Nacional

Há duas décadas, José Sarney não tingia melenas e bigodes, os santos de casa queriam fazer milagres. Agora, o Brasil abre mão de ser rico e a corrupção virou enredo de escola de samba, ô-ô-ô. Tudo pode complicar se o bloco do poder cancelar, na Constituinte, as eleições deste ano. Seria a saída "buraco negro". O PT tem que se preparar

Vai fazer vinte anos. Em 1968, o Che já caíra nas selvas da Bolívia, marcando com sangue o fim de um ciclo de revoluções, vitoriosas na história dos povos. Na França, a juventude lançava seu brado de protesto na rebelião de maio, alastrando pelo mundo uma vaga de inconformismos com os valores dominantes. No Brasil, a polícia desbaratava o Congresso da UNE em Ibiúna, poucos meses antes de abater-se sobre nós o monstrengo AI-5 – um aborto jurídico com o qual o ministro da Justiça, Gama e Silva, praticamente congelou a ação política legal no país.

Era um tempo de guerra, era um tempo sem paz... O presidente José Sarney, à época recém-egresso da "bossa nova" da UDN – uma espécie de MUP de direita dos anos 60, ainda não tingia tanto o bigode nem as melenas. Tampouco sonhava com a glória imortal dos chazinhos da Academia Brasileira de Letras ou com a Presidência da República, que o infortúnio e o Colégio Eleitoral nos impuseram há três anos.

Naquele tempo, refeito da derrota eleitoral do ano anterior, quando a oposição consentida (o MDB) surpreendera a situacionista Arena (igualmente consentida) em Minas e na Guanabara (o Rio de hoje), o governo resolve apertar o cerco. Sufoca com violência as manifestações estudantis — atos públicos e passeatas engrossadas pela participação da pequena burguesia radicalizada —, ao mesmo tempo que desarticula o reinício das mobilizações operárias, ao reprimir duramente as memoráveis greves de Contagem (MG) e Osasco (SP).

Vinte anos antes, o Brasil partia em busca de seu grande destino. Era o início da ascensão meteórica da economia, que deslancharia até 1973/74 com um crescimento médio do PIB superior a 10% ao ano: era o "milagre" econômico, que ergueu o país à condição de grande potência, na cauda do mundo desenvolvido é verdade, mas na cabeça do Terceiro Mundo.

Abrigando 140 milhões de pessoas, mais da metade dos quais rotos e famintos, ostentamos, com orgulho, nossa invejável posição de OI-TA-VA economia do mundo capitalista. Estamos entre os cinco maiores exportadores de armas do mundo e exibimos o césio de Goiânia, a nossa Chernobil.

Vinte anos depois, para decepção da burguesia e infelicidade geral da Nação, o presidente Sarney, que a todos conduz, confessa, sem vergonha: o Brasil abdica de sua vontade de ser rico. Era só o que faltava. Afinal, para que foi feita a revolução de 1964?

Vinte anos antes, passada a recessão "saneadora" dos ministros Campos-Bulhões, um ciclo econômico ascendente que o ministro Delfim Netto ajudaria a espichar — projetava sonhos de prosperidade para a classe média afluente. A concentração bancária, o deslanche da indústria de base e do setor de bens de consumo duráveis, mais as facilidades do crediário abriam uma conjuntura de estabilidade para o capitalismo diante da qual a única oposição real — a esquerda revolucionária — logo, logo viria a sucumbir.

Vinte anos antes, botas e baionetas calavam o Congresso Nacional, na escalada da "Redentora" — um "putsch" dos quartéis, da classe dominante e do imperialismo contra um governo legalmente constituído e com legitimidade popular. Em 1964, os militares prometiam domar a inflação crescente e faziam juras de eliminar a corrupção e a subversão iminente.

Vinte anos depois, a inflação é a maior da história. Da corrupção, nem adianta ir se queixar ao bispo. São eles que reclamam, tamanho o mar de lama que escorre do planalto. No troca-troca oficial de apadrinhamentos (amadrinhamentos também) e favores ("é dando que se recebe"), a corrupção virou enredo de escola de samba. E a subversão, outrora de inspiração comunista, agora é insuflada por autoridades, ameaçando o Congresso Constituinte, meio democrático e quase soberano. Por um ano a mais de mandato, o presidente da República, em conluio com alguns ministros, investe contra os poderes constituídos. Produz discursos insultuosos, dispara invectivas ferozes contra a Constituinte e trama ações suspeitas. Por fim, dá a entender que gostaria de "zerar" tudo (seria recomeçar toda essa história ou seria reduzir tudo a pó).

Vinte anos antes, vinte anos depois. Pobre Brasil, quem te viu, quem te vê. Ironicamente, de 1968 a 1988, tudo mudou, nada mudou. O regime ditatorial, é fato, esboroou, deixando atrás de si uma esfera de incompetência, impunidade e a sombra sempre presente da tutela militar. As classes dominantes, que há duas décadas apelaram aos quartéis para quebrar o movimento sindical e tentar domesticar as massas, não só foram incapazes de promover o desenvolvimento nacional auto-sustentado como se revelaram sem condições, até o momento, de imporem um projeto hegemônico ao conjunto da sociedade.

A economia do "milagre" pariu a Bélgica e gerou a Índia. A crise econômica prossegue, embora em outro patamar — o de uma dívida gigantesca, cujo tributo mina nossas divisas, saqueia nossa riquezas, suga o suor e o sangue dos trabalhadores. O país rende-se outra vez ao FMI e o governo está pagando, sim, a dívida com a miséria do povo. A concentração de capital e a internacionalização da economia do final dos anos 60 atingem agora níveis insuportáveis, muito embora diariamente se noticie a evasão do capital estrangeiro, temeroso de manifestações xenófobas. Já se prenuncia para breve uma nova etapa de centralização do capital financeiro e bancário, por impulso da política de administração da dívida pública. Nesse movimento de bola de neve, de emissão, inflação, alta dos juros e venda de papéis do Tesouro, a estatização do sistema financeiro e bancário surge como uma solução do sistema e do regime — não como um decreto bolchevique.

Melancolicamente para o próprio capitalismo — e tragicamente para cerca de 20 milhões de brasileiros — a oligarquia insiste em manter intocados milhões de quilômetros quadrados de terras cultiváveis: a reforma agrária não passa de ficção. Do mesmo modo sucedem-se governos, alternam-se políticas recessivas, a estrutura econômica resiste impávida e colossal, conservadora: os ricos ficam mais ricos, os pobres, mais pobres; os salários continuam arrochados; o modelo industrial não atende a demanda de bens de salário; e a política agrícola estimula o plantio só para exportar, não para comer.

Ao descontrole, ao desgoverno e à improvisação, o "milagre" econômico desses 20 anos agregou o componente do parasitismo: um capitalismo de empresários que prosperam sem risco, mamam no Estado que dizem abominar e que têm medo de investir — por isso se nutrem da e na especulação. São capitalistas que andam na contramão da história, pois subordinados a um tipo de divisão internacional do trabalho que lhes confere o título de "modernos" graças à importação dos anacronismos do Primeiro Mundo.

Mais que a falência do "milagre" econômico, mais que o esgotamento de um tipo de modelo de desenvolvimento cuja comprovação o excesso de exemplos tornaria cansativa —, estes 20 anos de "velha" e de "nova" República refletem a habilidade progressiva de uma forma de governo, a desmoralização o clamorosa de um regime político e o desgaste para muitos inesperado de um sistema econômico-social.

Vinte anos depois, eis o retrato do país onde se realizarão eleições presidenciais esperadas desde 1960, quando o povo foi às urnas pela última vez para escolher o chefe da Nação. O que está em xeque nas eleições previstas para 1988, portanto, não é apenas o governo Sarney, a Aliança Democrática (PMDB-PFL), a transição conservadora, ou a direita, o "Centrão" e a UDR. Desde já estão na berlinda vinte e poucos anos de regime militar, de democracia burguesa tutelada, de um sistema capitalista dependente, monopolizado e estreitamente vinculado ao grande capital internacional.

Diferentemente de 1968/70, porém, quando o consumismo fácil e a Copa do Mundo ajudavam o governo Médici a liquidar a oposição, dessa vez o "milagre" empurra a todos para as urnas — embora o PT não se coloque a questão da tomada do poder agora, devido à correlação de forças atual e às próprias formas de luta que o momento político autoriza. Há ilusões e desencanto a sacudir a sociedade. O quadro das eleições, ainda confuso diante dos impasses na Constituinte e mutável em virtude do jogo prorrogacionista, reafirma a importância da mobilização popular e sindical: contra a dispersão, o desânimo e a frustração reinantes em amplos setores sociais, o PT centra fogo contra o governo Sarney, por diretas em 1988 e pela inscrição dos direitos dos trabalhadores na nova Constituição.

Momento-chave para o desenlace da transição institucional, a realização das eleições, desejada pela maioria esmagadora da população, interessa também a setores burgueses inquietos com a impopularidade, a insegurança, a deterioração e a tibieza do atual governo, cujo único projeto reside em apossar-se de um punhado a mais de mandato. Paradoxalmente, contudo, à falta de uma candidatura e de um programa que os unifique, as classes dominantes não apostam todas as fichas no encurtamento do mandato de Sarney através de eleições. É preciso não confundir a perda de base de sustentação do atual governo entre as classes dominantes, que o vêem como um estorvo, com o enfraquecimento do bloco de poder na sociedade. Muito ao contrário, a burguesia e seu projeto conservador de transição tem fôlego longo, haja vista os rumos da Constituinte, o papel "moderador" do multipresidente Ulysses Guimarães e o poder de cooptação da classe dominante até mesmo no movimento sindical (o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo é apenas um caso).

Incertezas como uma propalada vitória de Brizola, por exemplo, ajudam a entender por que se ensaiam tantas fórmulas de regime e de mandato no Congresso Constituinte, transformando análises políticas em exercícios de futurologia. Com presidencialismo (que o PT defende), parlamentarismo ou um regime híbrido, as eleições (agora ou em 1989) vão ensejar uma intensa disputa político-ideológica na sociedade brasileira. Será um momento para os trabalhadores consolidarem posições, avançarem na sua organização e se fortalecerem diante de outras classes.

A candidatura Lula à Presidência da República cumpre um duplo papel nesse sentido. Como alternativa à crise da "nova" República e do governo Sarney, ela aponta, com um programa avançado, saídas do ponto de vista dos trabalhadores e das camadas médias; simultaneamente, como candidato de esquerda, Lula ajuda a desmascarar o jogo eleitoral da direita, do PMDB e do brizolismo, que, se bem de forma diferenciada, situam suas campanhas e seus programas na esfera da hegemonia política da burguesia.

Além disso, ao antecipar-se à própria convocação oficial das eleições presidenciais, a candidatura Lula (e seu programa de governo) cria um fato político difícil de remover, possibilitando garantir, na pior das hipóteses, a realização das eleições municipais já marcada para novembro próximo. Finalmente, a existência de uma candidatura presidencial como a do PT, fortemente assentada no movimento popular e sindical, contribui para romper o bairrismo, o provincialismo, o localismo e o personalismo — amarras com que a política tradicional dos partidos burgueses circunscreve as eleições municipais.

Uma campanha de caráter programático e uma tática de acúmulo de forças caminham juntas na conjuntura. Um programa de governo para toda a sociedade, mas que é orientado de forma decisiva pelos interesses das classes desfavorecidas: os trabalhadores da cidade e do campo, os empobrecidos, os sem terra. Não se trata, claramente, de um programa socialista de governo, nem tampouco de uma tática eleitoral para a tomada do poder. É um programa democrático-popular, de transformações econômicas e sociais avançadas, de reformas que, embora sob o capitalismo, abrem espaço à intervenção política das classes sociais historicamente empenhadas em superar este sistema de organização da sociedade.

Parece inevitável, contudo, que as próprias classes dominantes, seja para afirmarem seus valores ideológicos, seja para tentarem jogar a população contra uma alternativa de governo e de poder que lhes é hostil, jogarão na campanha eleitoral o tema do socialismo. Tal enfrentamento interessa ao PT, que é um partido de massas, democrático, revolucionário e socialista. Mas o debate deve ser travado no campo que nos convém: o do "julgamento" desses vinte anos de "milagre", com exemplos concretos e apresentação de alternativas. Nada, então, de enveredar pelo doutrinarismo das citações e do transplante mecânico de modelos.

O programa de governo para as eleições não é apenas um rol de reivindicações do movimento sindical — que a CUT, com luta e organização, vem conseguindo fazer avançar — ou do movimento popular, que se fortalece à medida que unifica e centraliza suas campanhas. O programa de governo não deve ser um elenco de promessas irrealizáveis, mas sim um conjunto de propostas factíveis. Não porque estabelece objetivos parciais, limitados, passíveis de serem absorvidos pelo sistema. Mas sim porque alinha propostas de mudanças a serem operadas com o avanço da organização das massas, com o acúmulo de forças decorrente da própria luta eleitoral e da instalação de um governo democrático e popular. Nesse sentido, não é um programa de governo para estabilizar o capitalismo, mas para conflitar com ele, desgastá-lo, vencê-lo.

Complexo, o cenário das eleições requer acompanhamento permanente e flexibilidade na campanha. A não realização de eleições gerais este ano, mantendo-se exclusivamente as eleições municipais, transforma, por exemplo a escolha do prefeito da capital de São Paulo na disputa mais importante do país, sendo capaz de deslocar para cá todo o poderio econômico que se concentraria nas eleições presidenciais. São Paulo seria o grande teste, ponta-de-lança para chegar a Brasília. Por outro lado, a simultaneidade de eleições presidenciais e para prefeitos, se contribui para "nacionalizar" a campanha — o que pode favorecer o PT —, implica uma margem de risco: a de nos esquecermos de tratar com segurança e seriedade as questões locais, que não podem ser relegadas a segundo plano, sob pena de o partido tão-somente "marcar posição".

Esta última ideia é aliás, recorrente na história dos partidos de esquerda e na curta vida do PT. Geralmente, quando as possibilidades de vitória eleitoral são escassas ou remotas, costuma-se fazer uma campanha apenas para "marcar posição". Ou seja, faz-se propaganda do "programa máximo" ou de propostas genéricas do partido, de conteúdo doutrinário, supostamente de "ideologia revolucionária". Já que não se vai mesmo ganhar a eleição, o negócio é "passar nossas idéias" para a massa... Este tipo de concepção está na base de slogans como "Vote no três que o resto é burguês", deu o tom à campanha do Lula para o governo de São Paulo, em 1982. Em todas as campanhas — de vereador a presidente — estaremos sempre imprimindo o selo das posições programáticas do PT, até porque ganhar eleições escondendo nossas propostas (se fosse possível) seria uma vitória artificial. Daí não se conceber, no PT, a possibilidade de "ganhar a eleição a qualquer custo", ou de fazer qualquer tipo de aliança para galgar um posto Executivo — que são variantes da mesma visão deformada de "marcar posição".

Um último — e importante — aspecto para reflexão: o momento político pode evoluir para uma situação de "buraco negro" na Constituinte, aproveitando-se o bloco no poder para cancelar as eleições deste ano. Ou a própria Constituinte, cedendo aos mais variados interesses, pode marcar eleições presidenciais e municipais simultâneas para 1989, prorrogando-se, nesse caso, o mandato de prefeitos e vereadores. Não se excluiria, nesse quadro, uma intervenção mais nítida dos militares embora não nos moldes de 1964 ou 1968. Para todos estes cenários, uma tática específica. O PT, entretanto, que articula um campo de oposição e de luta política apoiado na mobilização popular e sindical, encontra-se melhor credenciado para movimentar-se nesse campo adverso.

Como tudo faz crer que as eleições vêm aí, inclua-se o penúltimo parágrafo deste artigo nas disposições transitórias a partir da publicação...

Rui Falcão é jornalista e membro da Executiva do Diretório Regional do PT-SP.