Sociedade

O Partido dos Trabalhadores não pode adotar a postura das comemorações oficiais. Também não pode fazer a celebração proletária da abolição. Tem de encarar a questão de frente e refletir a fundo sobre as relações entre raça e classe.

O PT, como e enquanto partido das classes operárias e das massas populares, não pode estar ausente das comemorações do "Dia da Abolição". A data constitui uma ficção histórica. Uma princesa assinou uma lei que extinguia uma instituição que já estava morta. No entanto, a historiografia oficial e as classes dominantes posteriormente transformaram essa data em um marco histórico e a converteram no símbolo de que, no Brasil , a escravidão se encerrara por iniciativa dos de cima e de "modo pacífico". Ora, os fazendeiros de café ainda pretendiam prorrogar o uso dos escravos, por meio de contratos que passaram a ser transacionados desde o pico da luta abolicionista (mais ou menos de 1885 em diante, em algumas regiões) e puniram a Coroa para essa "boa ação". E o próprio Estado, sob o Império e de maneira avassaladora sob a República, iria compensá-los por suas "perdas". Os proprietários de escravos pleiteavam a indenização: obtiveram a imigração em larga escala, financiada pelo poder público. A "Lei Áurea" foi um dissabor, que deu alento ao gigantismo de uma política que já vinha sendo posta em prática e acabou sendo levada às últimas consequências. Os escravos é que foram expulsos do sistema de trabalho e, onde houve abundância de mão de obra livre, nacional ou estrangeira, viram-se diante de uma tragédia. Despreparados para competir com os imigrantes ou para se deslocarem para outras ocupações, foram condenados ao ostracismo e à exclusão. Somente a mulher negra logrou enfrentar esse período sem perder onde trabalhar, embora sujeita a uma exploração aviltante. Os abolicionistas deram seus compromissos por terminados. Eles não se soldavam às pessoas dos escravos, mas com o fim da escravidão e o início de uma nova era social, aberta ao trabalho livre, ao "progresso" e à aceleração do desenvolvimento urbano-comercial. Poucos ficaram ao lado dos negros, como o fez exemplarmente Antônio Bento, em São Paulo, combatendo tenazmente os abusos cometidos contra o negro e defendendo sua "redenção social".

Vista de uma perspectiva histórica ampla, o 13 de Maio não constituía o marco da generosidade da raça dominante. Era uma data histórica que testemunhava a vitória dos de baixo, uma data de significado popular. Os principais agentes dessa vitória eram os próprios negros. Os escravos rebelaram-se nas senzalas e deixaram de obedecer os contratos maquinados pelos senhores, que lhes conferiam a liberdade em troca de um período predeterminado de prestação gratuita de trabalho (cinco, quatro, três ou dois anos). Ao abandonarem as fazendas e aceitarem tarefas a pagamento de fazendeiros vizinhos (o que era proibido pelo código de honra dos fazendeiros) eles desorganizavam a produção e, o que foi mais decisivo no fim, suspendiam a colheita. Já não havia nada a salvar. Nem propriedade do escravo nem sujeição do escravo a lei ou à repressão senhorial. Por outro lado, como assinala Antônio Bento, o verdadeiro apoio de massa à libertação dos escravos provinha de baixo, dos trabalhadores urbanos e dos artesãos, donos e empregados de alfaiatarias, sapatarias, padarias, oficinas etc., que rompiam na prática com a ordem estabelecida. O tope sancionou o que se impunha pelo clamor do povo. A ingenuidade da princesa serviu à causa popular, o que não impedia que o Brasil fosse um dos últimos países a proclamar oficialmente o término da "instituição odiosa".

Esses fatos são claros. Eles indicam que o PT não pode e não deve engrossar a onda de consagração da versão oficial da história e de endeusamento da ordem estabelecida. Há dois lados nessa comemoração. O da consagração do 13 de Maio como uma realização altruística da Casa Imperial e de elogio à conciliação. O do negro, agente desconhecido das ações decisivas e fulminantes na hora final, e do desmascaramento da história oficial.

O primeiro lado põe-nos diante de uma irrisão. Se houve altruísmo e uma versão construtiva da conciliação, por que a abolição foi prorrogada até os limites da impossibilidade? Por que o Brasil figura na galeria dos países mais cruéis na espoliação e no massacre dos escravos? Por que não se implantou uma política de assistência e compensação aos antigos agentes do trabalho escravo?

Por sua vez, a segunda versão desvela a história sem as fantasias dos poderosos. O negro se defrontou com condições de trabalho tão duras e impiedosas como antes. Os que não recorreram à migração para as regiões de origem, repudiavam o trabalho "livre", que lhes era oferecido, porque enxergavam nele a continuidade da escravidão sob outras formas. Para serem livres, eles tiveram de arcar com a opção de se tornarem "vagabundos", "boêmios", "parasitas de suas companheiras", "bêbados", "desordeiros", "ladrões" etc. A estigmatização do negro, associada à condição escrava, ganhou nova densidade negativa. A abolição pela via oficial não abria nenhuma porta — fechava todas elas. Só os negros que viviam em regiões mais ou menos subdesenvolvidas — e não tiveram que competir com os imigrantes pelo trabalho — achavam empregos. Os que submergiram na economia de subsistência deparavam com um meio de vida e de sobrevivência. Os que ficaram nas cidades — e em particular os que foram ou permaneceram em São Paulo — "comeram o pão que o diabo amassou".

Essa é a "herança da escravidão", que recaiu sobre os ombros dos negros. Esse quadro teve um ou outro marco menos dramático ou feliz. Mas, como exceção. Os que haviam recebido alguma pequena herança dos velhos proprietários, os que, por paternalismo, receberam a proteção de famílias brancas poderosas e arrumaram algum emprego como contínuos, serventes ou em cargos modestos, os que já haviam se introduzido nas posições mais baixas do artesanato urbano, os que desapareceram em comunidades negras perdidas nos rincões desse vasto país. Todavia, eles eram a exceção. Campinas e São Paulo, como o demonstram testemunhos históricos da imprensa negra, servem de exemplo de que a abolição "jogou o negro na sarjeta" e ele teve de reerguer-se aos poucos, penosamente, para descobrir que o trabalho livre não era o equivalente social do trabalho escravo.

A Coroa, portanto, não emancipou os negros escravos. Simplificou as coisas para o poder público e para os proprietários de escravos. Eles ficaram desobrigados para conduzir a nova política de imigração em massa e de colonização. O futuro lhes pertencia. Os amigos escravos que se arranjassem e que abrissem seus caminhos como pudessem. Por isso eles eram escravos...

É através do negro e do indígena (e de remanescentes de aglomerados de "homens pobres livres", que vegetavam sob a economia de subsistência) que as seqüelas da colônia e da sociedade escravista iriam sobreviver e alimentar o subdesenvolvimento. Os trabalhadores brancos (imigrantes e nacionais) forjaram, dentro de pouco mais de um quarto de século, o trabalho livre como categoria histórica. Os demais foram alijados naturalmente desse processo e das vantagens dele decorrentes. Ficaram segregados. Só que os negros viviam dentro dos muros da cidade e não participavam de seus dinamismos, a não ser como exceção que confirma a regra. Em conseqüência, o negro engolfa-se em uma terrível tragédia. Apenas ele estava presente, sem ser participante ou sendo participante de maneira ocasional. Essas condições histórico sociais alimentaram a preservação de velhas estruturas sociais e mentais. Elas criaram o refugo social, os rejeitados. Só que o negro vive o drama dentro da cidade, espiando de perto como uns se tomavam GENTE e descobriam um lugar ao sol, enquanto ele vegetava.

Os velhos dilemas se reproduziam. O preconceito e a discriminação se ocultavam por trás do tratamento racial assimétrico, do branco da classe dominante (e de outros tipos de brancos); das iniquidades sociais, econômicas e culturais; da concentração racial da renda e da desigualdade racial extrema — e o negro era empurrado a aceitar e a engolir tudo isso!

Não tinha como lutar e como romper socialmente com a "herança da escravidão". O pior é que essa exclusão o marginalizava: o preconceito e a discriminação fechavam as oportunidades de integração ao sistema ocupacional ou as restringiam ao mínimo.

Como regra, o homem era mais facilmente contemplado com o "trabalho sujo", com o "trabalho arriscado" e com o "trabalho mal pago"; e a mulher mantinha a tradição de doméstica, da prática dos dois papéis (o de trabalhar e o de satisfazer o apetite sexual do patrão ou do filho-famílias) e de prostituição como alternativa.

Para classificar-se como trabalhador assalariado, pois, o negro tinha de vencer muitas barreiras e, como consequência, foi prolongado o período de transição maldita. Os mais pobres viviam em cortiços, em casas de cômodos ou porões para alugar. Até aí o negro enfrentava barreiras, indo parar nos cortiços famosos por serem grandes infernos, "buracos da onça", onde a desorganização social campeava a solta e todas as violências ocorriam simultaneamente.

Os seres humanos acuados não têm piedade diante de presas mais fracas. Encurralados e "emparedados", aceitavam um estilo de vida que convertia a desgraça em destino coletivo (já que "desgraça pouca é bobagem").

Não adianta ampliar esse quadro tétrico. Quem quiser um panorama mais amplo, leia o segundo capítulo do meu livro A Integração do Negro na Sociedade de Classes. O que importa assinalar é que "viver na cidade" não queria dizer "superar o passado", pelo menos para a imensa maioria. Este era o canal humano da perpetuação do passado, da continuidade de estruturas sociais e mentais coloniais e escravistas, que o negro odiava mas não podia extinguir.

Os negros e os mulatos tomaram a si — sem apoio externo — a tarefa de modificar essa situação. Os movimentos sociais no meio negro pretendiam esse objetivo ambicioso, contra todos e contra tudo. Na verdade, se alcançassem êxito, teriam limpado a sociedade brasileira das seqüelas do mundo colonial e da sociedade escravista. Através de uma revolução dentro da ordem, conquistariam o que lhes fora negado.

É emocionante acompanhar esses movimentos. Eles não atingiram todo o meio negro, entorpecido e brutalizado demais para dar semelhante salto histórico coletivamente. Mas construíram uma visão negra da sociedade que a ordem legal existente comportava e lhes era proibida. Por suas vias intelectuais e por seus méritos, a imprensa negra e várias organizações ou associações negras denunciaram a realidade, desmascararam as manifestações e os efeitos do preconceito de cor e da discriminação racial, desnudaram a hipocrisia das leis e da constituição. Propuseram-se ser os campeões de sua defesa, porque aspiravam à condição de cidadão e lutavam por instituir a Segunda Abolição, a abolição erigida pelos negros e para os negros. A antítese da "abolição oficial", da falsa abolição, que só emancipou os senhores de suas obrigações econômicas, sociais e morais diante do escravo. Foram a fundo na análise objetiva das responsabilidades do negro pela situação existente. Mas foram ainda muito mais longe na denúncia do branco e na descrição do "mundo dos negros" que a abolição e suas sequelas produziram para "manter o negro em seu lugar".

O PT precisa tomar posição diante dessa problemática, divorciando-se das ilusões correntes. Não basta ser socialista para entender o que sucedeu com o negro e o que deve se fazer para alterar a situação racial que persiste até hoje. Não basta recorrer ao "movimento popular" como terapêutica de assistência social e de "cura" na opção pelos excluídos. Essa linguagem pode traduzir solidariedade humana e fraternidade social. Não obstante, o dilema social representado pelo negro liga-se à violência dos que cultivaram a repetição do passado no presente. E exige uma contra-violência que remova a concentração racial da riqueza, da cultura e do poder.

Esse dilema liga entre si luta de classes e luta de raças (uma não esgota a outra e, tão pouco, uma não se esgota na outra). Ao se classificar socialmente, o negro adquire uma situação de classe proletária. No entanto, continua a ser negro e a sofrer discriminações e violências. Afirmar-se somente pela raça pressupõe uma utopia. A resistência negra nas décadas de 1930, 1940 e parte de 1950 suscitou o reacionarismo das classes dominantes, que logo denunciaram o "racismo negro"! Além disso, mesmo onde negros e brancos conviviam fraternalmente, nem por isso os brancos sentiram-se obrigados a dar solidariedade ativa aos porta-vozes e às manifestações da rebelião negra. Hoje, a situação histórica é distinta. O que nos impele a pensar sobre o assunto sem as viseiras do socialismo reformista e da assistência social humanitária.

De um lado, é imperativo que a classe defina a sua órbita, tendo em vista a composição multirracial das populações em que são recrutados os trabalhadores. Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigências diante do capital. Todavia, há um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigências diferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindicações de classe e das lutas de classes.

Indo além, em uma sociedade multirracial, na qual a morfologia da sociedade de classes ainda não fundiu todas as diferenças existentes entre os trabalhadores, a raça também é um fator revolucionário específico. Por isso, existem duas polaridades, que não se contrapõem mas se interpenetram como elementos explosivos — a classe e a raça.

Se a classe tem de ser forçosamente o componente hegemônico, nem por isso a raça atua como um dinamismo coletivo secundário. A lógica política que resulta de tal solo histórico é complexa. A fórmula "proletários de todo o mundo uni-vos" não exclui ninguém, nem em termos de nacionalidades nem em termos de etnias ou de raças. Contudo, uma é a dinâmica de uma estratégia fundada estritamente na situação de interesses exclusivamente de classe; outra é a dinâmica na qual o horizonte mais largo estabelece uma síntese que comporte todos os interesses, valores e aspirações que componham o concreto como uma "unidade no diverso". Classe e raça se fortalecem reciprocamente e combinam forças centrífugas à ordem existente, que só podem se recompor em uma unidade mais complexa, uma sociedade nova, por exemplo.

Aí está o busilis da questão no plano político revolucionário. Se além da classe existem elementos diferenciais revolucionários, que são essenciais para a negação e a transformação da ordem vigente, há distintas radicalidades que precisam ser compreendidas (e utilizadas na prática revolucionária) como uma unidade, uma síntese no diverso.

Um exemplo pode ilustrar o raciocínio. Os operários podem interromper um movimento porque conquistaram o aumento do salário, a introdução de comissões no local de trabalho, a readmissão de colegas demitidos, liberdade de greves e de organização sindical etc. Não obstante, os trabalhadores negros poderão ter reivindicações adicionais: eliminação de barreiras raciais na seleção e promoção dentro da fábrica, convivência igualitária com os colegas, supressão da condição de bode expiatório na repressão dentro da fábrica e fora dela, acesso livre às oportunidades educacionais para os filhos etc. A moral da história é que embora o trabalho seja uma mercadoria, onde há uma composição multirracial, nem sempre os trabalhos iguais são mercadorias iguais... Nas lutas dentro da ordem, a solidariedade de classe não pode deixar frestas. As greves e outras modalidades de conflito, que visam o padrão de vida e as condições de solidariedade para o trabalhador, não podem admitir a reprodução das desigualdades e formas de opressão que transcendem à classe.

Esse não é, porém, o argumento mais importante. A classe é, para o proletário, a formação social que organiza seu confronto com a ordem. O essencial não é o "melhorismo", a "reforma capitalista do capitalismo". Mas, a eliminação da classe, do regime de classes e da sociedade organizada em classes.

Em sociedades de origem colonial há elementos de tensão que tornam algumas categorias de proletários mais radicais e revolucionárias que outras. Quer para as transformações dentro da ordem, quer para a revolução contra a ordem, tais elementos de tensão são cruciais para a radicalização e a tenacidade dos movimentos sociais proletários.

Isso não quer dizer que todo o negro poderá ser um militante proletário mais firme e decidido que os demais. Quer dizer que a raça é uma formação social que não pode ser negligenciada na estratégia da luta de classes e de transformação dentro da ordem ou contra ordem, que há um potencial revolucionário no negro que deve ser despertado e mobilizado. Uma coisa é jogar contra o capital o dinamismo negador de classe contra classe. Outra coisa é jogar contra ele todos os dinamismos revolucionários que fazem parte da situação global. O negro acumulou frustrações e humilhações que tornam incontáveis os seus anseios de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Ele não pode dar a outra face. É tudo ou nada. Ou rebeldia ou capitulação. Ou democracia para valer ou luta contra os grilhões, agora ocultos por trás de uma pseudodemocracia. Reflexões desta natureza podem parecer equivocadas. Mas, por que as elites temem as classes trabalhadoras e, mais ainda, "o populacho", em sua maioria composto de negros e de mestiços?

O essencial é que há uma abolição a ser construída e que os negros tomaram em suas mãos, há mais de cinquenta anos, a idéia de realizar uma Segunda Abolição. Não podemos manter as posturas das comemorações oficiais. Porém, também não podemos fazer a celebração proletária da abolição. Esta implica transcender a ordem existente, destruí-la, criar uma nova ordem social libertária e igualitária. Não é suficiente, pois, dizer não às comemorações oficiais, desmascará-las. É necessário refletir a fundo sobre a realidade atual e propor ao PT que ele dê as mãos aos negros e a todos que exigem uma abolição que se atrasou historicamente e deve ser feita dentro do capitalismo, contra ele, ainda na era atual.

Florestan Fernandes é professor universitário, sociólogo e deputado federal pelo PT-SP.