Sociedade

Goiânia foi um marco no cenário dos acidentes nucleares. Exemplarmente terceiro-mundista. Mas o desastre atômico não é privilégio do atraso e da miséria, como atestam Three Miles Island e Chernobil. Entre pânico e ignorãncia, uma fissura divide a opinião pública brasileira: há o nacionalismo, há o pacifismo, há o militarismo. Quem é que sai ganhando?

As mortes por radiação de césio de um aparelho hospitalar despedaçado a marretadas por um catador de ferro velho, em setembro de 1987 em Goiânia, abriram um novo capítulo na história da energia nuclear no Brasil. De imediato o flagrante de negligência na guarda do aparelho derrotou uma ofensiva de relações públicas que a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) havia lançado semanas antes, com o objetivo de impedir que a Assembléia Nacional Constituinte limitasse seus poderes, ou adotasse princípios explícitos de desnuclearização. Um conjunto importante de princípios fora proposto à Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente da Constituinte, proibindo a importação, fabricação, armazenamento e transporte de artefatos bélicos nucleares, autorizando qualquer cidadão a entrar na justiça contra danos ao meio ambiente e subordinando as atividades nucleares ao poder público civil, com direito de fiscalização por entidades civis. Em outro capítulo, o de Direitos e Garantias Coletivos e Individuais, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência propunha o direito de todo cientista se recusar a colaborar em pesquisas com objetivos militares.

A ofensiva da CNEN, inspirada nas técnicas de lobby, que já vinham sendo adotadas com sucesso por grupos de interesses privados, era também uma tentativa de apagar da memória nacional as revelações sobre o Programa Nuclear Paralelo financiado com verbas secretas, as incríveis contas Delta, mantidas pelo próprio presidente da CNEN, Rex Nazareth Alves, e pelo contra almirante Othon Luiz Pinheiro da Silva, presidente da Comissão de Projetos Especiais da Marinha (COPESP), engajada na construção do submarino nuclear. A ofensiva começou com a abertura à imprensa do principal parque do programa paralelo, o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), instalado no Campus da Universidade de São Paulo sob o pretexto de seu aniversário. Quase ao mesmo tempo foi anunciado com alarde que o IPEN estava inaugurando um novo laboratório para a produção de gálio radioativo. A campanha de Rex Nazareth culminou com o anúncio dramático do presidente Sarney, no dia 4 de setembro, de que o Brasil já dominava a técnica do enriquecimento do urânio por ultracentrifugação. A encenação, apesar de primária atingiu o seu objetivo: a mesma imprensa que denunciará justamente o programa paralelo de enriquecimento como fato perverso, que pressupunha uma proposta de fabricação da bomba atômica, agora noticiava o que nem era mais notícia, como motivo de orgulho nacional. O governo havia sido inteligente e avaliava corretamente a falta de memória e a irresistível vocação patriótica da imprensa. Ao dessacralizar o Programa Paralelo, ao se orgulhar daquilo que antes se recusava a admitir, o presidente oficializou esse programa, e se solidarizou, como autoridade civil máxima, com os objetivos dos militares, completando, aliás, uma aliança que já havia se manifestado em outros campos da transição. O presidente colocou oficialmente sob a tutela militar, e à revelia dos poderes civis, aquele programa até então secreto e ilegal. Assim, com esse anúncio pomposo — e a rigor não verdadeiro, pois o programa paralelo ainda não consegue enriquecer urânio a taxas minimamente aproveitáveis — Sarney tenta estabelecer um fato consumado em relação ao estatuto da questão nuclear na futura Constituição. O presidente dava o seguinte recado: sim, estamos avançando na produção de combustíveis nucleares, trata-se de um programa importante de nossas instituições militares, possuidoras como se vê de grande competência, e seria uma afronta e uma estupidez a Constituinte querer podar esse programa ou retirar seu controle dos que o estão desenvolvendo com tanto sucesso. Ademais, a mentira inevitável — a de que o programa brasileiro é estritamente pacífico. O desastre de Goiânia, verdadeira ironia da história, desnudou a CNEN, expondo sua precariedade, e dramatizou justamente seu desvio de função. O acidente demonstrou a necessidade de uma reorganização de toda a área nuclear, dentro dos princípios da transparência e da subordinação ao poder civil, com definição precisa de responsabilidades e objetivos. Goiânia demonstrou que a agência federal encarregada de fiscalizar aparelhos radioativos, existentes às dezenas no país, havia relegado tudo isso a segundo plano ocupada que estava no Programa Paralelo.

Muito mais importante, a longo prazo, foi o efeito do desastre e no imaginário coletivo, naquilo que as pessoas imaginam, pensam, sonham, esperam ou temem da energia nuclear. As características do desastre, em que menos de 100 gramas de um pó foram fazendo vítimas que não podiam ser curadas, como se estivéssemos à mercê de uma força invisível ou de uma maldição — essas características desencadearam um grande medo nacional. Medo parecido ao que já existe há muitos anos na Europa, mas que só passou a existir no Brasil, nessa dimensão, após Goiânia. Na Europa o temor coletivo foi determinado principalmente pelo risco da guerra nuclear e, em segundo lugar, pelos fenômenos de contaminação por vazamentos nucleares corriqueiros e sempre omitidos pelos governos. Esse movimento popular dos anos 80. O movimento antinuclear na Europa mobiliza famílias inteiras, várias gerações ao mesmo tempo, e de todas as classes sociais. O movimento antinuclear na Europa é o que melhor representa, hoje, a oposição entre interesses populares e o poder instituído, numa sociedade de classes pós-industrial em que os trabalhadores, suas famílias e cada indivíduo estão institucionalmente protegidos contra a fome e o desabrigo.

É esse caráter acima das classes sociais, seu papel substitutivo na luta de classes, que explica o espaço aberto ao acidente de Goiânia pela TV Globo, que tem extraordinária consciência de classe. O resultado foi um efeito demonstrativo equivalente a milhares de discursos, folhetos e campanhas de conscientização, mesmo porque, no medo a "coisa nuclear", juntam-se os ingredientes ideais ao envolvimento humano, o racional e o irracional. Goiânia foi também um marco no cenário mundial dos acidentes nucleares, uma história tragicamente exemplar de acidente nuclear terceiro-mundista, no qual uma das mais avançadas criações da inventividade humana se choca com o terrível atraso econômico, a ignorância e a miséria. Como imaginar por exemplo, que crianças abandonadas costumam dormir em ferros velhos? Como imaginar a própria existência de crianças abandonadas, neste final de século XX? Apenas um acidente parecido, no México, também oriundo de materiais velhos transportados indevidamente, poderia ser comparado ao de Goiânia. Mas no caso mexicano o material foi interceptado na fronteira com os Estados Unidos antes de fazer vítimas.

Além de transformar o inconsciente coletivo, desencadeando medos atávicos, agora sob a forma da "coisa nuclear", o acidente radioativo modificou profundamente a postura dos formadores da opinião pública, dos jornalistas, dos cientistas, dos técnicos. Principalmente os físicos, personagem principal do ato de criação da energia nuclear. Os físicos têm sido sistematicamente tolerantes em relação aos perigos da energia nuclear: Fascinados pelo seu potencial, desprezaram seus perigos, eles que eram os únicos capacitados a avaliar plenamente esses perigos. Convencidos de que era preciso correr à frente dos nazistas, serviram o poder instituído, começando pela construção da bomba. Posteriormente engajaram-se nos grandes programas que sob o pretexto da produção da energia elétrica visavam na verdade obter o subproduto dos reatores, o plutônio, matéria-prima da bomba atômica. Apenas uma história de dissidentes, pequena demais para mudar o curso da história, tentou criar uma ética alternativa, contra o uso militar dessa energia. Mas mesmo esse movimento ainda considera a energia nuclear em si como necessária. O cientista analisa a "coisa nuclear" sob a ótica racionalista da relação risco-benefício, equiparando a energia nuclear e seus equipamentos a outros inventos do homem, que também matam e trazem riscos, mas trazem sobretudo benefícios. E como o cientista só acredita na lógica ou na prova material, foi preciso o acidente de Goiânia para mostrar que os riscos de acidente nuclear eram muito maiores do que eles haviam calculado, pelas leis da probabilidade. Alterou-se profundamente a visão do cientista brasileiro e o seu imaginário.

Os cientistas brasileiros tinham se dividido no campo nuclear em relação a um referencial essencialmente nacionalista. Havia os que apoiavam os reatores a urânio natural, muito menos perigosos porque usam o minério quase como ele é extraído da terra. Mas apoiavam não por seu baixo risco e sim pelo fato de sua tecnologia ser menos sofisticada, podendo ser desenvolvida aqui com pouca ajuda de fora. Essa linha foi rejeitada pelo poder militar, que na verdade não confiava na ciência nacional, e também se via angustiado pela vantagem de pelo menos dez anos da Argentina na corrida pela bomba. Assim, preferiram comprar pacotes de tecnologia, mesmo que fossem fechados, com o propósito de aprender por cópia, ou chegar a bomba pelos resíduos ou efeitos propagadores das tecnologias compradas. Com o fracasso do programa que levou essa filosofia ao apogeu, o programa de cooperação com a Alemanha, a CNEN teve que se valer da ciência nacional por meio do programa paralelo, uma espécie de vale-tudo nuclear, que como até mesmo com a discreta ajuda "paralela" da própria Alemanha. O diagnóstico do Estado Maior das Forças Armadas, em 1982, de que a Argentina já estava em condições de produzir uma bomba, dependendo apenas de sua vontade política, fez com que o programa paralelo e todas as atividades nucleares e afins fossem consideradas de alta prioridade. "Cerca de 400 empresas e 18 universidades participam do programa paralelo", disse orgulhoso Rex Nazareth. Na reunião anual da SBPC em Belo Horizonte em 1975 a Sociedade Brasileira de Física condenou formalmente o uso militar da energia nuclear. E, na reunião de 1981, foi criada uma comissão para investigar o grau de envolvimento da comunidade acadêmica no programa paralelo. Mas o físico ainda rejeitava a visão de pesadelo da energia nuclear — aquela mesma energia que eles próprios haviam descoberto e apresentado ao mundo com uma promessa de redenção da humanidade, a energia infindável e limpa do sol nas mãos humanas.

Three Miles Island, Chernobil e agora Goiânia abalaram profundamente essas convicções. A última resposta da comunidade científica brasileira, seu último avanço, foi a cobrança firme de transparência dos programas nucleares e sua total subordinação ao poder civil. Mas assim como em outros países, não conseguiram em seu próprio meio criar um referencial ético alternativo ao da "ciência pela ciência", que afaste cada cientista da pesquisa claramente voltada ao uso militar, tornando-as moralmente condenáveis. Além disso, espera-se demais da palavra democracia. No campo nuclear, democracia não significa muito.

Várias invenções do nosso cotidiano nasceram sob égide da necessidade militar. Mas em nenhuma o domínio militar foi tão determinante e se manteve durante tanto tempo e de forma tão completa como no caso da energia nuclear. Mesmo em democracias burguesas acabadas, como a Inglaterra, Estados Unidos ou Holanda, grandes programas nucleares foram implantados por meio da dissimulação ou da omissão completa sobre os seus verdadeiros objetivos. Mesmo o programa nuclear Britânico, apresentado ao mundo em 1956 como o primeiro com fins estritamente pacíficos, tinha como real objetivo não a obtenção de energia, e sim o plutônio que fica sobrando da reação da matéria-prima da bomba atômica. Assim, a configuração dos reatores Magnox otimizava a produção de plutônio. A razão militar determina a tecnologia dos reatores. Os famosos reatores à água pressurizada, que se transformaram em padrão (São desse tipo Angra I e os reatores do programa com a Alemanha), nasceram da ideia da marinha americana de usar a reação nuclear que não consome oxigênio para mover submarinos que assim não precisariam emergir durante muito tempo. Essas máquinas teriam que ser compactas, para caber em submarinos, e assim nasceu a tecnologia do urânio enriquecido. Vinte e cinco anos depois, a marinha brasileira percorre o caminho inverso, usa o pretexto do submarino a propulsão nuclear para na verdade desenvolver a técnica do enriquecimento do urânio, um dos combustíveis da bomba.

Nem nas democracias formais e nem nos regimes não capitalistas conseguiu-se democratizar, tornar transparente ou subordinar ao estrito interesse público a energia nuclear. Essa impressionante vocação para a impunidade e para a manipulação pelos militares, por si só já condena a energia nuclear. É um equívoco esperar que alguns princípios inscritos numa nova Constituição alterem esse destino. Para os militares a posse da bomba representa a maioridade. No seu imaginário a bomba é tudo. É ainda mais importante do que é física nuclear para os físicos. E o ideário do militar brasileiro contém todos os ingredientes importantes da motivação da corrida nuclear. A disputa histórica com a Argentina que se constitui na base de todo ensinamento estratégico do Estado Maior Brasileiro. O nacionalismo. E, porque não, a necessidade de uma afirmação, após um ciclo de envolvimento direto em repressão política e na sustentação de um modelo de desenvolvimento econômico que levou o país à insolvência e as grandes massas à miséria. Rex Nazareth Alves, o homem da conto delta, o homem que enviou urânio ao Iraque, que conseguiu alguns bodes expiatórios para o acidente de Goiânia, corporifica esse imaginário militar: o único que não se abalou com Goiânia.

Bernardo Kucinski é editor do "Boletim Nacional" do PT.