Sociedade

Comprometidos com a criminalidade que deveriam reprimir, os órgãos policiais são incapazes de enfrentar os graves problemas de segurança. A população agredida e avexada pelos agentes policiais, é amparada pelos ladrões, traficantes e bicheiros. O que fazer?

Os seis meses que deveriam ser – conforme promessa eleitoral de Moreira Franco – os do fim da violência no Rio de Janeiro terminaram se constituindo nos mais violentos da história carioca. Em duas semanas, coincidindo com a troca de um secretário da Polícia Civil por outro, 200 cadáveres apareceram na Baixada Fluminense. Um escândalo pela forma provocativa em que os grupos parapoliciais desafiaram o novo secretário, mas uma média não muito mais alta de mortes violentas do que o Rio está acostumado.

São Paulo apresenta de 3 a 4 vezes mais roubos a banco do que o Rio, o dobro de furtos, 50% a mais de roubos e furtos de veículos. Mas em homicídios o Rio é campeão: 2.766 no primeiro semestre de 1986, baixando para 2.184 no segundo semestre daquele ano (na gestão de Nilo Batista), subindo no primeiro semestre deste ano para 2.942. Enquanto que em São Paulo a evolução é de 2.119 homicídios no primeiro semestre de 1986 para 2.260 no primeiro semestre de 1987.

Essa violência letal maior na criminalidade carioca remete necessariamente para o que a imprensa chama de "crime organizado", que gira em torno do tráfico, mas também do jogo do bicho e de outras atividades consideradas contraventoras. Em agosto último, com um intervalo de poucos dias, os moradores das favelas da Rocinha e de Dona Marta estiveram no centro de acontecimentos extraordinários pelo que mostraram sobre a vida das favelas, o tráfico de drogas, a marginalidade. Na Rocinha, quando um grupo de moradores que promovia uma passeata foi atacado pela polícia resolveu revidar. No conflito, que durou mais de 6 horas, os favelados aproveitaram a localização estratégica do seu morro para fechar o túnel que liga a zona sul a São Conrado e a Barra da Tijuca, causando um monumental engarrafamento em toda aquela zona do Rio. Na favela de Dona Marta, durante 5 dias, a "guerra" entre duas quadrilhas que disputavam o controle do tráfico de drogas na área foi amplamente exibida pela televisão, evidenciando a cumplicidade de policiais com os traficantes, que até usavam armas privativas das Forças Armadas.

Os episódios da Rocinha e do morro Dona Marta foram mostrados espetacularmente para todo o país e formando a opinião pública sobre um condensado de problemas que articulam a questão urbana hoje no Brasil: tráfico de drogas, segurança pública, habitações clandestinas, infância abandonada, marginalidade social, problemas de saúde, comércio de armas, corrupção policial, o chamado "crime organizado", entre outros. A imagem passada foi principalmente a de territórios de ninguém, onde imperam gangues, enquanto os moradores são apresentados ora como inocentes entre o fogo cruzado de gente que nada tem a ver com eles, ora como cúmplices – por ação ou omissão - de toda a trama de interesses criados.

O que há de certo e de real nisso tudo? Qualquer versão simplista que conduz a conclusões do tipo "crime organizado que precisa ser banido", ou então "chama o ladrão", não dá conta do problema. Serve para a classe média conservadora repor os dilemas do bem e do mal, escolhendo o campo da legalidade carcomida como o seu, ou para que a esquerda opte, contra a arbitrariedade e violência policiais, pelo "povo", mas sob um prisma cruel da marginalização, da clandestinidade e da violência.

Para começar a destrinchar a complexa trama, é preciso perguntar-se por que a Rocinha e o Dona Marta protagonizaram aqueles episódios. Por duas razões principais: são favelas situadas na zona sul, contíguas a bairros supervalorizados em termos imobiliários, mais ainda quando a política habitacional empurra a classe média para fora dessa zona "nobre", em direção à zona norte ou às próprias favelas. A Rocinha, com cerca de 300 mil pessoas - somente agora se faz um recenseamento sobre a que seria a maior favela do Brasil -, fica ao lado de São Conrado e da Gávea. O Dona Marta, com cerca de 4 mil pessoas, se localiza em um morro que dá diretamente para Botafogo.

Esta localização se abre para duas dimensões da questão: a primeira é a de que os interesses imobiliários passam a cobiçar abertamente as zonas dessas favelas. Daí as mensagens pouco sutis de que esses favelados são indivíduos que habitam e desfrutam da zona sul, sem pagar IPTU. Ou seja, apelo direto para buscar apoio na revolta de uma classe média desamparada pela lei do inquilinato, para uma política de desalojar os favelados para zonas mais longínquas, como aconteceu com a favela da Catacumba, destruída por um incêndio "acidental" no início dos anos 70, permitindo a abertura de loteamentos na valorizada Lagoa Rodrigo de Freitas. Ou o que sucedeu com os moradores da Praia do Pinto, desalojados para dar lugar ao conjunto habitacional chamado Selva de Pedra.

São aspectos do que as lideranças faveladas do Rio chamam de nova campanha de desfavelização da zona sul. Brizola diz que as favelas não são o problema, mas a solução de quem procura morar perto do trabalho e de quem, no empurra-empurra dos dias que faltam no fim do salário, gasta tudo em comida e transporte, apertando pelo lado do gasto quase zero em habitação. É uma conseqüência inevitável da política habitacional e salarial do governo.

A localização "privilegiada" daquelas favelas faz também com que elas sirvam como pontos de revenda de tóxicos. Soube-se publicamente o que era saber privado disseminado na divisão do trabalho do tráfico: pela Rocinha passa a reciclagem da maconha - cujos laços de corrupção passam privilegiadamente pela Polícia Civil - e no Dona Marta, a da cocaína - "especialidade" de agentes da Polícia Militar. O mercado está ao lado, embaixo, na própria zona sul do Rio de Janeiro, na aliança estabelecida com os consumidores da classe média e da burguesia carioca.

Pergunta: E como ficam o povo e a polícia nisso tudo?

Em um extraordinário documentário sobre o Dona Marta, feito por Eduardo Coutinho – diretor de Cabra marcado para morrer, em julho de 1986, ele pergunta, no início, a todos os que descem do morro, quando ainda não clareou o dia, sua ocupação: são todos trabalhadores, operários desqualificados, mas também qualificados, trabalhadores em serviços, em empresas ou por conta própria, empregadas domésticas. A mesma pergunta é feita na volta deles, quando já anoiteceu e eles retornam do trabalho. Em suma, a população pertence ao mundo do trabalho, da forma como é possível inserir-se no mercado existente.

Os bandos do Zacarias e do Cabeludo, entre outros, atuam nesse território que escapa à institucionalidade urbana, como zona de reciclagem do tráfico, pela própria localização geográfica dessas favelas. Certamente estabelecem vínculos com a população, de apoio, de proteção, de ameaças e também de benfeitorias. A rebelião da Rocinha se deu como protesto pela prisão de Denis, traficante principal, cuja ausência provocou uma guerra de sucessão na favela. O prestígio de Denis como benfeitor mostrou toda sua capacidade de mobilização. Quando mataram Meio-Quilo, do grupo da Escadinha, depois de uma tentativa frustrada de fuga por helicóptero de um presídio, o enterro feito na favela do Jacarezinho foi das maiores e mais combativas manifestações populares dos últimos tempos no Rio de Janeiro.

Esse vínculo não se dá pelo envolvimento direto da população no tráfico, como os órgãos de imprensa querem fazer crer, mas por duas razões principais: pelas ações sociais que eles fazem nas comunidades faveladas - ajuda aos desamparados, policiamento interno, uso de carros para transportes de emergência, construção de melhorias - e pela oposição convergente às ações arbitrárias, violentas e corruptas da polícia. Neste segundo aspecto, é mais uma identidade comum pela oposição a quem aparece como inimigo das favelas como um todo.

No citado documentário há um diálogo entre uma favelada e o chefe da guarnição que atua permanentemente na escadaria principal que dá acesso ao Dona Marta. Ele alega que não discrimina os favelados, apenas atua preventivamente contra os suspeitos. Mas fica claro que a violência cotidiana se exerce contra os pobres, os negros, os malvestidos – a quase totalidade dos favelados -, que, como diz a favelada, depois de gastarem doze horas por dia entre trabalho e locomoção, são ainda vexados e têm que mostrar seus documentos para a polícia, na hora de voltar para casa.

As operações de entrada nas favelas, suspensas durante o governo Brizola, mas retomadas com Moreira Franco, são a consolidação da imagem da polícia como inimigo, pelo show de prepotência, violência e arbitrariedade. A polícia conhece, assim como os usuários da zona sul, quais são os pontos de revenda de cada uma das drogas, mas, como está comprometida com o tráfico, termina fazendo encenações maciças para a televisão, sem nenhuma eficácia, mas difundindo o pânico entre a população. Sabe-se que o complemento dos baixos salários dos policiais é feito, por parte deles, através da prisão – de preferência nos fins de semana de correios (os chamados "aviõezinhos") do tráfico, para receber uma "bola" ou confiscar a droga e revendê-la ou consumi-la. Sabe-se também que o armamento pesado privativo das Forças Armadas ou da PM é trocado por droga, com cotações bem estabelecidas. A polícia então é uma peça da engrenagem: mal paga, sem preparação pessoal, com equipamento arcaico, com incentivos à violência (avaliações na PM de São Paulo são feitas valorizando-se mais mortos que presos, presos armados mais que desarmados, infratores mais que consumidores de droga, com prontuários que exaltam ações de extermínio como causa de promoção) e uma ideologia da discriminação, da periculosidade dos pobres e negros e do maltusianismo. Trabalham uma quantidade estafante de horas, com uma estrutura interna tirânica e altos índices de alcoolismo, suicídio, problemas psiquiátricos e impotência sexual.

O povo, por sua vez, aparece como sujeito e objeto da violência - como protagonista de ações criminais e como vítima da generalização da violência. Na realidade, o grosso da população é vítima, antes de tudo, de uma orfandade política.

Rosa Maria Rischer, em seu livro O direito da população à Segurança (Editora Vozes), faz um relatório de tentativas de organização popular na luta contra a violência e os seus impasses, que contém elementos imprescindíveis para os movimentos sociais e as forças democráticas se colocarem em condições de enfrentar os temas da cidadania, dos problemas urbanos, da violência nas grandes cidades, da organização das populações periféricas, dos sem casa, das favelas.

O primeiro problema que enfrentaram comunidades é o da definição de qual é objeto da luta contra a violência. Quem luta? Contra quem? Com que aliados? Por que meios?

Uma parte das lutas terminou desmobilizando-se ao desembocar em reivindicações – atendidas ou não, mas que não solucionaram o problema -, como proteção a escolas e meios de transporte etc., dirigidas a órgãos estatais. Outras vezes o movimento se dividiu em relação a exigir policiamento mais intenso, pela própria heterogeneidade social dessas populações, em que em geral setores menos proletarizados pedem mais policiamento e os outros desconfiam que essa demanda apenas aumenta a violência, voltando-se particularmente contra eles.

São lutas que passam ao largo das organizações políticas e partidárias. Ou sua população não está incorporada ao mercado formal de trabalho de forma permanente ou o objeto das lutas sindicais não incorpora essa dimensão de suas vidas. Os partidos políticos não têm sedes, por exemplo, nas favelas, que possam servir de elemento de congregação, de conscientização, de organização alternativa às gangues e à polícia.

Uma experiência apenas esboçada, mas que pode representar um espaço novo, são os conselhos populares de segurança ou algo pelo estilo, iniciados no Paraná e somente mencionados no final do governo Montoro, sem maior continuidade.

Neles se reuniram os órgãos da comunidade e de segurança pública, para discutir conjuntamente o tipo de policiamento e de atuação dos órgãos de segurança que a comunidade deseja. Ainda que esse tipo de conselho não tenha inicialmente força deliberativa, é um elo que pode começar a romper o círculo vicioso dos vínculos circulares entre a polícia e a criminalidade. Pode gestar um sujeito novo atuando na área, a partir do fortalecimento da noção de cidadania, em nome da qual o povo reivindica o direito de definir o tipo de política de segurança pública e de policiamento que quer. Pode igualmente servir de ponto de apoio para desenvolver uma política democrática em relação aos órgãos policiais. De dentro destas corporações tem se revelado difícil surgir uma linha de renovação democraticamente que vá mais além de reivindicações corporativas, pela própria estrutura viciada desses órgãos. Mas o surgimento no horizonte de um novo interlocutor, de caráter popular, pode deslocar as referências que hoje orientam a ação policial - a defesa da ordem, da propriedade, da integridade física, da moral e dos costumes, em geral diretamente permeados por uma significação de classe que se dirige contra a população pobre.

Alguns apontam para o risco desse tipo de contato entre organizações populares e órgãos de segurança pública ter conseqüências nefastas para aquelas, possibilitando à polícia desenvolver um trabalho de cooptação e doutrinamento junto a setores da população. Na realidade esse tipo de nexo já existe, baseado na corrupção, na chantagem com ex-presos, pessoas com mandatos não executados de prisão ou familiares deles, na violência. Trata-se de tentar estabelecer um novo tipo de relação, baseada na noção de cidadania, tendo como apoio o direito da população de decidir sobre os funcionários estatais que financia por intermédio dos impostos.

A polícia é parte intrínseca do problema e não meio para sua solução, da mesma forma que as prisões, as Febems e outras instituições afins. São parte integrante de um aparelho de Estado construído pelas classes para o exercício do poder das minorias sobre as maiorias. Nesse sentido, sua própria existência tem que ser questionada. Mas, enquanto não se gesta uma força social, política e ideológica capaz de começar a dar nascimento a formas de poder alternativo, é preciso colocar como objetivo dos movimentos sociais, e das forças democráticas a luta pela democratização do Estado, até onde isso se revele possível. O que, pelo menos, introduzirá contradições sérias nos próprios instrumentos de dominação das elites dominantes, ao mesmo tempo que serve como enorme escola de aprendizado para as grandes massas da população sobre a necessidade de construir seus próprios instrumentos de exercício do poder.

A democratização dos órgãos de segurança pública depende de que o movimento popular incorpore o problema da violência urbana como seu, construa sujeitos que o encararão e desta forma surja, para os germens democráticos dentro destes órgãos, como interlocutores que possibilitem romper com os círculos viciosos em que esse tipo de instituição se assenta.

Emir Sader é cientista político, professor da USP, membro da Comissão Teotônio Vilela.