Sociedade

A organização do poder local com base na participação popular é um tema urgente para o PT, com a proximidade das eleições nas prefeituras. Apresentado em outubro passado num seminário da Fundação Wilson Pinheiro, o texto que aqui publicamos, em versão reduzida, pode contribuir na discussão dos diretórios municipais

Se considera uma gestão democrática aquela que, por um lado, direciona seus recursos de acordo com os interesses da maioria da população e, por outro, cria condições para a ampliação dos direitos em geral, pode-se tomar a questão da participação popular como um de seus elementos constitutivos.

Nesse sentido, é claro, democracia não significa meramente a chamada democracia representativa (eleições diretas para o Executivo e o Legislativo, com suas atribuições específicas). Em primeiro lugar, trata-se de avançar na perspectiva da melhoria das condições de vida da população (por meio da democratização do uso dos recursos municipais). Em segundo lugar, trata-se de incluir a esfera dos direitos, além daqueles referidos à cidadania (habitação, saúde, educação, transportes etc.), também e principalmente o direito à participação popular direta nas questões municipais, por meio de movimentos sociais autônomos em relação à prefeitura.

Ou seja, para além da democracia representativa, cabe pensar na articulação desta com canais de democracia direta, seja no nível do Executivo, seja no do Legislativo. Na ausência de tais canais, é muito difícil que se instaure um efetivo controle da sociedade — ou, mais propriamente, da maioria da sociedade — sobre o Estado (no caso, o poder político local). Em outras palavras, é preciso refletir sobre a possibilidade da instauração de novas formas de relação entre os munícipes e o poder local, de maneira a, simultaneamente, superar o autoritarismo e o populismo e fazer frente ao poder econômico e à força das elites.

Com o intuito de evitar mal-entendidos, convém observar que a participação popular, enquanto tal, envolve dois pólos distintos: os movimentos sociais e o Estado. Nestas notas, a preocupação central não recai sobre os movimentos sociais internamente considerados mas sobre a maneira pela qual a intervenção do poder político local tem condições de favorecer a participação dos movimentos sociais.

O papel de uma gestão local centrada na participação popular ressalta, primeiramente, um papel, por assim dizer, negativo: uma tal gestão deve certamente apontar os limites que quaisquer alterações no poder local apresentam no que se refere a transformações sociais mais profundas. Isto é, não se faz socialismo em nível municipal. Além dos limites da ordem institucional — a subordinação ao nível central do Estado — permanecem os limites de ordem econômica os mecanismos de mercado e a acumulação de capital.

Há, porém, um papel talvez mais importante, de caráter positivo: uma gestão local comprometida com a participação popular pode e deve contribuir para o florescimento de uma cultura política socialista, alternativa à cultura política dos dominantes. Não, é claro, através da simples "propaganda" do socialismo, mas sobretudo por meio da colocação em prática, nas ações do dia-a-dia, de uma nova relação entre o poder político local e os munícipes, a qual permita entrever o que poderá ser uma sociedade democrática, sem explorados nem exploradores.

A herança de períodos anteriores da história brasileira e, sobretudo, do recente período ditatorial, é bastante pesada. Instaurou-se uma relação de exclusão entre o econômico (os interesses do capital) e o social (os interesses da classe trabalhadora). No nível estatal, existe fundo público (recursos) para a reprodução do capital, mas não há recursos para a reprodução da força de trabalho. De outra parte, é impressionante a força da ideologia capitalista sobre a sociedade brasileira: não há, no debate público, hoje, lugar para a alternativa ideológica socialista.

Esse lugar deve, portanto, ser conquistado. Mostrar, desde o nível local, a possibilidade do uso do fundo público para a maioria da população e, na linha da ampliação dos direitos, instaurar uma nova relação entre a comunidade e o poder estatal, em que aquela possa controlar a este, por meio da participação popular, significa abrir espaço para o questionamento da dominação. Significa, portanto, cumprir um papel de natureza não apenas conjuntural, mas estratégica, na linha da construção do socialismo.

Poder local, para o Partido ou para os Trabalhadores

Poder não é uma coisa, algo que se toma, por exemplo, por meio de eleições, mas uma relação: poder é capacidade de cada classe social defender seus interesses.

Assim o poder local não se confunde com a prefeitura e a câmara. Há outras formas de poder, além do político: o poder econômico, o poder social, o poder administrativo. São estes, aliás, de certo modo, que circunscrevem aquele, na medida em que, por meio de seus laços, capturam continuamente o poder político para garantir seus interesses.

A questão, por conseguinte, consiste em construir um poder alternativo, um poder exercido pela maioria e, portanto, contraposto ao poder econômico, administrativo e das elites no município. Algo que é muito mais do que vencer eleições.

Para a construção desse poder alternativo é preciso, inicialmente, que o partido ao vencer as eleições municipais se disponha a não querer enfeixar em sua mãos o poder. A idéia é um poder da classe trabalhadora, e não do partido, mesmo que este pretenda representar seus interesses. Isso não é pouco, pois exige que o governo (nas mãos do partido) abra mão de falar em nome dos trabalhadores, e assuma a possibilidade da existência de conflitos com os trabalhadores e com os movimentos sociais em geral.

É preciso, em segundo lugar, criar canais por meio dos quais possam adquirir poder aqueles que não o possuem; só assim será possível a estes — a maioria da população — contraporem-se ao poder econômico, administrativo ou das elites locais.

O poder econômico local consiste, basicamente, nos setores capitalistas que, de alguma maneira, dependem das decisões políticas locais: empreiteiras de obras e projetos etc; empresas que prestam serviços públicos municipais (de transporte coletivo, de limpeza pública etc.); fornecedores da prefeitura; interesses imobiliários etc. Convém, pois, não confundir o poder econômico local com o conjunto dos capitalistas cujas atividades se situam no município. É fácil perceber, por exemplo, a quase inexistência de interesses das grandes multinacionais junto ao governo local. Importa deixar claro que o poder local é sério entrave para que prevaleçam os interesses da maioria, uma vez que as prioridades municipais sejam estabelecidas a partir de sua influência.

O poder administrativo, por sua vez, decorre sobretudo do papel do Estado, o qual se concebe, e pretende que os outros o concebam, como aquilo que detém o conhecimento e os meios de agir sobre a sociedade. A herança autoritária tendeu a ampliar tal tipo de poder, que se encontra nas mãos dos que, pertencentes ao aparelho administrativo, possuem a capacidade de moldar decisões e encaminhamentos do poder político. Daí resultam a pretensão ao monopólio das informações pelo Estado, bem como o segredo burocrático, fortes inimigos da democratização das informações e do conhecimento.

Já o poder social das elites locais é fruto de condicionamentos de natureza simbólica. As elites se constituem enquanto um agrupamento social, fundado na "tradição" e no "esclarecimento", que se consideram aptas, por excelência, a ditar as normas de direção das questões municipais. Dado seu corte simbólico, consiste em grupo social de raízes heterogêneas, que combina setores do empresariado local (integrantes ou não do poder econômico), detentores de meios de comunicação, membros de clubes de serviços etc. Como decorrência de sua própria perspectiva ideológica, encontram-se no pólo oposto ao da construção de um poder popular.

O quadro de poder local esboçado acima sugere que a construção de um poder alternativo, nas mãos da maioria da população, supõe o estabelecimento de uma política de alianças, com limites claramente definidos: trata-se de abarcar, dentre os moradores do município, aquele conjunto de assalariados — da classe operária e das classes médias — e mesmo os donos de pequenos negócios locais, cujos interesses sejam distintos daqueles expressos pelo poder econômico, administrativo e das elites locais.

Tal quadro de alianças, convém frisar, possui desdobramentos de ordem estratégica, e não meramente tática, uma vez que se conceba a construção desse poder popular alternativo enquanto elemento que contribua para o questionamento da dominação.

Conselhos Populares

Em face ao quadro geral acima esboçado, convém examinar, em caráter de contribuição ao debate, alguns pontos relativos à questão da participação popular no poder local. O primeiro deles, certamente ainda em aberto, diz respeito à concepção dos conselhos populares.

1. O que seriam os conselhos populares?

A ideia de conselhos populares, no estágio genérico em que se encontra o debate sobre ela, carrega muitas ambigüidades, que precisam ser superadas para evitar a adição de opções políticas desprovidas de clareza quanto às suas consequências.

Por vezes, os conselhos populares são concebidos como órgãos dos movimentos sociais. Se assim fosse, os conselhos não deveriam fazer parte de uma política municipal, desde que se pretenda garantir a independência dos movimentos sociais ante o Estado. Em outros momentos, no entanto, os conselhos populares são pensados como órgãos criados a partir de decisões do poder político. Neste caso, não fica clara a relação dos conselhos com os movimentos sociais.

Na perspectiva destas notas para discussão, os conselhos populares devem ser considerados órgãos criados — e eventualmente institucionalizados — a partir de decisões do governo local, como parte de seu projeto político, na qualidade de canais que permitam expressar a participação popular independente.

Obviamente, isso implica distinguir os conselhos dos movimentos sociais para os quais se pretende abrir espaços de participação. Implica, ademais, diferenciar a criação de canais para a participação da própria participação. Esta última não depende do governo, mas sim da iniciativa dos próprios movimentos sociais. A instauração de processos de participação popular no poder local, portanto, para ser efetiva, independente e auto-sustentada, é função, em última instância, da capacidade que venham a possuir ou adquirir os movimentos sociais no sentido de exercer um poder social alternativo. Por mais que isto seja desejo de um governo local, não cabe a este efetivá-lo.

Nesta visão, os conselhos populares não devem ser confundidos com algo como os conselhos operários (sovietes), de natureza bem distinta. Enquanto órgãos criados pelo governo local, os conselhos populares podem vir a incluir, em certos casos, até mesmo setores do poder econômico, simplesmente por força das circunstâncias.

Suponha-se, por exemplo, que ainda existam empresas privadas operando o transporte coletivo municipal. Nessas condições, é contraproducente estabelecer canais de participação popular excluindo tais setores da discussão sobre as questões do transporte.

Entretanto, mesmo nesse caso limite, a diferença em relação ao que impera no quadro municipal da atualidade é certamente radical. Enquanto hoje apenas o poder econômico pode influir diretamente sobre as decisões do transporte — seja por canais informais, seja pelo assento em comissões de transportes institucionalizadas — na nova situação adquirem direito a participar diretamente os agentes sociais até então excluídos: usuários e trabalhadores em transporte, ou seja, a grande maioria dos envolvidos.

Em que sentido, afinal, a idéia dos conselhos populares é efetivamente inovadora? É que eles se constituem em espaços para a administração de conflitos a partir da sociedade, e não a partir do Estado. Eles podem, então, ser um dos meios de concretizar o estabelecimento de canais de controle da maioria da sociedade sobre o Estado, invertendo a relação autoritária e excludente hoje dominante.

A composição dos conselhos populares é uma questão que não parece permitir uma resposta precisa, e muito menos única, em face da diversidade de situações em um mesmo município e entre diferentes municípios.

Importa apenas estabelecer que não convém constituí-los na qualidade de órgãos corporativos. Como se sabe, o corporativismo é uma das manifestações do autoritarismo e do populismo no Brasil.

Assim, por exemplo, a gestão de um determinado serviço — transporte, educação, saúde etc — deve incluir a participação de usuários e trabalhadores desse serviço. Entretanto, na medida em que decisões nesse nível dependem de, e interferem em, elementos de caráter mais geral, parece interessante combinar a participação de usuários e trabalhadores do setor com outros, que representem os interesses mais amplos. Entre estes, em particular, representantes do próprio poder local.

Mas não há como estabelecer fórmulas gerais. Em outros casos, a composição do conselho pode possuir corte distinto. A discussão sobre orçamento, por exemplo, envolve o conjunto dos moradores, por princípio. Haverá outras situações nas quais convém incluir a participação de representantes de categorias profissionais de técnicos no assunto em questão (economistas, urbanistas, educadores, engenheiros etc.).

Levar até as últimas conseqüências a idéia de que a construção de um poder popular supõe que o governo local abra mão do poder de tomar decisões. Supõe dotar os conselhos populares — canais de participação popular — de caráter deliberativo, nas questões a ele atribuídas.

Contudo, parece razoável aceitar que, no estágio atual, ainda desprovido da necessária experiência acumulada, isto é, sem que tenham sido desenvolvidas formas mais legítimas e duradouras de conselhos populares, seria inconveniente estabelecer para estes, como regra geral, um caráter deliberativo.

Haverá casos, certamente, onde convém desde logo fixar ao próprio Conselho o poder de deliberar, sobretudo, em áreas de atuação nas quais a experiência ou a reivindicação dos movimentos sociais indica esse caminho. Em outros casos, no entanto, pode ser mais prudente estabelecer canais com caráter apenas consultivo, para evitar a fixação de fórmulas que podem-se chocar com a pretendida participação popular independente.

Quanto ao modo de escolha dos componentes dos conselhos populares há, de início, um sem o qual não se pode, honestamente, qualificar a participação popular ou comunitária [que] consiste na criação, pelo Estado, de órgãos de "participação" nos quais seus membros são indicados pelo próprio Estado, ou então são por ele selecionados. Trata-se, no caso, apenas de outro recurso de legitimação do poder político, ou de cooptação de segmentos excluídos.

É preciso, pois, estabelecer com clareza o princípio de acordo com o qual a escolha dos representantes de diferentes segmentos sociais componentes dos conselhos populares seja efetuada, de modo independente, a partir desses próprios segmentos sociais.

Isso, contudo, não encerra a questão. Uma escolha independente pode ser estipulada por meio de diferentes modos alternativos: eleição direta ou indicação das entidades ou movimentos sociais representativos do setor envolvido.

Quanto a isso, uma vez mais, não existem fórmulas acabadas. Por exemplo, a participação de segmentos cujas entidades representativas são consideradas, de modo consensual, como legítimas, parece mais de acordo com a fórmula da indicação direta pela(s) própria(s) entidade(s). Tal pode ser o caso de certos movimentos populares, de entidades representativas de categorias profissionais de técnicos, de sindicatos (que possuem longa tradição na vida social brasileira) etc. No caso de representação dos trabalhadores em geral, pode-se incluir a representação das duas centrais sindicais existentes.

Entretanto, pode ser mais usual a situação em que as entidades ou movimentos sociais representativos de determinados setores não são aceitos, sem contestação, na qualidade de seus representantes legítimos. Nessas circunstâncias, uma fórmula possível consiste em eleger diretamente os representantes junto ao segmento envolvido. Assim, eventuais entidades ou movimentos sociais que se reivindiquem porta-vozes de tais segmentos poderão, democraticamente, fazer indicações e disputar o processo eleitoral, confirmando, ou não, sua legitimidade.

Os movimentos populares, no Brasil, possuem uma tradição muito diversificada. Há, por exemplo, Sociedade Amigos de Bairros que mantêm atividades constantes junto aos moradores. Mas o que predomina são SABs que, na prática, não possuem qualquer representatividade social. Há bairros em que entidades populares distintas atuam, por vezes até em questões semelhantes. Há entidades que, em virtude de uma participação limitada de pessoas, em relação ao seu universo de integrantes potenciais, não gozam do prestígio necessário para confirmá-las como representantes únicas de um segmento social.

Em todos esses casos, e ainda naqueles para os quais não há qualquer entidade ou movimento social existente, parece mais conveniente o estabelecimento de um processo de eleição direta, portanto.

As observações acima, apesar de não conclusivas, auxiliam a especificação de um segundo princípio para o modo de escolha dos integrantes dos conselhos populares. Assim, além do princípio da independência da escolha, pode-se fixar também o princípio da legitimidade do processo de escolha dos representantes de diferentes segmentos sociais. Definido tal princípio, cada situação específica orientará um processo particular: por indicação de entidades ou movimentos sociais, ou, alternativamente, por eleições diretas.

Resta, ainda, registrar uma última questão: como combinar a busca da legitimidade da representação — através da institucionalização dos Conselhos, da eleição pelo voto — com o estímulo ao fortalecimento e a independência dos movimentos sociais?

Com efeito, há sempre o perigo — na ânsia de inscrever de modo mais permanente o direito à participação — de "fortalecer" de tal maneira um conselho popular a ponto de "empurrar" o movimento para dentro do conselho, isto é, para dentro do Estado. Com isso, esvazia-se o movimento, a construção de um poder popular independente deve estar atenta a esse tipo de problema, evitando criar armadilhas para os movimentos sociais. Essas, mais cedo ou mais tarde, tendem a se voltar contra os próprios movimentos sociais que se pretendia fortalecer.

Democratizar Informações

O princípio da democratização de informações é, antes de mais nada, elemento constitutivo de uma gestão local democrática. Não é novidade afirmar que o saber confere poder. Logo, a democratização do poder supõe a democratização do conhecimento.

Uma gestão democrática necessita, pois, contrapor-se ao ponto de vista do Estado. Conforme se argumentou antes, tal ponto de vista conduz ao monopólio estatal de informações e ao segredo burocrático, praticados pelo poder administrativo. Além do mais, o monopólio estatal de informações serve, também, ao poder econômico, para o qual não interessa um debate aberto a respeito de prioridades públicas.

Em segundo lugar, o princípio da democratização de informações é um pressuposto da instauração de um processo de participação popular independente. Sem o acesso ao conhecimento, os movimentos sociais ficam privados de elaborar propostas próprias, e mesmo de avaliar alternativas colocadas pelo Estado. Por conseqüência, este pode manter sua pretensão ao monopólio do conhecimento e da ação social, e o poder econômico vê facilitada sua tarefa de impor as prioridades políticas de seu interesse particular.

Do ângulo do governo local, assumir o principio da democratização de informações significa, em primeiro lugar, que o poder político abra mão do segredo burocrático e do monopólio de informações. A aceitação de exceções pode ser problemática, pois num segundo momento fica difícil distinguir entre a regra e as "exceções". Na medida em que o ponto de vista do Estado se sustenta no interior do aparelho administrativo (sobretudo no meio dos "técnicos"), é preciso pensar em mecanismos que permitam alterar essa tendência. Há, portanto, necessidade de introduzir transformações no aparelho administrativo, de maneira a possibilitar uma nova relação entre os "técnicos" e a população. Estes, ao invés de monopolizarem o saber, precisam estar a serviço da democratização do saber.

Enfim, é necessário um conjunto de iniciativas do governo local no sentido de tornar público efetivamente o acesso às informações que deveriam ser públicas, por serem de interesse da maioria.

Trata-se, por vezes, de coisas simples, como por exemplo afixar nos pontos e no interior dos ônibus os intervalos a serem cumpridos contratualmente. Medidas como essa criam condições para formas de fiscalização individuais e coletivas. Não basta implantar um telefone de reclamações, se as pessoas não têm condições de estarem cientes de seus direitos. Outros exemplos importantes dizem respeito à divulgação, ampla e simplificada, do conteúdo do orçamento municipal ou de outros planos do governo local.

Descentralização

Evidentemente, a descentralização política e administrativa não leva de modo automático à democratização do poder. Por um lado, porque a descentralização pode significar apenas uma alteração da distribuição de recursos no interior do campo do poder econômico. A descentralização pode, nesse caso, apenas cumprir a função de fornecer, a um ou outro segmento do poder econômico, condições de acesso ao fundo público, permanecendo a maioria da população excluída dele.

Por outro lado, de nada resolve a descentralização se a relação entre o poder político e a sociedade continua a ser pautada por procedimentos autoritários, populistas ou clientelistas. Nessas condições, a descentralização pode significar somente a abertura de novos canais, mais próximos aos moradores dos bairros, com o sentido de reproduzir aqueles mesmos procedimentos que se trata justamente de superar.

Porém, a descentralização da gestão local pode ser condição para o fortalecimento da participação popular, embora não se confundindo com ela. Assim, verifica-se que, quanto maior a parte de uma aglomeração urbana, maior costuma ser a dificuldade de acesso ao poder político local por parte dos movimentos sociais e dos moradores em geral.

Constata-se, ainda, a existência de serviços públicos cuja gestão descentralizada é bastante adequada aos procedimentos de participação popular. Tais são os casos, por exemplo, dos serviços de educação, saúde, cultura, esportes, lazer etc. Ninguém melhor do que os próprios moradores do bairro ou região, usuários do serviço, para geri-los em conjunto com os trabalhadores que os produzem.

Mesmo aquelas atividades cujas decisões exigem fóruns centralizados no nível do poder local — como é o caso, por exemplo, da discussão orçamentária — abrem espaços para uma participação popular mais ampla na medida em que sejam articuladas a procedimentos de participação descentralizada.

Desse modo, tem-se demonstrado ser perfeitamente possível combinar o debate e a escolha de delegados de bairros, comprometidos a prestar contas aos moradores, com o processo de discussão centralizada das prioridades orçamentárias municipais.

Dualidade de Poder?

É comum, ante o anúncio da proposta dos conselhos populares, o aparecimento de uma indagação a respeito de se o Legislativo, nesse caso, deixaria de ter qualquer função. Uma outra forma de manifestação de questão semelhante a anterior se refere à pergunta sobre até que ponto o estabelecimento de canais para a participação popular contradiz o princípio do fortalecimento do poder Legislativo.

Em outras palavras, a criação de formas alternativas de exercício de poder centradas na perspectiva da participação popular em simultâneo ao fortalecimento do poder Legislativo não corresponderia à existência de uma dualidade de poder, incomparável com o momento vivido pela sociedade brasileira?

Ao que parece, essa é, na verdade, uma falsa questão, derivada de uma confusão entre processos distintos. Uma coisa é existência de competências concorrentes, com regras institucionais estabelecidas para o processo decisório. Outra, bem diferente, diz respeito à coexistência de duas instâncias de poder numa situação em que uma não se remete à outra.

Neste último caso, típico de situações revolucionárias, a instância de poder antiga convive com outra nova, criada no processo revolucionário, de maneira que uma nega legitimidade da outra, ou seja, a relação entre as duas instâncias de poder é a exclusão.

No primeiro caso, duas instâncias de poder possuem competência concorrente, isto é, participante do processo de decisão à respeito de um mesmo assunto, com papéis diferenciados. A relação entre elas é de complementaridade, e não de exclusão. Esse tipo de situação é próprio da democracia representativa burguesa. Assim, para uma série de assuntos, a iniciativa de projetos de lei é de competência tanto da Câmara quanto do prefeito. Uma vez aprovado um projeto de lei pelo Legislativo, este pode ser vetado pelo Executivo. A derrubada do veto pelo Legislativo, nesse caso, é mais difícil do que a aprovação original do projeto.

Portanto, já existe hoje um conflito entre as instâncias de poder Executivo e Legislativo, em muitos dos assuntos de competência municipal. De modo geral, o fortalecimento do legislativo não representa outra coisa senão uma ampliação dessas áreas de conflito, o que é perfeitamente compatível com as instituições vigentes.

A introdução de mecanismos de participação popular, seja no nível do Executivo, seja no do Legislativo, com regras institucionais estabelecendo seus campos de competência, possui resultado semelhante: uma extensão dos campos de conflito potencial, uma vez que entram em cena novas instâncias de poder para participar de decisões sobre os mesmos assuntos.

Cite-se, a título de exemplo, o processo orçamentário: é perfeitamente possível, em tese, o estabelecimento de procedimentos por meio dos quais as prioridades orçamentárias sejam definidas pela população diretamente. Se o Executivo acata tais definições, enviando ao Legislativo um projeto compatível com aquelas prioridades, cabe então à Câmara aprová-lo, vetá-lo ou alterá-lo supondo que suas atribuições lhe permitam essas várias alternativas.

Se houver vetos ou alterações, os vereadores responsáveis terão que responder politicamente pela sua escolha. Caso o processo participativo que redundou na definição de prioridades orçamentárias não tenha sido suficientemente representativo, tais vereadores provavelmente não enfrentarão grandes problemas.

Porém, na eventualidade de o referido processo participativo representar efetivamente a vontade da maioria dos moradores, o fato de os vereadores procederem às modificações nas prioridades — talvez pressionados pelo poder econômico — tem como conseqüência pesado ônus político que tenderá a recair sobre eles, na medida em que sua atitude não seja considerada legítima pela população. De mais a mais, se houver possibilidade de veto popular, a decisão da Câmara poderá ser revogada, sem dificuldades.

Celso Daniel é professor da PUC-SP e da FGV. É filiado ao PT em Santo André, tendo sido candidato a prefeito em 1982.