Cultura

A um tempo incômoda e inevitável, a associação entre a atividade criadora e as drogas alteradoras do estado de consciência/percepção não habita apenas o ensaio em que Huxley transborda o seu fascínio sobre o que é "gozar em solidão". Os exemplos não se contam.

"Os mártires penetram na arena de mãos dadas; mas são crucificados sozinhos. Abraçados, os amantes buscam desesperadamente fundir seus êxtases isolados em uma única autotranscendência; debalde. Por sua própria natureza, cada espírito, em sua prisão corpórea, está condenado a sofrer e gozar em solidão. Sensações, sentimentos, concepções, fantasias — tudo isso são coisas privadas e, a não ser através de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre experiências, mas nunca as experiências. Da família à nação, cada grupo humano é uma sociedade de universos insulares".

Aldous Huxley

O escritor inglês Aldous Huxley encarou e testemunhou a individualidade (o indivisível) do ser humano quando passou pela individualidade extrema de si mesmo. Aos 59 anos, "numa radiosa manhã", às 11 horas, ingeriu a sua primeira dose de mescalina (quatro decigramas em meio copo d’água), o alucinógeno que é o princípio ativo do peyote, que os astecas obtinham mascando a raiz de um certo tipo de cacto. Para Huxley, a descoberta foi maravilhosa, e ligeiramente mística, conforme ele a descreveu no ensaio As Portas da Percepção, publicado no ano seguinte, em 1954. Se para os astecas o peyote era um catalisador do êxtase religioso — a função da droga como um canal para Deus se repete fartamente, como no uso da "auasca" pela seita União do Vegetal, no emprego do álcool nos rituais de candomblé ou mesmo na ingestão simbólica do vinho pelo sacerdote católico —, para Huxley a mescalina abria novos horizontes para o alcance e para o repertório da produção cultura.

A um tempo incômoda e inevitável, a associação entre a atividade criadora e as drogas alteradoras do estado de consciência/percepção não habita apenas o ensaio em que Huxley transborda o seu fascínio sobre o que é "gozar em solidão". Os exemplos não se contam. O ensaísta de Frankfurt, Walter Benjamin, anotou (parte da) sua relação com a droga em Haxixe, assim como o poeta simbolista brasileiro Cruz e Souza tem em certos sonetos o registro do éter nas suas imagens vaporosas. Com a reorganização da sociedade após a Segunda Guerra, no entanto, e mais notadamente na década de 60, o uso da droga na ação cultural tornou-se um devaneio ao acesso das massas. Se o gozo solitário, o movimento se expande para as dimensões do coletivo. Já nos anos 50, o alcalóide de Huxley era sintetizado em laboratórios. Na seqüência, o LSD foi espalhado pelas estradas americanas por Timothy Leary como o combustível da contracultura e do psicodelismo. Em 1970, o guitarrista Jimmy Hendrix, aos 28 anos, morreria em função de uma overdose de — segundo laudos oficiais — barbitúricos. Fim análogo teve a cantora Janis Jopplin, e tantos. Talvez uma paráfrase mórbida dos "mártires que penetraram na arena de mãos dadas e são crucificados sozinhos". Talvez o despertar terrível de um "sonho que acabou".

Na virada dos anos 80, a morte de Sid Vicious, líder da banda inglesa Sex Pistols, com heroína no sangue, rememorava Hendrix. Aos 22 anos, Sid Vicious deixava para trás a mais vigorosa explosão cultural da juventude dos últimos tempos: o movimento punk.

O binômio droga-criação, presente com uma insistência provocativa do fim do século XIX para cá, parece eleger, em períodos particulares, certas "modalidades" de arte em particular para neles se concentrar. E sempre mais visível nas atividades criadoras que mais democratizam seus meios comunicadores, que se tornam acessíveis, mais do que para uma população crescente de consumidores, para uma quantidade muito maior de autores em potencial. Na mesma razão, são as linguagens artísticas que mais empatia forjam com as novas gerações. Assim foi a poesia nos anos 20 — "melhor morrer de vodka do que morrer de tédio" — que atravessou o fogo das contradições históricas, e assim foi o rock’n'roll nos anos 60. E o que se vê hoje nos movimentos herdeiros do rock e, de um modo muito específico, em certas vertentes do cinema, tanto inglês quanto americano.

Obras como Sid and Nancy, do inglês Alex Cox, por exemplo. Não por acaso, é um cinema produzido por autores identificados com a insurreição estética mais anárquica e descomprometida. A realidade, além de audível e musical, adquire uma textura visual e fragmentada. O cinema, como o rock, transforma-se em idioma internacional para os adolescentes que se desamarram do fluxo normal da sociedade opressora e impessoal.

Não é difícil perceber a ligação de conteúdo que há entre esses sinais de explosão cultural e as mais graves contradições sociais das quais ela emerge. Herdeiros do desemprego europeu, da inflação americana, do racismo oficial de países invadidos por imigrantes ilegais, da ameaça terrível das armas nucleares ("no future"), das derrotas das bandeiras libertárias de 1968, da falência irreversível das formuletas de "mudança social" ainda defendidas pelos partidos da esquerda tradicional — os rebeldes fragmentados dos anos 80 multiplicam-se nas esquinas de Amsterdã, nos porões de Londres, nas ruas de Berlim, e também aparecem em Pequim, Varsóvia, Moscou, Buenos Aires e Diadema. Por que não?

Mas no Brasil é sempre embaraçosa a tentativa de se detectar a forma nacional de movimentos e contradições de conteúdos internacionais. Em termos culturais, especialmente. Este é um país onde elites minúsculas, sem esforços, conseguem fabricar o próprio círculo artístico e intelectual de maneira tão artificial quanto escandalosa. São elites capazes de importar companhias teatrais inteiras para fundar um teatro nacional, de importar câmeras, gruas, iluminadores e diretores para fazer nascer um cinema brasileiro. No Brasil, duas ou três pessoas que se reúnam uma vez por mês estão arriscadas a sustentar por meio século toda uma escola estética que, por sua vez, é seguida por meia dúzia.

No entanto, a despeito do subdesenvolvimento cultural, da perseguição colonizada de uma "identidade" nacional, emergem expressões da mais autêntica originalidade e capazes da mais aprimorada universalidade, mas sempre contra uma certa face da autoridade constituída, e nunca por causa dela, quando dada ao mecenato. Agora, contudo, não se trata de encontrar uma arte acabada, ou artistas "verdadeiros" dentro do caldeirão. Trata-se de localizar as formas nacionais de uma explosão cultural fragmentada de dimensões internacionais; é dentro dela que estão os milhares de jovens e adolescentes que arrebentam, no interior de si mesmos, as barreiras que aparentemente não é mais possível arrebentar no mundo.

Filhos da classe média aviltada é do jovem proletariado brasileiro, corajosos voluntários, no limiar dos anos 80, começam a compor os núcleos de insurreição cultural. São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, São Bernardo do Campo. Começam a pipocar as bandas de rock ensaiando em qualquer lugar, as gangs de rua com seu corolário de ídolos suspeitos, que vão de Che Guevara, pouco lido, a Ozzy Osborne, bem ouvido. São os garotos que desferem correntadas nos pára-brisas dos automóveis reluzentes que encontram pela frente, garotos que cheiravam cola e que descobrem que podem fazer o inferno sonoro com um baixo elétrico de terceira. Fazem uma barulheira desengajada — porque acima de tudo independente.

Mas essa mesma juventude, que se vangloria de não se amarrar a religiões ou partidos políticos, não deixa de comparecer às grandes manifestações de protesto político, pois afinal de contas ela quer é barulho. Quando se dispõe de ir votar, costuma assinalar os candidatos da esquerda e, a partir dos laços que mantêm com os trabalhadores pobres, às vezes está em contato com militantes dos partidos da classe operária. Por outro lado, quase nunca encontra, nas instituições sociais (nos partidos, inclusive), representantes capazes de experimentar a individualidade (o indivisível) do ser humano e de compartilhar com ela a criatividade e o desespero de um tempo sem futuro.

Essa juventude tem uma expressiva existência política, sem dúvida, mas no estrito sentido em que a existência política decorre de uma ação cultural. Para ela, a concepção do coletivo não é aquela às custas das abdicações e dos sacrifícios íntimos em nome de um mundo remoto sem exploração. A coletividade ao contrário, emerge da afirmação das individualidades e das somatórias imprevisíveis dessa afirmação. Feito uma legião de artistas sem carteira profissional de artista, esses jovens e adolescentes desafiam a ordem com gritos e canções de baixa qualidade, numa quantidade epidêmica. São eles que vivem hoje, aos milhares, com toda a intensidade, as delícias e as dilacerações que o binômio droga-criação pode levar para dentro do espírito de cada um.

Antes, porém, das delícias raras e das dilacerações elevadas de que falou Huxley, eles são vítimas do preconceito, da perseguição policial e da hipocrisia dos intelectuais burgueses que, na sede insaciável de novos sabores da "pós" modernidade, com finalidades culturais escusas, gostam bastante de consumi-los. A juventude é vítima, enfim, da força destruidora de uma sociedade que vê nela, juventude, a expressão do esgotamento das possibilidades históricas das relações sociais vigentes.

O preconceito, o reacionarismo na base da inércia, destila seu veneno contra o uso de qualquer droga que não seja tabaco, álcool, açúcar ou café. Esta regra às vezes inclui a cocaína, excitante, que está para a produtividade pró-sistema dos yuppies assim como a maconha estava para o ócio anti-sistema dos hippies. O que a sociedade combate é a alteração de consciência e de linguagem que implique alteração de comunicação e de relações entre os homens. A polícia, a mesma que detém o tráfico, enjaula o usuário nas prisões e nas clínicas psiquiátricas, tanto em nome da lei como em nome da medicina. Se o texto legal tem demonstrado a refinada virtude de saber dar um passo para frente para depois dar dois passos para trás nessa matéria — veja-se pelos países que apresentavam abrandamentos em suas legislações há vinte anos e que hoje estão duplamente coercitivos —, a ordem médica, continuação da ordem penal por outros meios, dá a cada dia mais mostras de sua aversão às drogas.

Mas não são essas perseguições corriqueiras à droga e ao drogado que têm mais importância aqui. Paralelos aos expedientes de vigiar, espreitar, punir, curar e eliminar tudo que seja diferente e tudo que deseje diferença, a sociedade desenvolve mecanismos próprios para a absorção e neutralização do drogado cuja criatividade já tenha impactado a retina da cultura oficial.

É quase um sistema orgânico de incorporar a desobediência para vacinar-se da eventualidade (progressivamente menos eventual e mais certa) dessa mesma desobediência generalizada.

Sensações, sentimentos, concepções, fantasias, "tudo isso são coisas Privadas e, a não ser através de símbolos, e indiretamente, não podem ser transmitidas. Podemos acumular informações sobre as experiências, mas nunca as experiências." Pura ideologia viva, a sociedade busca apreender exatamente os símbolos da experiência de ruptura para então tomá-los — manipuláveis na sintaxe da cultura — pela própria experiência de ruptura que os gerou. Como as religiões que, monopolizando a cerimônia de transcendência do indivíduo, procuram o controle político da comunidade inteira, a cultura que dá unidade à sociedade na teia de seus signos, à medida que absorve e traduz o gesto de rebeldia, procura ampliar e reforçar o arco dessa unidade social. Não se trata mais de agir contra o ator químico da droga, nem de agir como o direito contra o crime ou a medicina contra a doença, não se trata mais de punir e curar. Trata-se, isto sim, de promover o esvaziamento do gesto crítico de drogar-se.

Tanto mais isso é verdade quanto mais a droga e a criação caminham juntas. Tanto mais é opressiva uma sociedade quanto mais a liberdade que lhe foge ao controle está em exercício. Dois casos recentes ilustram bem, tanto a absorção dos símbolos da rebeldia quanto a tentativa de sua neutralização: os processos contra Arnaldo Antunes, o ótimo poeta dos Titãs, em 1985, e contra João Luís Woenderbag Filho, o Lobão, um dos mais provocativos roqueiros do Brasil, em 1987. Ambos por causa de drogas. Além da medicina, da polícia, do direito, agiu também o expediente de esvaziar o gesto político de drogar-se, expediente que se viabiliza na lógica cínica do mercado de arte. Ironicamente, coube a um juiz de direito dizer uma frase que deu a síntese da interferência das falsificações ideológicas: "o Lobão não é um marginal, mas uma pessoa de sensibilidade". Assim, à divisão não declarada dos homens em duas classes sociais, substitui-se mecanicamente a divisão dos homens em duas categorias de "pessoas": aquelas "de sensibilidade" e... o resto. Mas cabe à cultura, e não aos juízes de direito, apropriar-se do símbolo da experiência de ruptura — e o símbolo pode ser mesmo uma pessoa de carne e osso. O símbolo é decretado arte — todo o resto é "marginal". É a parte pela arte.

O símbolo apropriado sustenta a lógica da mercadoria da arte, que adquire valor por meio da artificial escassez de autores contra uma artificial voracidade de consumidores mil. É claro que não haveria mercado de arte nesses termos se dois, três, quatro milhões fossem "os jovens de sensibilidade". O símbolo (de carne e osso) da alteridade é seduzido, esfatiado, vendido à idolatria da multidão; a memória de sua rebeldia é incorporada pela cultura, numa investida predatória, que se apropria da carcaça da identidade do outro como se fosse a sua própria.

O magistrado, por fim, desferiu um xingamento contra todos os outros jovens que usam drogas mas que não se chamam Lobão. Bastam dois dedos de tautologia. São todos marginais. Em termos objetivos, não restam dúvidas. Quase todos somos marginais. Não foi, no entanto, esse o sentido que o juiz deu a palavra. Para ele, marginal é sinônimo de "bandido ", de pessoa "sem sensibilidade".

Eis que a arte dos donos da cultura só funciona entre as elites, para ser produzida entre poucos e consumida em massa. Para cada artista que subverte e transgride para os donos da cultura, a arte é a "transgressão permanente"; com carteira profissional, milhões de pessoas estão condenadas a tomar cuidado para não pisar na grama e nem sujar a parede dos prédios de apartamentos. Esta arte dos privilégios, da cultura de rapina, da descaracterização e do esvaziamento das experiências de ruptura é a melhor expressão de uma sociedade cuja grande especialidade é a de diferenciar os homens naquilo que eles têm de mais igual, e desigualá-los naquilo em que mais são diferentes.

O talento não precisa desta ou daquela substância química para se manifestar, sem dúvida. Tampouco há drogas capazes de transformar o usuário num criador genial. Mas quando se configura o binômio droga-criação no interior de movimentos culturais de massa, tem-se aí um fenômeno que corrói gravemente os pilares morais da sociedade, gritando anarquicamente a necessidade da reviravolta. Esses movimentos culturais de massa que, sob formas diversas e graus diferenciados, repetem-se desde os anos 20, intensificaram brutalmente sua presença dos anos 60 para cá. Apontam a descoberta moderna da individualidade, indicam as brechas que o progresso material entreabre no tecido social e que convidam a juventude para o gozo e para o prazer, convite que é aceito ruidosamente. E mais por barulho do que por compromisso com a arte universal, que a juventude deixa pipocarem os objetos culturais. São coisas descartáveis, sem maior valor intrínseco. Valem mais pela quantidade.

O uso da droga, neste caso e só nele, demarca um terreno cultural de extrema importância. Delimita a disponibilidade para a desobediência civil como caminho mais curto para a felicidade — felicidade química, paraísos artificiais — que se complementa na incessante produção estética, sinal de um desgovernado desejo coletivo de negação e ruptura.

Seria atrasado, além de inútil, sair à procura de "mensagens ideológicas" dentro dessas explosões recentes. Igualmente equivocado seria adivinhar estruturas organizativas por trás de grupos cujo denominador comum está na ousadia e no repúdio à disciplina. Aparentemente "tribais", são grupos essencialmente fragmentários. Perseguem, em massa, aqueles gozos indivisíveis, o êxtase individual.

A juventude pressente, prenuncia e precipita o reino da liberdade. Ela concorre para a falência de papéis básicos do mercado de arte (autor/consumidor) e de outras convenções da sociedade de classes, de massas, de consumo. A individualidade que afirma não se confunde com o individualismo pequeno burguês e nem se contrapõe ao socialismo. Ao contrário, ganha viabilidade concreta a partir da supressão do capitalismo.

A rebeldia cultural antecipa, neste caso, a revolução política e, ao mesmo tempo, denuncia-lhe a precariedade. A primeira não tem objetivos como a segunda; é antes uma atitude, um gesto de ruptura que basta a si mesmo.

Levar essa ruptura até o fim, aproximá-la de sua potencial consequência política — eis a tarefa revolucionária.

Uma política cultural revolucionária pode dar cabo dessa tarefa. Nada de despertar consciências para a grande causa, ou de embutir ensinamentos proféticos em "obras de arte" de qualidade mais que suspeita. A política cultural não mais deve se confundir com a catequese dos silvícolas pagãos, até porque não é o caso de "trazer" toda alteridade para patamares mais "evoluídos" de civilização. O caso é o inverso; o que parece selvagem, hoje, detém um parte de segredo da porta do futuro. Finalmente, deve-se abandonar a pretensão didática e substituí-la pelo espírito de agitação, de promover curto-circuito nos midia: mais bocas, menos ouvidos; mais autores, menos consumidores. É hora de defender a individualidade e a diferença. O desajuste e a desagregação constituem, no domínio da cultura, o contrapeso indispensável à sólida unidade prática dos trabalhadores para a tomada do poder.

Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate.