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Os militares são o "principal partido" da burguesia, graças à tradição histórica brasileira, ao caráter conciliador da transição Tancredo/Sarney e ao conservadorismo da "Nova República". Nesse sentido, a tutela militar faz parte da estrutura social do Brasil. Combatê-la é lutar pelas liberdades políticas. Por isso, na concepção do PT, as Forças Armadas não devem ter qualquer função política policial e repressiva interna.

 

A permanência da tutela militar sobre o Estado é presença inevitável entre os mais evidentes do conservadorismo que caracteriza a chamada Nova República. Ela pode ser comprovada facilmente tanto pelo papel dos militares sob o governo Sarney como pelo que vai se delineando no texto da nova Constituição. O fim da ditadura militar, longe de resolver, apenas reciclou a questão militar no Brasil.

Em que consiste essa questão? Tenho como premissa fundamental que o "Estado é sempre o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante", como afirmou Engels. Não importa qual forma ele assuma, as diversidades de regimes políticos de um país para outro ou entre diferentes épocas históricas. Neste sentido mais geral, podemos, por exemplo, caracterizar como burgueses Estados formalmente tão distintos como o Estado nazi-fascista, a atual democracia parlamentar da Itália e a ditadura militar de Pinochet.

No entanto, se nos ativermos ao exame das democracias burguesas modernas, concluiremos que a tese marxista clássica que identifica o Estado como "uma força especial de repressão" se conserva verdadeira apenas parcialmente. Como nos indicou Gramsci nos Cadernos do Cárcere, referindo-se ao "ocidente" capitalista, o Estado é uma combinação de força e hegemonia. Diferentemente das classes dominantes do "oriente" atrasado, como a Rússia czarista, a burguesia "ocidental" exerce a sua supremacia de forma muito mais sofisticada do que todas as classes dominantes que a precederam. Emprega tanto a violência como o convencimento dos dominantes, o consenso. E, no que é particularmente inovadora, confere funcionalidade à ideologia, à cultura, à ética, etc., enquanto meios de dominação, através de um conjunto de instituições destinadas especificamente a esse fim.

Gramsci legou-nos assim o conceito de "Estado integral", ampliando as fronteiras do Estado tal como definidas pelos clássicos do marxismo. O Estado deixava de ser concebido apenas como aparato de força, como máquina especial representada pela burocracia civis, as Forças Armadas, a polícia, os tribunais, as prisões, o governo etc. Passavam a ser concebidas como parte integrante dele também as instituições privadas de hegemonia: o sistema escolar, os meios de comunicação de massa, partidos políticos, a Igreja etc.

Tratou-se de uma problematização da questão do Estado em harmonia com os aspectos fundamentais da elaboração dos clássicos, de Marx a Lênin, ao contrário do que afirmam as "leituras" reformistas que rebaixam Gramsci à condição de teórico da conquista do socialismo sem rupturas com a ordem vigente, através exclusivamente de um processo cumulativo de forças. Em Gramsci a concepção do papel decisivo dos instrumentos de força do Estado, especialmente as Forças Armadas, é integralmente preservada, sem margem para interpretações liberais.

A violência repressiva nos Estados capitalistas modernos, inclusive naqueles países onde a democracia burguesa mais se consolidou, opera num duplo sentido. Primeiro, num sentido ativo, de destruição de movimentos potencialmente capazes de ameaçar a ordem vigente. Foi o que vimos, por exemplo, no combate ao movimento dos negros norte-americanos na década de 60, por meio da repressão aos guetos rebelados pelas milícias do Estado na França do Maio de 1968, quando o general De Gaulle acionou as tropas acantonadas na Alemanha para um eventual ataque a Paris. E segundo, num sentido passivo, dissuasório, destinado a condicionar o comportamento das correntes antiburguesas através da sedimentação da consciência de que, a partir de um certo limite, os instrumentos de força do Estado serão chamados a agir. Conhecemos muito bem esse mecanismo, cuja expressão mais comum entre nós são as "ameaças de retrocesso", que os políticos burgueses alardeiam sempre que precisam conter o ânimo de luta dos movimentos populares que escapam ao seu controle.

Nas últimas décadas o Brasil passou por um processo acentuado de "ocidentalização", dado pelo desenvolvimento do capitalismo, transformando tanto a base econômica como a superestruturada sociedade. Modernizaram-se as forças produtivas e se complexificaram a estrutura de classes e as instituições políticas, culturais etc. Nesse quadro é que se situa o desenvolvimento dos mecanismos de dominação e do Estado, tanto dos instrumentos de força, como das instituições privadas de hegemonia. De um lado, aperfeiçoaram-se a profissionalização e a coesão ideológica das Forças Armadas, constituiu-se uma indústria bélica e um complexo industrial-militar, agigantaram-se os aparatos de espionagem e repressão política e se fortaleceu a burocracia civil. De outro, massificou-se o sistema escolar, desenvolveram-se os meios de comunicação de massa etc. Conformou-se uma sociedade muito distinta, por exemplo, da Nicarágua de Somoza ou da Cuba de Batista, nas quais a sociedade civil era extremamente débil e a dominação de classe condensava na figura pessoal do ditador. Mas esta é uma sociedade que se distingue também daquelas existentes atualmente nos países capitalistas centrais, imperialistas. Podemos sintetizar essa dupla diferenciação afirmando que se, de um lado, o Brasil alcançou o estágio de país capitalista monopolista, de outro, este não é senão um capitalismo dependente. Não por acaso convivem aqui, lado a lado, o moderno e o arcaico, de que são exemplos a vida urbana sofisticada e o atraso de grandes áreas do campo, o mercado consumidor exigente e a enorme massa de marginalizados que nada consomem, a consciência democrática que reivindica liberdades políticas e a presença abertamente opressora das Forças Armadas, tutelando o Estado e intervindo nos conflitos mais elementares de classes.

A tutela militar se insere, portanto, no contexto estrutural da sociedade brasileira. Se aqui as Forças Armadas não desempenham aquela função política quase única que cumprem, por exemplo, em países como Guatemala e Paraguai, tampouco elas se colocam a distância, como elementos de reserva a serem empregados apenas em situações extremas, como em países como a Inglaterra, a França, a Itália etc. A palavra "tutela" diz tudo, as Forças Armadas retiram-se da cena mais visível da política, mas conservaram presença ativa nos bastidores dos centros do poder. Os partidos burgueses e o governo civil não dispõem de autonomia política plena para decidirem sobre questões que normalmente seriam de sua competência específica, nenhuma decisão de governo sobre tema relevante é tomada sem o aval das altas esferas militares; as Forças Armadas mantêm completa liberdade de iniciativa nos assuntos referentes à "defesa interna", inclusive à repressão de greves; postos estratégicos da administração nos vários ramos do aparelho de Estado permanecem ocupados por militares; o SNI estende seus tentáculos por toda a máquina estatal permitindo aos altos comandos das Forças Armadas um controle estrito das atividades administrativas; conservaram-se excrescências como o SNI, o Conselho de Segurança Nacional e os ministérios militares, órgãos de cúpula do Estado por meio dos quais os militares controlam globalmente as atividades governamentais; determinados ramos da economia, considerados estratégicos, são reservados à administração militar ou colocados sob fiscalização de órgãos militarizados, como a indústria bélica, a informática, o programa nuclear, a produção de energia etc.

A ditadura militar deixou de existir, mas o seu fim não implicou uma democracia burguesa de tipo clássico, tal como vigoram na Europa, nos EUA etc. Redundou num regime político que pode ser conceituado como uma democracia dos monopólios sob tutela militar. Mais grave, a luta contra a ditadura foi insuficiente para criar no povo uma consciência antimilitarista arraigada. Tanto assim que, em face do desgaste do governo Sarney e do PMDB, manifesta-se em uma parte do povo um sentimento atrasado de saudade daquele passado tão negro. A indiferença, inclusive das vanguardas do movimento popular, diante da disputa no processo constituinte em tomo do papel das Forças Armadas, é outra manifestação gritante dessa fragilidade de consciência política.