas na revista do PC naquele período.