O PT corre o risco de vencer as próximas eleições presidenciais. Não é, obviamente um risco grande; mas, em todo caso, é um risco. A ocasião é única pois, como sabemos, nosso partido se assemelha ao rio Xingu: ninguém segura, mas também ninguém acelera. Contudo, a conjuntura eleitoral que se aproxima tornará a correnteza mais veloz pelo simples fato de que as margens se estreitarão, o que significa também o risco do represamento, do confinamento. Para começar, devemos ter presente que se trata apenas de eleições presidenciais e municipais. O poder legislativo permanecerá como está sendo definido pela nova Constituição (pelo menos durante uns dois anos), com o Centrão, o Centrinho e a Periferia se anulando numa luta de soma zero em matéria de avanços substantivos. Os governos estaduais serão aqueles que imantaram, com o binômio clientelismo-corrupção, o decisivo eixo São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, transformando-o num verdadeiro Triângulo das Bermudas político. O Judiciário será encontrado intacto. A burocracia estatal (federal) também se inclui nesta herança. Os meios de comunicação continuarão em amos de reacionários. As Forças Armadas conservarão a mesma estrutura, a mesma organização, os mesmos efetivos e provavelmente grande parte dos mesmos comandos, que sustentaram os governos militares e hoje dão cobertura (embora com mostras de inquietação) ao governo Sarney. E, como se já não fosse suficiente, em caso de vitória receberemos uma economia em frangalhos, com seus acompanhantes inseparáveis: gigantescas carências das massas populares, que se transformarão em demandas imediatas e deverão contar com o apoio de um governo dos trabalhadores.
Diante de um quadro tão pouco animador, talvez muitos se perguntem se valera a pena ganhar as eleições presidenciais. Dissipemos esta dúvida: embora com conotações peculiares, as eleições presidenciais e mesmo o eventual exercício da Presidência da República constituem um momento tático. Isto é, um momento de acumulação de forças, de ampliação das conquistas democráticas e de construção das organizações partidárias que viabilizem as lutas dos trabalhadores por seus objetivos estratégicos. Não se trata portanto de propor ou prometer a conquista de objetivos socialistas imediatamente. É claro que os elementos do ideário socialista deverão estar presentes em nossa campanha, mas de forma complementar e não central. O centro da campanha deve ser evidentemente o conjunto das propostas para a resolução de problemas ainda no âmbito de uma sociedade capitalista. Caso contrário corremos o risco de contribuir para o nosso próprio confinamento político e nossa completa neutralização no processo eleitoral. Além disso, é preciso lembrar que as propostas conjunturais dos partidos que representam a classe dominante jamais poderão solucionar a crise que vivemos sem aumentar o sacrifício das massas populares. Mais uma razão para apresentar soluções alternativas desde a perspectiva dos trabalhadores não apenas para executá-las efetivamente em caso de vitória, mas para acumular forças em caso de derrota eleitoral. Além disso, não podemos esquecer que a elaboração de um programa que enfrente tanto as questões estratégicas quanto as táticas será também um elemento importantíssimo no esclarecimento de várias questões no interior do próprio PT, o que é indispensável para fortalecê-lo e forjá-lo para o enfrentamento das lutas que se tornarão cada vez mais decisivas.
Dentro do rol das inúmeras questões programáticas, este artigo dedica-se exclusivamente aos temas econômicos e, mais especificamente, a três deles, que me parecem de grande relevância na atual conjuntura: 1) A dívida externa; 2) A dívida interna e o déficit público; 3) O salário mínimo.
A preocupação econômica central, ao discutir estas questões, é encontrar soluções para conter o processo inflacionário e criar as condições para a retomada do crescimento econômico, melhorando ao mesmo tempo o perfil de distribuição da renda no país.
A Dívida Externa
No interior do PT existem várias propostas de como resolver a questão da dívida externa. Mas, duas delas resumem satisfatoriamente as correntes majoritárias: a) o não pagamento da dívida e b) A suspensão do pagamento da dívida, seguida de auditoria sobre sua legitimidade e decisão posterior – plebiscitária — sobre coma pagar a parte considerada legítima.
Analisemos a primeira proposta.
Preliminarmente é importante ressaltar que ela não vem acompanhada de desdobramentos no plano econômico. Ou melhor, não fica claro se depois desta declaração continuaremos recorrendo ao mercado financeiro internacional ou não; ou mesmo se prosseguiremos negociando com os credores outras dimensões das relações econômicas internacionais. A fundamentação desta posição se concentra no reconhecimento verdadeiro de que a dívida (do jeito que está) não só é impagável, como já foi paga várias vezes devido aos juros escorchantes praticados nos últimos anos pelos credores.
Na prática — salvo especificações em contrário — esta posição significa uma ruptura dos vínculos financeiros (e em certa medida também econômicos) com o mundo capitalista ou pelos menos com os países credores.
A questão que se coloca é: até que ponto um governo petista terá condições de sustentar esta posição garantindo ao mesmo tempo a retomada do crescimento econômico, o controle da inflação e a melhoria da distribuição da renda?
Vejamos quais seriam as principais conseqüências econômicas desta posição.
O não pagamento da dívida tornará desnecessária a obtenção de mega superávits na balança comercial. Isto aliviará imediatamente a pressão sobre as desvalorizações cambiais, e exigirá menores incentivos econômicos aos exportadores como subsídios creditícios e isenções tributárias, eliminando uma importante causa inflacionária.
No entanto, é relevante estabelecer de que maneira tais superávits seriam reduzidos: se através do aumento das importações, pela redução das exportações, ou pela combinação dos dois movimentos. O ideal seria manter (ou mesmo aumentar) o valor das exportações, o que permitiria uma margem bem ampla para a expansão das importações, embora fosse aconselhável conservar um superávit moderado para reconstituir as reservas internacionais. Mas dificilmente poderemos conservar o melhor dos dois mundos. O mais provável é que tanto as exportações como as importações diminuam de forma acentuada. A razão principal é que ambas dependem em grande medida de financiamentos concedidos por nossos credores, e estes fluxos financeiros serão seguramente interrompidos diante de uma moratória pra valer.
O problema transfere-se então para o mercado interno. A produção antes destinada à exportação, ou a fração que não puder ser mais exportada, deverá ser colocada no mercado interno, sob pena de criarmos uma forte tendência recessiva na economia. Embora não isenta de dificuldades, esta manobra de substituição da demanda externa pela interna poderá ser feita desde que tenha êxito a política de redistribuirão interna da renda. E, sem pretender criar prematuramente um círculo vicioso, diria que sem a retomada do crescimento econômico e da elevação real de salários, esta melhor distribuição da renda não passará de um mero desejo.
As maiores dificuldades, no entanto, talvez tenham origem na retração das importações. O fato de que nos últimos anos, estas se contraíram drasticamente (fruto do efeito combinado da recessão e do processo de substituição de importações) não deve criar a ilusão de que poderemos comprimi-las ainda mais. Ao contrário, se a política de recuperação da economia tiver êxito, a pressão sobre o aumento das importações será muito grande. Ou melhor, a recuperação poderá ser estrangulada se determinadas importações não forem ampliadas. Além disso, grande parte do que compramos no exterior atualmente (começando pelo petróleo) são produtos "estratégicos", isto é, sua interrupção ou redução provoca efeitos negativos que vão muito além de sua expressão monetária imediata. Para citar um exemplo, no setor químico a falta de um produto importado no valor de 10 mil dólares, base de uma cadeia produtiva, pode comprometer a produção de bens no valor de um milhão de dólares.
É verdade que podemos intensificar o processo de substituição de importações e também buscar fontes alternativas de abastecimento nos países socialistas e em alguns países capitalistas não alinhados do assim chamado Terceiro Mundo. Mas a experiência tem mostrado que, mesmo quando esta saída tem êxito depende de investimentos de longo prazo de maturação e portanto seus efeitos não se manifestam nem a curto e nem a médio prazo. O estrangulamento das importações talvez constitua o obstáculo mais importante para a retomada do crescimento econômico e conseqüentemente para a elevação dos salários reais.
Além destas conseqüências econômicas, o não pagamento da dívida tenderá a isolar politicamente o país, pelo menos em relação ao bloco controlado pelas potências capitalistas.
Se isto ocorrer as desvantagens econômicas mencionadas anteriormente se agravarão e embora isto possa resultar em maior coesão interna no plano imediato (estímulo ao nacionalismo pela situação de "fortaleza sitiada") se as melhoras materiais não vierem para as massas populares, a base de apoio para esta política poderá sofrer um desgaste irremediável.
Existem a meu ver duas saídas (não excludentes) para esta situação. Em primeiro lugar a obtenção do apoio de outros países endividados da América Latina, Ásia e África, na formação de uma frente comum que lute pela reformulação das regras do jogo econômico financeiro a nível internacional. Isto é, que disponha de força suficiente para obrigar os credores a negociar seriamente em torno de uma nova ordem econômica internacional. Todos os elementos que nos levaram à crise, como as taxas de juros, o protecionismo, o desequilíbrio nos preços relativos etc..., deveriam ser reformulados em termos menos desfavoráveis para os devedores. Esta alternativa evidentemente não é nova e já foi proposta em várias ocasiões, especialmente pelo governo cubano. Se o não pagamento da dívida não for inserido neste contexto mais amplo, cedo ou tarde perceberemos a inviabilidade de permanecer a margem dos circuitos econômicos e financeiros internacionais. Não é por acaso que o próprio governo cubano, em dificuldades econômicas e financeiras no início da década, tenha preferido recorrer à renegociação de sua dívida externa (com o mundo capitalista) junto ao Clube de Paris do que declarar o não pagamento da mesma.
A segunda alternativa é aproximar-se decisivamente dos países socialistas. Esta alternativa tem desdobramentos que ultrapassam (por sua complexidade) as pretensões deste artigo, merecendo uma discussão especial e mais aprofundada em outra ocasião. Mas gostaria de antecipar pelo menos duas questões. Tal aproximação implicaria em primeiro lugar uma radicalização das propostas econômicas e políticas no plano interno. Em segundo, se os países do bloco socialista assumissem tal aproximação, talvez as condições políticas e econômicas impostas não fossem aceitáveis por um governo petista.
Mas, vejamos quais seriam as possibilidades de contar com o apoio "militante" de governos de outros países endividados especialmente os latino-americanos. Existem pelo menos duas razões indicando que provavelmente tal apoio não iria mais além de declarações formais de solidariedade. A primeira é que os credores acionariam (como fazem normalmente em casos similares) seus dispositivos de isolamento que têm como espinha dorsal o oferecimento de "vantagens" à outros devedores (desestimando a adesão) e sanções ao "rebelde". A segunda é que nossos possíveis aliados — à exceção de Cuba e Nicarágua na América Latina — são governos burgueses que mantêm fortes vínculos com o capital imperialismo internacional e que veriam com enorme preocupação um governo favorável aos trabalhadores, realizando um programa democrático-popular num país da importância do Brasil. É possível, inclusive, que ao invés de recebermos a cooperação e apoio destes países, testemunhemos o triste espetáculo da formação de um bloco solidário com a política de isolamento dirigida pelos credores.
É evidente que conseqüências semelhantes ocorrerão se adotarmos a outra proposta para a solução da dívida extrema, isto é, se suspendermos o pagamento da dívida, realizarmos uma auditoria e estabelecermos critérios para o pagamento da parte considerada legítima. Mas existem algumas diferenças importantes que vale a pena ressaltar. Por exemplo, no caso da suspensão da dívida o rompimento não é total, pois se admite o pagamento da fração da dívida considerada legítima. As negociações prosseguirão e sem mais complicado para os credores assumirem uma postura monolítica de isolamento e estrangulamento econômico do país devedor. Além disso, a adesão de outros países devedores será mais fácil, especialmente a daqueles em que o problema da legitimidade da dívida externa é muito mais grave do que no Brasil. Finalmente, não podemos esquecer que muitos trabalhadores não entendem muito bem esta posição de não pagar e pronto. Como pessoas honestas consideram que se existe uma dívida é necessário honrá-la. Para ganhar o apoio efetivo destes setores será necessário esclarecer que parte da dívida é ilegítima. A proposta de suspensão se adapta melhor, portanto, aos problemas internos e externos que enfrentamos, do que o não pagamento puro e simples.
Contudo, não devemos ter a ilusão de que se adotarmos esta segunda posição seremos recebidos com flores ou convidados para um chá pelos credores. Ao contrário, a luta será muito dura.