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Armando Mazzo foi um operário padrão às avessas.

Armando Mazzo foi um operário padrão às avessas. Nunca tirou férias. Sempre foi despedido antes que pudesse usufruir dos seus direitos trabalhistas. Em 1947, tomava café de manhã com sua mãe, quando a rádio noticiou a relação de políticos cassados. Entre eles, o primeiro prefeito operário comunista do Brasil. Sua mãe perguntou o que estava acontecendo. "Fui cassado", informou Mazzo. A mãe conformada balançou a cabeça e exclamou: "Eu sabia que o Armando não ia parar nem nesse emprego". Hoje, com 75 anos, Mazzo mantém-se coerente e fiel à luta pelo socialismo. Não é petista mas acredita que o PT, com algumas alterações de ordem ideológica, poderá se transformar num partido revolucionário. Em Poá, Grande São Paulo, onde reside com sua esposa Aurora, sua casa está aberta para receber companheiros; para contar e ouvir histórias sobre a luta dos trabalhadores. Teoria e Debate publica alguns trechos de uma entrevista de três horas.

Correm muitas histórias a respeito do primeiro prefeito operário comunista do Brasil. Como foi o início disso tudo? Você começou realmente a trabalhar como marceneiro aos dez anos de idade?
Como marceneiro, aos onze anos. Mas meu primeiro trabalho remunerado foi aos nove. Após a morte de meu pai, que era chefe geral da Light, em São Paulo, minha família mudou-se para São Bernardo. Fomos para a casa de uma prima, cujo marido era fabricante de carroça, carretão e carro de boi. Eu puxava a forja para ativar o carvão que ia incandescer o ferro para fazer rodas. Era um trabalho simples, mas cansativo para minha idade. Essa fábrica se transformou em marcenaria e eu passei a ser aprendiz de marceneiro. Naquela época só havia duas opções: ser marceneiro ou tecelão.

E o seu contato com a política também vem dessa época?
Na fábrica não havia discussão política. Mas, quando passei para a fábrica de móveis do Narciso Pelozini, conheci um cidadão, que não me lembro o nome, que gostava de conversar com a meninada. Era um anarquista. Dava lição interessante. Vou dar um exemplo. Ele dizia pra nós: "Vocês, quando forem pra putaria, tomem cuidado, viu? Nós somos pobres e pobre não sabe que é perigoso pegar mulher que todo mundo pega. Se a gente pega uma doença, vai para o médico que pega um arame que ele deixa vermelho e depois enfia no seu coiso. Aí você perde tudo, fica desgraçado. Agora, com os ricos não acontece isso. Eles têm lá lugar para levar mulheres, e não têm doença. Sabe por quê? Porque a nossa luta tem de unir o pobre para acabar com o rico, para que o pobre tenha aquelas mulheres também". Era esse tipo de conversa. Foi aí que comecei a ter as primeiras lições sobre a diferença entre ricos e pobres.

Como você descobriu que ele era um anarquista?
Foi muito depois, quando comecei a pensar como o cara agia, como os anarquistas agiam.

Qual era a conjuntura daquela época? Quais as imagens mais fortes que você guardou?
Bom, em 1927, 1928, havia um certo ascenso da economia, quando começaram a aparecer as primeiras nuvens da desgraça. Na fábrica, os estoques estavam crescendo. Em 1929, como você sabe, estourou a grande crise do sistema capitalista, cujo carro-chefe são os EUA. Era falência de bancos, desemprego, era uma coisa horrorosa. A gente ia trabalhar e encontrava um envelope azul, com um bilhetinho para comparecer ao escritório. Pra você ter idéia da quantidade de demissões, uma vez, no Bom Retiro, abriram duas vagas numa oficina da Ford. Saímos à meia-noite de São Bernardo num grupo de 12, para disputar aquelas vagas. Chegamos às 7 horas da manhã, mas não conseguimos nos aproximar da rua da Ford por causa de tanto desempregado que estava na rua, atrás de duas vagas.

Como vocês enfrentaram aquele período?
Influenciados por alguns comunistas e socialistas, começamos a nos reunir pra discutir o que fazer e como nos organizar. A gente se reunia no meio do mato, jogando baralho pra disfarçar. A polícia nunca nos incomodou nessa época. Acho que não havia dedo-duro entre nós.

Havia algum risco, algum perigo, que exigisse esses cuidados?
Se não era perigoso, pelo menos nós tínhamos medo. Era o fim do governo de Bernardes que tratava os anarquistas com patas de cavalo. A gente tinha medo mesmo.

E depois do golpe do Getúlio, com a Aliança Liberal?
Aí, meu velho, a gente não fez autocrítica porque não sabia. Quando o Getúlio derrubou Washington Luís, foi aquela euforia. Houve ilusão principalmente quando ele começou a derramar leis trabalhistas baseadas na Carta del Lavoro.

Vocês já tinham algum conhecimento sindical?
Não. Nós queríamos formar qualquer coisa. Eu acho que foi aí que os comunistas começaram a ocupar o lugar dos anarquistas.

Por quê?
Os anarquistas tinham um discurso extraordinário, inflamado, incendiário, mas que terminava sempre afirmando que era preciso enforcar todos os capitalistas. Os comunistas, ao contrário, preocupavam-se em ensinar a gente a fazer desde ata de reunião, passando pela confecção de carteirinha de associados, até a feitura de balanços. Tinham muita paciência conosco.

Pelas minhas anotações, em 1932 você foi preso pela primeira vez. Como foi e por quê?
Na fábrica do José Pelozini, nós tínhamos um líder que se chamava Ettore Cataluce. Um dia, durante a revolução, o próprio dono da fábrica convocou todos os seus empregados e propôs pagar 12 mil réis à família de quem se dispusesse a ir para o front de luta. O Ettore interveio dizendo que todos estavam de acordo, desde que o Aldo Pelozini, filho do patrão, fosse junto. O assunto foi desconversado e o Ettore foi despedido. Tentei mobilizar uma greve de solidariedade mas fui desaconselhado pelo próprio Ettore. Quatro dias depois fui despedido também. Nessa noite, havia um comício no Largo da Matriz de São Bernardo, onde o advogado Marrey Júnior fez um discurso conclamando os jovens a lutar por São Paulo.

Pedi um aparte e perguntei se ele iria conosco para o front. Respondeu: "Este jovem aqui falou bem. Ele vai para o front e nós, velhos e jovens, vamos com ele. Depois do comício vamos nos alistar". Ele era sabido e me engarrafou. Depois, foi a vez do bispo pedir aos pais que mandassem os seus filhos à luta. Pedi um aparte e perguntei se o bispo mandaria os filhos dele. Foi um silêncio só. Era muito forte a tradição católica daquela região. Acabei sendo carregado até a Delegacia, preso.

E o sindicato?
Bom, em 32, terminada a revolução, continuamos a nos reunir pensando em fundar uma associação, o que acabou sendo feito. No dia 17 de janeiro de 1933 transformamos a associação em sindicato, que se chamou Sindicato dos Marceneiros, Carpinteiros e Classes Anexas.

O sindicato era livre?
Ainda não tinha a lei do enquadramento sindical que veio depois, mas já obedecia a algumas regras que o atrelavam ao Ministério do Trabalho.

Qual era a fonte de recursos do sindicato na época?
Era mensalidade e piquenique. Nós dávamos bolo, vinho, comida, fazíamos um leilão durante o piquenique e nós mesmos arrematávamos tudo. Seria mais fácil dar o dinheiro. Mas o que interessava era a confraternização. Quem vive os dias de hoje não pode fazer idéia da falta de recursos. O diretor do sindicato era como um franciscano, que faz voto de pobreza.

E como você se sente hoje, diante dos recursos de que os sindicatos dispõem?
Vou contar dois episódios que ilustram a minha opinião. Naquela época, quando o sindicato era na Rua Marechal Deodoro, o senhorio alugava a parte da frente da casa para nós e morava nos fundos. Um dia, um dos diretores do sindicato viu a mulher do senhorio varrendo sua casa com a nossa vassoura. Fizemos uma reunião e decidimos que o senhorio teria de comprar uma vassoura nova para o sindicato.

E ele comprou?
E que remédio? A gente descontava no aluguel.

E o outro exemplo?
Tem um sindicato aqui na região, que eu ajudei a eleger a diretoria, fazendo palestras para a chapa vencedora. Na primeira reunião em que fui, era para escolher a executiva. Para surpresa minha, na hora do salário, o tesoureiro não aceitou a proposta de receber o que ele recebia na fábrica. No final acabou recebendo bem mais. Você vê então a diferença. Hoje um diretor sindical estipula o próprio salário. A gente se sente no meio de marajás.

Mas você não acha que houve um avanço? Uma conquista para os trabalhadores?
Eu não concordo. Mas há exceções. O imposto sindical corrompeu a maioria de diretores sindicais. Mas, o imposto sindical não é um mal em si mesmo. Veja, por exemplo, o caso do Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André, que inaugurou há pouco tempo uma escola de capacitação operária chamada Constantin Castelani. É uma maravilha. O sindicato de lá é dirigido pela CUT. É um avanço muito grande. É um bom emprego de capital, ao contrário desses elementos que, quando querem, pegam um avião e vão para a França e não sei mais aonde. Um Medeiros, um Magri, quanto devem estar ganhando?

Voltando ao Sindicato dos Marceneiros, vocês deflagraram a primeira greve em 1934. Qual a sua importância e o que motivou essa greve?
A greve durou 43 dias e começou em setembro de 1934. Ela foi deflagrada em cima de uma tabela de aumento de salários e para protestar contra o espancamento de menores dentro da fábrica.

Espancamento?
Era muito comum um garoto apanhar do mestre na fábrica. Levavam uns tabefes, puxão de cabelo, pontapé na bunda. Tudo em horário de trabalho.

E a greve?
A gente reivindicava também jornada de trabalho de 8 horas porque se trabalhava 9, 10 horas por dia. O reconhecimento do sindicato constava da pauta, mas era uma questão secundária. Desencadeada a greve, os patrões não queriam conversa. A situação foi se arrastando e parecia que não havia saída. Um diretor propôs que se mudasse de tática e que se procurasse concentrar em firmas pequenas, com 50, 60 operários, onde seria mais fácil negociar com os patrões. E deu certo. Fomos conseguindo os primeiros acordos. Os operários voltavam a trabalhar e a fábrica a produzir. As grandes fábricas se sentiram abaladas vendo as pequenas produzindo e vendendo. Três dessas grandes fábricas, a São Bernardo, a São Luís e a Santa Terezinha, recusaram qualquer acordo até o fim.

Lá pelas tantas, o Ítalo Setti, dono da São Bernardo, mandou nos chamar. Henrique Sabatini, o Artur Corradi, o Manuel Marques Júnior e eu fomos os indicados. Recebemos uma proposta inusitada, ou a gente compraria as três fábricas ou eles as fechariam porque não precisavam delas para viver. O preço seria acertado depois que fosse dada a resposta. Pensamos que fosse um blefe, mas levamos a proposta à assembléia. Um companheiro propôs que oferecêssemos uma quantia cujo valor seria convertido em ações que seriam compradas por nós, de acordo com as possibilidades de cada um. E a proposta não era blefe. Os trabalhadores acabaram comprando as três fábricas.

Foi um pequeno grupo que acabou comprando?
Não. Todos os operários que trabalhavam nas fábricas, com algumas exceções. Só uns cinco ou seis não compraram porque não tinham dinheiro.

E o que foi feito com essas fábricas?
Elegeram uma diretoria e passaram a produzir como nunca antes haviam produzido. Pagaram tudo. Sobrou dinheiro e começaram a ficar ricos. Houve muita discussão nessa época, inclusive na capital. Havia os que advogavam que aquela era a perspectiva para se acabar com o capitalismo. Os comunistas diziam o contrário: aquilo não passava de uma ilha socialista num mar capitalista, que seria tragada pelo tempo. Os comunistas acabaram tendo razão. O pessoal começou a enriquecer. Alguns venderam suas ações por preços bem mais altos e montaram açougues, quitandas etc. Outros punham empregados no lugar deles. Passaram de explorados a exploradores. Hoje não sei como estão essas fábricas. Acho que valeria a pena pesquisar.

Você já tinha contato com os comunistas nessa época?
Tinha contato, mas não era militante.

E como foi o seu recrutamento?
Após a greve de 43 dias, tinha um companheiro que freqüentava o sindicato, se não me engano era o José Anália Júnior. Um dia ele me convidou para dar uma volta. Andamos muito tempo em silêncio. Sempre que eu me manifestava, ele pedia silêncio. Eu cheguei a pensar que ele era louco. Passados alguns dias, em dezembro de 34, o Manuel Marques me convidou para uma reunião. Primeiro ponto de pauta: discussão sobre a conjuntura internacional, onde a Alemanha se armava e se preparava para a guerra; esse foi o centro da conversa. Segundo ponto de pauta: recrutamento. Além de mim, havia outros novatos. Perguntaram se queríamos entrar para o Partido Comunista. Eu estava todo entusiasmado diante da palestra que acabara de ouvir. Os outros novatos pediram tempo para pensar. Eu topei. Aí o José Anália disse que podiam me recrutar porque eu tinha paciência revolucionária, e contou o episódio em que caminhamos mais de 5 km sem falar nada e que, quando nos despedimos, eu não cobrara nada.

Já ouvi muita história sobre métodos de recrutamento, mas sinceramente, o seu foi muito original.
Foi muito engraçado.

Se você foi recrutado em 34, qual foi sua participação na insurreição de 1935? Como repercutiu junto ao meio operário?
Você disse insurreição?

Sim, insurreição de 1935.
Eu vou discordar um pouco de você. Aquilo foi pura quartelada. Um dia, meu irmão que nunca quis saber de nada com sindicato apareceu e me perguntou o que havia acontecido no Norte (ele nem falou em Nordeste) e no Rio de Janeiro. Me deu um recorte de jornal que não sei onde ele havia arranjado. E o jornal falava do Cordeiro, do Ajildo Barata, do João Ribeiro. Eu fiquei estarrecido.

Você não sabia de nada, nada?
Não dá para entender. Oito ou dez dias antes, nós tínhamos nos reunido com o assistente e ele não havia dito nada. Só distribuído rifa pra gente vender. Então peguei o recorte e corri para a casa do Prajadas.

Um parêntese: não havia a Aliança Nacional Libertadora em São Bernardo?
Não existia.

Você correu para a casa do Prajadas e...
Aí, quando mostrei-lhe o recorte do jornal, ele falou que aquilo era mentira do jornal, era invenção da imprensa burguesa reacionária. O Coradi foi quem nos aconselhou a esperar por notícias confiáveis. Uma semana depois o mesmo assistente que não sabia de nada, na reunião, começou com o mesmo papo sobre a conjuntura internacional. Eu o interrompi e, com o recorte na mão, perguntei-lhe que negócio era aquele. Ele simplesmente respondeu que aquilo era coisa de militares e que os operários não tinham nada a ver com isso.

Como se chamava esse assistente?
Afonso Marma, que morreu há pouco tempo em Tupã. Aquilo não passou de uma quartelada de Ajildo Barata, do Bezerra...

Do Apolônio?
Do Apolônio não sei. Não sei se ele estava metido nisso.

Passados todos esses anos, você teria algum detalhe que gostaria de esclarecer?
O partido era muito fraco nas fábricas. O próprio Prestes chegou a reconhecer que era mais fácil organizar os militares do que os operários. Eu não concordo muito com isso. Eu acho que nunca se tentou organizar os operários em uma escala maior naquele tempo. Só mais tarde é que foram organizadas as células. Até a quartelada não havia organização de células.

Qual foi a repercussão desse fato sobre o trabalho de vocês? Houve repressão?
Se a gente quiser fazer autocrítica honesta, a gente vai ver que a nossa ideologia ainda não era muito assentada. Nós cometemos um erro grave: abandonamos o sindicato e ficamos muitos dias sem aparecer. Tínhamos receio de que descobrissem que a gente era comunista. Tem um ditado que diz que o gato escondido fica com o rabo de fora. Foi o que aconteceu. O que poderiam pensar diante do nosso desaparecimento? Não sei quem nos alertou e aí voltamos para o sindicato. O Fortunato Cordeiro, português, foi o único que se negou a sair de lá.

E como foi que repercutiu entre vocês a deflagração da 2ª Guerra Mundial?
A repercussão foi muito grande. Fizemos campanha da sucata recolhendo panelas velhas de alumínio, pneumáticos... Era uma campanha contra o fascismo. Vinham os caminhões do exército e recolhiam tudo. Não sei onde foi parar tanta coisa.

E os fascistas brasileiros?
Esses sacanas fizeram a gente suspender copo e dar vivas ao Hitler.

Não acredito!
Foi em frente ao sindicato, no bar do Ginense, um cara de origem italiana. Ali se reuniam alemães e italianos. Um dia as rádios anunciaram a entrada do Rommel pela África adentro. Nesse dia eu, o Itajiba de Almeida e o Fortunato por acaso passamos em frente ao Ginense. Os fascistas estavam eufóricos, dando vivas ao Mussolini, ao Hitler, ao fascio e por aí afora. Então, eles nos cercaram e colocaram um copo cheio de vinho na mão de cada um de nós e nos obrigaram a dar vivas ao Hitler. O Paulo Alemão me apertou tanto o braço que fiquei com ele machucado por mais de uma semana. Depois dos vivas eles nos puseram para fora com um pontapé na bunda. Foi um momento difícil.

Eles sabiam que vocês eram comunistas e sindicalistas?
Só sindicalistas. Nossa militância política era clandestina. E a gente vivia no sindicato que era em frente ao bar. Mas eles tinham verdadeiro horror aos sindicalistas. É um problema de classe. Eles eram todos comerciantes, sitiantes, bem de vida.

Houve algum troco quando a situação se inverteu?
Claro. No dia em que a União Soviética arrancou aquela águia lá de cima daquele prédio alemão, nós arranjamos uns quinze e fomos até o Ginense. Eles choraram. O Itajiba ameaçava matá-los. Eles se ajoelharam, pediram perdão. Principalmente o Paulo Alemão.

Mas como foi sua atuação como sindicalista durante a Guerra?
Tem muita história. Em 42, por exemplo, eu trabalhava na Laminação Nacional de Metais, do Pignatari. Então eu me filiei ao Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André. Aí eu encontrei o Vitor Savieto que estava organizando as células do PC dentro da fábrica e começamos a nos reunir. Quando chegou a data de inscrição de chapas para concorrer às eleições sindicais, eu e mais um grupo fomos à sede para apresentar uma chapa de oposição. Fomos barrados na porta, sob a alegação de que não éramos sócios, mesmo diante dos recibos que estavam em nossas mãos. Aí foi um aranzel. O Elias não se segurou e partiu para cima dos caras. Apareceu a polícia, não sei como. Fui agarrado pela gola. Mesmo assim pude argumentar e mostrar os recibos e falar que a CLT nos dava garantia. O tira bambeou e mandou chamar o delegado. Registramos a chapa sob a garantia do delegado. O meu nome foi excluído porque eu não tinha tempo suficiente de base territorial. Eles estavam certos. Ganhamos as eleições e um sindicato com 260 associados.

Você ficou muito tempo na Laminação?
Que nada. Nessa época, eu trabalhava na CAP (Companhia Aeronáutica Paulista), subsidiária da Laminação. Havia uma tabuleta com o nome do gerente-geral, que era um italiano. Alguém escreveu 5ª Coluna embaixo do nome. Eu peguei a tabuleta e completei com uma frase que dizia: "apesar dos fascistas e dos puxa-sacos, nossos pracinhas conquistaram Monte Castelo". Deu o maior rebuliço. Fui chamado pela gerência e assumi tudo o que havia escrito. Não tinham como me punir, mas me promoveram e me transferiram para o Campo de Marte, onde não havia nem gente e nem trabalho. Além disso, eu era obrigado a tomar três conduções, acordar às 4h30 da manhã e levar marmita. Não dava.

Foi mandado embora?
Fui, mas me indenizaram. Então fui trabalhar em Santos, como marceneiro. Estava ganhando dinheiro, vivendo a maior mordomia até que um dia apareceram o Rolando Fratti, o Guido Poianas e o Graciano Fernandes e me convocaram para uma reunião em Santo André. Era para assumir novas tarefas, sem discutir.

Sem discussão?
Sim. Na época era assim que se pensava: comunista não discute tarefa.

E que tarefa era essa?
Fui nomeado procurador do Sindicato dos Metalúrgicos junto ao Ministério do Trabalho e à Justiça do Trabalho, para que o presidente do sindicato pudesse continuar trabalhando na fábrica. O partido me tirou o couro nessa época. Tirou mesmo. Pegamos o sindicato com 260 sócios e quando saímos tinha mais de cinco mil filiados. Ir nas portas das fábricas, na Justiça, mandar doente pra Santa Casa... Deu tão certo que os sindicatos dos químicos e da construção civil e uma outra associação também me deram procuração.

Fale um pouco mais da atividade sindical.
Vou contar mais um detalhe. Você sabe que esse negócio de corrupção não é de hoje. A gente estava tentando conseguir carteiras profissionais por todos os meios e não conseguia. Nessas idas e vindas, fui encontrar um cara que, se não me engano, chamava-se Amato do Vale. Quando terminei de explicar o que eu queria, ele me disse que era muito difícil, mas que ele gostava de queijo provolone e vinho Gatão, que era o melhor que existia.

Vinho português?
Sim. Saí e fui comprar vinho Gatão e muito queijo provolone. E o Amato acabou me arranjando carteiras, planilhas e até um carimbo da Delegacia do Trabalho para eu mandar fazer um igualzinho. Então, todo sábado, das quatro da tarde às oito da noite eu ia de porta em porta em São Caetano, Santo André, onde tomava um cafezinho, uma cachaça, um conhaque e ia fazendo sindicalização.

Qual era o problema com a carteira profissional?
Evitava perder tempo, enfrentar filas, não dispor de todos os documentos etc. Essas carteiras serviram também para legalizar muitos refugiados da Espanha. Hoje acho que já posso falar, não?

Claro.
Fizemos carteira para o Crispim, o Ajildo Barata, Marighella. Imagine o Marighella com carteira da Laminação de Metais! Acho que nenhum deles sabia aonde ficava.

Foi esse trabalho que criou condições para que você fosse candidato?
Não, não. Eu acho que foram as prisões nas portas de fábricas. Uma atrás da outra. Na Pirelli, na Isan, na Havaiana... Ficava três, quatro dias e depois me soltavam. Isso acontecia comigo, com o Miguel Andreotti, o Miguel Emílio, o Pinho e outros.

Chegou a contar quantas vezes?
Só nesse período, eu calculo umas 18 cadeias.

E a relação com o Getúlio?
Vou contar um caso para ilustrar. O partido me deu uma tarefa, certa ocasião, que eu reputo audaciosa, para não dizer melindrosa. O Getúlio recebeu uma delegação de dirigentes sindicais, no Palácio do Catete. Foi a maior demonstração de puxa-saquismo que já vi. O Abílio da Rocha, do sindicato dos ceramistas, por exemplo, dizia que os representantes dos operários estavam ali para beijar os pés do presidente, porque nunca os operários viveram tão satisfeitos. E assim foi. Quando chegou a minha vez, eu exibi uma sacola com cadernetas de venda e uma sacola com envelopes de pagamento e, com todo respeito, disse que não era possível viver com aquele salário mínimo. Ele mandou todos saírem, menos eu. Chamou o Marcondes Filho, que era ministro do Trabalho e vivia bêbado, para tomar conhecimento do que eu estava falando. O ministro pegou uma caderneta e um envelope qualquer, deu uma olhada e disse que eu estava com a razão e que estava tudo errado. O Getúlio balançou a cabeça, desanimado. Porra, quem é que não vê que ele havia pegado uma caderneta que não tinha nada a ver com o envelope de pagamento e, portanto, não podiam ser comparados. O Marcondes saiu e o presidente perguntou se eu era comunista. Eu respondi que era getulista e ser getulista era informar a verdade. Enfim, falei um monte de baboseiras. O Getúlio não acreditou muito porque disse que poderia mandar me matar. Então, eu pedi que ele aumentasse a cota de jornais do Estado Novo para a gente distribuir lá em Santo André. Passados alguns dias, recebemos mais de 5 mil exemplares. Deu o maior trabalho queimar aquela papelada toda sem chamar a atenção. Passamos noites e noites fazendo isso.

Vamos para as eleições e o seu sucesso eleitoral. Como foi?
Não era agradável ser candidato como tarefa partidária. Eu fui indicado em uma reunião do PC em Santo André, com a presença do Grabois entre outros. Mas alguns fatos contribuíram para que fossem eleitos 11 deputados comunistas: primeiro, a vitória da União Soviética na Guerra; segundo, a participação do PC na defesa da legalidade; terceiro, o trabalho que a gente vinha desenvolvendo.

Você foi eleito deputado estadual e logo em seguida prefeito de Santo André. Que tipo de problema marcou sua curta de participação?
Um detalhe: fui deputado estadual constituinte, junto com Ulysses Guimarães, Salomão Jorge, Conceição da Costa Neves e outros. Mas a bancada comunista estava condenada a ser expulsa. A corrupção não é de hoje. Um dia, um grupo de deputados de vários partidos foi convidado para ir a um sítio do tio do Moura Andrade, em Arujá. Havia umas mulheres só de calcinha e sutiã que se aproximaram da gente tentando nos acariciar, nos convidando para ir pro meio do mato. No grupo de deputados estavam Nico Feliciano, Edmundo Falconi, Arnaldo Borghi, Emir Farah, Gabriel Migliori...

E você.
Eu também. Eu me recusei a ir pro mato com as moças por duas razões: medo de ser fotografado e ser exposto a um escândalo público (uma questão de vigilância) e por medo de pegar gonorréia, sendo um homem casado. Depois de muito uísque e churrasquinho, o tio do Moura Andrade nos reuniu e disse que tinha um projeto que envolvia 20 milhões de cruzeiros e que, se nós aprovássemos um projeto com o valor de 50 milhões, ele repassaria 30 para ser dividido entre nós. O Feliciano só faltou beijar o homem. Começaram a discutir a forma de receber a grana, se em dinheiro ou em cheque pré-datado.

Alguém mais do PC?
Só eu pela bancada comunista. Mas, voltando ao assunto, eu pedi a palavra e disse que a nossa bancada não seria corrompida de jeito algum, porque aquela proposta era uma imoralidade. Nos dias seguintes, o Nico Feliciano correu para defender o projeto. Pedi um aparte e ele não deu. Eu me inscrevi e contei toda a história, lá da tribuna. Por isso eu digo que eles só podiam nos expulsar, mais dia menos dia. Eu estou contando esse fato para mostrar que tudo isso contribuiu para a minha eleição a prefeito; além de episódios como esse, eu vivia nas portas das fábricas onde fui até surrado pela polícia.

Por quê?
Eu estava defendendo os direitos dos operários, como deputado. Chegou a polícia e me mandou calar a boca. Eu mandei que eles calassem a boca. Dei voz de prisão aos policiais, mas eles acabaram me prendendo. E me deram muita porrada.

Tudo isso contribuiu para sua campanha a prefeito. E o partido, o que achava disso tudo?
Tem uns fatos que homens como o Diógenes de Arruda Câmara tinham que fazer autocrítica até no túmulo. Num comício muito concorrido, falou o Arruda, como elemento antifascista, a Carmem Saviani, pelas mulheres, e assim por diante. Quando eu falei, fui o mais aplaudido porque eu dominava os problemas das fábricas, caso por caso; e terminei falando que a gente precisava acabar com tudo que era patrão e ficar só os operários como donos do poder. Foi uma ovação que durou mais de cinco minutos. Foi uma loucura. Em seguida falou o Prestes, um discurso muito bem concatenado. No final, eu e o Rolando Fratti puxamos uma passeata, que terminou com 21 tiros de dinamite. Terminado o comício fomos para São Paulo e nos reunimos: Arruda, Neivas Lutero, João Amazonas, Grabois e outros, para fazer um balanço. Na primeira rodada, quase todos elogiaram o sucesso alcançado. Quando chegou a vez do Arruda Câmara, ele disse que precisava colocar as coisas no lugar, porque o camarada Armando havia exorbitado, tentando ofuscar o camarada Prestes e que, além disso, em vez de comandar as massas, tinha sido comandado por ela. Todos os que tinham falado muito bem do comício, poucos minutos antes, começaram a meter o pau em mim, que tinha feito um puta sucesso. Eu respondi que eles não conheciam as fábricas como eu e que o partido tinha sido o grande ganhador nessa história. Quase me expulsaram. O seu Arruda Câmara não admitia nenhum tipo de sombra.

Mas e a campanha para prefeito?
Foi fácil ganhar as eleições. Elegemos 13 vereadores militantes do partido e dois simpatizantes, em uma Câmara composta por 31 vereadores.

Vocês chegaram a tomar posse?
Nós tínhamos sido eleitos pelo Partido Social Trabalhista, porque o PC já estava cassado em âmbito nacional. Todos os deputados e senadores estavam cassados e muitos tinham sido presos, como o Caio Prado, o Roque Trevisan, o Grabois, até o Mário Schemberg, que era meu suplente. Imagine só, uma cabeça como o Schemberg suplente de um operário. Só no Partido Comunista. Então, no dia da nossa posse, com a presença de umas 3 mil pessoas, fomos impedidos de entrar. Não havia nem suplentes suficientes para nos substituir. Subi em cima de uma mesa para fazer um discurso e me deram voz de prisão. Um soldado chamado Manoel Messias, a quem eu ajudara a salvar a perna que ia ser amputada, engatilhou sua metralhadora e disse que atiraria em quem pusesse as mãos em mim. Terminei o discurso mas nunca mais vi o soldado, não sei se o mataram... Santo André foi transformada em uma praça de guerra com muita gente ferida. Fui preso durante uns oito ou dez dias e levei muita pancada...

Qual o motivo para promover a cassação?
O de sempre. Os comunistas punham a pátria em perigo porque estavam a serviço de Moscou. Mas a realidade é que eles não podiam tolerar o Partido Comunista com o Prestes senador, 12 deputados federais, 11 deputados estaduais e vereadores em muitas cidades deste Brasil.

Você acha que existe algum paralelo entre a Constituição de 46 e a que está sendo escrita hoje?
As duas foram feitas pela classe dominante. Se houve algum avanço eu não sei. O Lula fala que houve pequenas vitórias mas o que eu acho é que tudo não passou do que já se havia conseguido em muitas fábricas, principalmente no ABC, como é o caso das 44 horas semanais. A Constituição poderá ter alguns respingos de benefício social, mas no essencial não vai mudar nada.

E o PT?
É um partido que se situa entre os partidos de esquerda, junto com o PCB e o PC do B. O primeiro tem uma linha política nacional que deixa muito a desejar, mas uma linha internacional muito boa, que se alinha com o bloco socialista. O segundo tem um alinha nacional muito boa, mas sua política internacional é muito ruim. Eles atacam o bloco socialista mais do que o capitalista americano. veja a Tribuna Operária, dá até vergonha. O PT tem excelentes quadros: Lula, Olívio Dutra, Jacó Bittar, Jair Meneguelli. Mas, ainda não conseguiu se livrar da sua origem social-democrata. Eu acredito que, se o PT avançar ideologicamente, tem tudo para transformar em um partido revolucionário.

Paulo de Tarso Venceslau é jornalista, economista, trabalho no Departamento de Estudos Sócio-Econômicos e Políticos (DESEP) da CUT e é membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.