A crise financeira que corrói o capitalismo mundial tem origem na crescente ineficiência do sistema de pagamentos
A crise financeira que corrói o capitalismo mundial tem origem na crescente ineficiência do sistema de pagamentos
Em 19 de outubro de 1987, a Bolsa de Valores de Nova Iorque sofreu a maior queda de sua história, queda imediatamente acompanhada pelas demais Bolsas de todos os países capitalistas. Caíram violentamente as cotações em Londres, Paris, Tóquio, assim como em São Paulo e no Rio de Janeiro. As sirenes de alarme soaram estridentemente na media eletrônica e impressa do mundo inteiro. A lembrança do fatídico outubro de 1929 sugeria que a economia mundial se encontrava diante de nova catástrofe, semelhante àquela que marcou os anos trinta. Tanto mais que nos últimos anos se multiplicavam as divergências de que a desenfreada especulação financeira estava reproduzindo as condições que causaram o estouro em Wall Street há quase meio século.
A crise financeira, sinalizada pela queda das Bolsas, já vem se desenvolvendo há duas décadas e tem a ver com as transformações que estão ocorrendo no relacionamento entre as grandes potências capitalistas, entre estas e os demais países e no panorama sócio-político interno das várias nações. A queda das Bolsas é tipicamente um epifenômeno, uma manifestação superficial duma crise muito mais profunda, cujos desdobramentos deverão impor, mais cedo ou mais tarde, uma reestruturação da economia mundial.
As Bolsas caíram, em fins de outubro, porque os aplicadores descobriram subitamente que as ações estavam sobrevalorizadas em relação aos títulos de crédito, que rendem juros. Ações são títulos de propriedade de empresas, que proporcionam dividendos aos seus possuidores. Os dividendos são, em princípio, proporcionais aos lucros, mas apenas uma certa parcela dos lucros são distribuídos sob a forma de dividendos. Os lucros não distribuídos são usados para financiar investimentos, que devem assegurar lucros maiores no futuro.
A cotação das ações reflete a opinião dos aplicadores sobre os lucros futuros das empresas. Compram-se ações em função não só dos dividendos a serem distribuídos, mas sobretudo da valorização futura, que depende das inversões realizadas pelas empresas e naturalmente da conjuntura econômica do país.
No capitalismo, a evolução da conjuntura não pode ser antecipada com certeza. A cada momento, os aplicadores se dividem em dois "times": os otimistas e os pessimistas. Os otimistas compram ações dos pessimistas. Se o volume de ações ofertadas pelos pessimistas for maior que o demandado pelos otimistas, as cotações caem, o que confirma as previsões dos pessimistas, independentemente do que se passa na economia real. Os pregões na Bolsa são diários e o curso das cotações influi no ânimo dos aplicadores. Uma queda generalizada das cotações, num dia, reforça o "time" dos pessimistas. No dia seguinte, o volume de ações colocado à venda aumenta. Ao passo que o volume demandado cai. Segue-se nova queda das cotações, nova passagem de aplicadores do "time" de otimistas ao de pessimistas e assim por diante. Foi o que aconteceu em Wall Street em outubro último. As cotações vinham caindo há vários dias. De repente, o desequilíbrio entre oferta (pessimistas) e demanda (otimistas) é tão grande que as cotações não param de cair. Não há limite para a queda, pois quem consegue vender antes ainda alcança um preço melhor pelas suas ações e pode até recomprá-las, algumas horas depois, a um preço mais baixo. Este movimento para baixo das cotações tem inércia tão forte que pode levar a uma situação em que haja só vendedores, sem que alguém se disponha a comprar. É o colapso, que arruína milhões de aplicadores, pois muitos compram ações a crédito, que não têm como honrar quando o valor de sua carteira de ações se aproxima de zero. O que pode arrastar ao desastre as instituições financeiras que aplicaram grande parte dos recursos nelas depositados no jogo da Bolsa. E é claro que, se muitos bancos quebrarem, as empresas que depositaram neles suas reservas sofrerão prejuízos. Desta forma, o colapso das Bolsas pode gerar uma crise financeira e esta pode dar lugar a uma crise econômica.
Uma onda de pessimismo surge, em geral, ao cabo de um período em que predominou o otimismo e a cotação das ações se elevou sem parar. É que o otimismo, na Bolsa, se auto-alimenta do mesmo modo que o pessimismo. Uma vaga de otimismo pode ser desencadeada por acontecimentos fortuitos, tais como bons balanços de empresas importantes, uma vitória eleitoral de forças conservadoras, a derrota dos operários numa greve de grande impacto. A expectativa de maiores lucros induz um aumento da demanda por ações e ao mesmo tempo reduz sua oferta, porque menos gente quer desfazer-se delas. O desequilíbrio entre oferta e demanda eleva as cotações, proporcionando lucro aos otimistas. No dia seguinte, mais aplicadores passam do "time" vendedor ao comprador, as cotações voltam a subir, quem comprou teve ganhos, quem vendeu teve perdas. O que reforça de novo o "time" de otimistas e reduz o de pessimistas e assim por diante. As Bolsas podem subir assim durante semanas, meses e até anos. Segundo Stephen Marris (1987), o índice Dow Jones (das cotações da Bolsa de Valores de Nova York) subiu mais de 100% nos dois últimos anos, até agosto de 1987.
De vez em quando, durante um período de otimismo generalizado, as cotações caem um pouco. E quando os grandes aplicadores "realizam lucros", isto é, vendem grandes quantidades de ações que se valorizam para fazer pagamentos aos cotistas de fundos de aplicação ou para aplicar em outra coisas. Mas estas quedas são temporárias. As altas atraem novos aplicadores às Bolsas, que se desfazem de imóveis, títulos de créditos, dinheiro entesourado ou ouro para comprar ações. O valor destas sobe a níveis que nada têm a ver com o montante previsível de lucros futuros das empresas. Mas, nesta altura, a atenção dos aplicadores não se prende mais aos lucros, mas ao próprio curso das cotações. Vale a pena comprar uma ação valorizadíssima simplesmente porque sua cotação ainda vai subir mais. O que se visa não é mais participar do lucro das empresas, mas obter "ganhos de capital", isto é, comprar ações hoje para vendê-las amanhã ou pouco depois a preço mais elevado. Ganha-se assim muito dinheiro e com grande facilidade, porque é possível comprar ações a crédito. Um especulador pode aplicar em ações três ou quatro vezes mais do que o montante de seus recursos próprios, tomando a diferença emprestada, sendo as próprias ações a garantia do empréstimo. Ao vender as ações alguns dias da semana depois, o aplicador liquida o empréstimo, paga os juros e embolsa um "ganho de capital", que pode ser apreciável em relação ao valor do que ele mesmo botou no negócio. É claro que no momento seguinte, ele volta a fazer a mesma jogada em escala ainda maior.
Quando falamos em "aplicadores", estamos nos referindo a pessoas jurídicas (firmas) e físicas (indivíduos), que detêm valores poupados - rendas passadas não gastas - e as aplicam, visando ganhos financeiros. Entre as pessoas jurídicas, destacam-se fundos de pensão, empresas de todos os tamanhos e fundos mútuos, que reúnem as pequenas poupanças de grande número de indivíduos. Estes grandes aplicadores colocam seus valores em diferentes ativos: ações, títulos de crédito (do Tesouro, debêntures de firmas privadas), ouro, moeda conversível (nacional ou estrangeira), etc. Estes ativos compõem um carteira (portfólio), cuja diversificação se destina a diluir os riscos, já que qualquer ativo pode se desvalorizar. Acontece que, quando certos ativos, como as ações, se valorizam, outros ativos, como os títulos de crédito por exemplo, são vendidos para, com o dinheiro de sua venda, se comprarem ações. Isso faz com que os títulos percam valor. Quando as ações por sua vez perdem valor, muitos aplicadores procuram vendê-las, para poder comprar títulos de crédito, ouro, etc. Isso leva ao aumento do valor dos títulos ou do ouro. Deste modo, a composição das carteiras vai mudando - é isso que constitui a especulação financeira - mas o seu valor original, ou seja, a soma do valor dos ativos que as compõem varia menos do que o valor de cada ativo, em virtude dos movimentos compensatórios acima descritos.
Os títulos de crédito têm seu valor determinado pelo rendimento anual que dão, comparado às taxas de juros em cada momento. Assim, uma obrigação do Tesouro, no momento em que foi emitida, oferece uma renda fixada em função da taxa de juros então vigorante, digamos de 5% ao ano. O que significa que uma obrigação de US$ 100 "paga" US$ 5 por ano. Suponhamos que, tempos depois, a taxa de juros sobe para 10% ao ano. A mesma obrigação agora vale apenas US$ 50 porque US$ 5 anuais são 10% de US$ 50, embora o valor nominal da obrigação continue sendo de US$ 100, que é o seu valor de resgate, no dia do vencimento. Mas, as obrigações que estão longe de seu vencimento têm seu valor determinado pelo quociente de seu rendimento anual pela taxa de juros, o qual varia portanto inversamente com a taxa de juros. No exemplo acima, tendo a taxa de juros dobrado, o valor do título caiu à metade.
No caso dos títulos de crédito, a taxa de juros é, em boa medida, determinada pelas necessidades do governo, que precisa a cada ano vender títulos no valor de seu déficit orçamentário somado ao valor dos títulos já emitidos, que vendem cada ano. O governo tem, em princípio, duas alternativas para obter este dinheiro: ou toma emprestado, isto é, vende obrigações do Tesouro, ou emite moeda. Quando toma emprestado, o governo compete com empresas pela poupança, forçando a elevação da taxa de juros; quando ele emite moeda, a oferta cresce mais do que a procura no mercado de dinheiro e a taxa de juros tende a cair.
Com esses elementos dá para entender o que aconteceu com a Bolsa de Nova York em 19.10.87: o governo dos EUA, através de seu banco central, o Fed (Federal Reserv System), em conjunto com os bancos privados, vinha elevando a taxa de juros, desde o começo do ano. Marris (1987) relata que, em conseqüência, ocorreu "uma queda de mais de 25% no mercado de títulos". Isso tornou a aplicação em títulos mais lucrativa, atraindo dinheiro antes aplicado em ações. Além disso, a alta dos juros tornava menos interessante a compra de ações a crédito. Logo, as cotações nas Bolsas começaram a cair, à medida que os grandes aplicadores modificaram a composição de suas carteiras, substituindo ações por títulos de crédito. Durante alguns meses, o crescimento do time de "pessimistas" à custa do de "otimistas" foi gradual. O índice Dow Jones caiu de seu auge de 2662 pontos em agosto para 2596 em setembro. Mas, em outubro, a queda se acelerou: na sexta-feira, 16.10.87, o Dow Jones já estava em 2246, o que deve ter desalentado os que até então se mantinham otimistas, acreditando que as cotações se recuperariam. A maioria deles resolveu, no fim de semana, mudar de lado e se livrar das ações, antes que fosse tarde demais. O que acarretou enorme queda das cotações no pregão de segunda-feira, 19.10.87, no fim do qual o índice Dow Jones tinha caído a 1738, uma queda de 22,6% num único dia.
Um colapso das cotações deste tamanho acarreta "pânico". As imensas perdas dos que não venderam suas ações fazem que novas ordens de venda se acumulem, ampliando o desequilíbrio entre oferta e demanda - esta caindo cada vez mais perto de zero e tomando fatal a continuação da queda. E como vimos acima, uma crise financeira assim gerada arruína não apenas aplicadores, mas pode atingir o sistema bancário e, através deste, empresas produtivas, desencadeando uma crise econômica. Para evitar isso, o governo dos EUA interveio pesadamente: o FED injetou grande quantidade de dólares na economia, comprando no mercado aberto obrigações do Tesouro; isso fez com que a taxa de juros caísse, elevando o valor dos títulos de crédito: estes deixaram de ser uma alternativa atraente para os aplicadores, parte dos quais voltaram a comprar ações. A Bolsa subiu um pouco em 20 e 21.10.87, estabilizando-se o índice Dow Jones em 1950 na sexta-feira, 23.10.87. O pânico fora, a muito custo, evitado por ora.
Mas a crise financeira, que corrói o capitalismo mundial há décadas, continua. Ela é internacional, tendo por origem a crescente ineficiência do sistema internacional de pagamentos. A sua penúltima manifestação dramática foi a crise da dívida externa, em 1982, e é possível que a próxima seja uma desvalorização acelerada do dólar, com pânico nos mercados cambiais.
No fim da Segunda Guerra Mundial, os EUA eram não só a maior, mas a mais forte economia capitalista, da qual os países devastados pela guerra dependiam para a sua reconstrução. Do mesmo modo, dependiam dos EUA os países em desenvolvimento, como o Brasil, que necessitavam de tecnologia e meios de produção para promover sua industrialização. Constituiu-se então um sistema internacional de pagamentos, tendo o dólar como moeda-chave. Isso significava que os pagamentos entre países poderiam ser feitos em dólares, o que implicava que as reservas cambiais dos governos nacionais também seriam mantidas em dólares. O valor do dólar seria estável em relação ao ouro, mediante o compromisso do governo dos EUA de vender ou comprar ouro ao preço convencionado de US$ 35 a onça-peso. Como a quase totalidade das reservas mundiais de ouro monetário estava em poder do Tesouro dos EUA, o compromisso inscrito nos Acordos de Bretton Woods (1944) procurava tornar, para os agentes econômicos, equivalente manter suas reservas em ouro ou em dólares, com vantagem de que os dólares poderiam ser retirados sob a forma de obrigações do Tesouro dos EUA, que proporcionaram juros, ao passo que o ouro não dá, como é óbvio, qualquer rendimento.
Durante quase vinte anos o sistema de pagamentos baseado no dólar-ouro funcionou razoavelmente. Mas, durante esse período, os países da Europa Ocidental e o Japão não só reconstruíram suas economias, mas alcançaram e sobrepujaram os EUA em termos de competitividade no mercado mundial. Isso pode ser avaliado pela evolução da produtividade do trabalho nestes países. Em 1950, na França, a produtividade do trabalho era 44% da dos EUA, na República Federal Alemã (RFA - Alemanha Ocidental) ela era de 40% e no Japão apenas 18%. Trinta e cinco anos depois, a França e a RFA tinham a mesma produtividade que os EUA e no Japão ela alcançava 77% da dos outros 3 países (Baeck, 1987). A produtividade também cresceu muito mais do que nos EUA nos países que estavam se industrializando, como o Brasil, México, Coréia do Sul, Taiwan etc e que se tomaram, a partir dos anos 70 grandes exportadores de produtos industriais.
Os preços dos produtos dependem, basicamente, da produtividade do trabalho e do grau de exploração. O grau de exploração é o quociente entre excedente e salário por trabalhador.Os preços de produção constituem a soma dos custos de produção, dos quais o salário é o mais importante, e da margem de lucro. Esta última depende em última análise da taxa de exploração. Os preços variam diretamente com a taxa (ou grau) de exploração e o nível de salário, inversamente com a produtividade do trabalho.No início do período, os produtos americanos eram mais baratos do que os demais, devido à sua grande superioridade, em produtividade, embora os salários nos EUA também fossem elevados, dando por resultado um grau de exploração menor. Nos demais países capitalistas, a produtividade era muito menor, mas o mesmo se dava com os salários. Em geral, o grau de exploração e portanto a taxa de lucro eram mais altos na Europa, na Ásia e na América Latina, o que atraiu para estes continentes um grande fluxo de capital americano.
Entre 1945 e 1965, aproximadamente, os EUA exportaram muito mais do que importaram do resto do mundo. Os imensos saldos comerciais americanos transformaram-se, em grande parte, em inversões nos outros países, sendo o resto doado, como auxílio militar, ou torrado nas Guerras da Coréia e do Vietnã (que se intensifica a partir de 1965). Ao mesmo tempo, os países da Europa e o Japão reconstruíram seus parques industriais segundo o padrão tecnológico americano mais moderno. Conseqüentemente, foram alcançando, em produtividade, os EUA, sem que os salários, que também estavam crescendo, chegassem ao nível dos americanos.
Na segunda metade dos anos sessenta tornou-se claro que as exportações industriais dos EUA estavam sendo expulsas do mercado mundial pelas oriundas da Europa e do Japão e - um pouco mais tarde - também do Brasil, Coréia do Sul, Taiwan e outros países semi-industrializados. No próprio mercado americano, as importações estavam tomando o lugar dos produtos da indústria nacional. Os saldos comerciais começaram a minguar, enquanto as exportações de capital e os gastos militares (sobretudo no Vietnã) continuavam elevados. Os EUA transformaram-se num país deficitário. Em termos mais técnicos, o Balanço de Pagamentos dos EUA só fechava graças à saída de vultosas somas de dólares, que eram utilizadas como reservas cambiais e meio de pagamento internacional pelos outros países. Aplicadas em obrigações do Tesouro dos EUA, estas somas começaram a constituir uma crescente dívida externa. De credor do resto do mundo, os EUA foram se transformando em país cada vez mais devedor.