Nacional

Para Hélio, "liberdade é ação, é coisa encarnada, inserida no real com objetivo de transformá-lo, modelando-o (...)

Uma semana antes de sua morte (causada pelo terceiro infarto, em março passado), Hélio Pellegrino escrevia mais um artigo para o Jornal do Brasil (16/3/88) narrando o tortuoso episódio que culminou com a cassação do registro do Dr. Amílcar Lobo pelo CRM (Conselho Regional de Medicina) devido à sua participação e conivência, como médico militar, na tortura política dos anos 70 — inclusive no episódio da morte do ex-deputado Rubens Paiva. O envolvimento político do psicanalista Hélio Pellegrino no processo de denúncia e esclarecimento da participação de Lobo na tortura (com a cumplicidade do analista-didata deste, Dr. Leão Cabernite) valeu-lhe a expulsão da SPRJ (Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro), em 1980, junto com seu colega Eduardo Mascarenhas.

Pudera. Escrevendo, discutindo e analisando a relação entre a instituição psicanalítica, o poder, a tortura e os direitos humanos; diferenciando com clareza os pudores corporativistas que protegem as castas médicas dos verdadeiros e rigorosos princípios éticos que fundam e legitimam a prática da psicanálise, Hélio Pellegrino corajosamente arrancou o véu de formalidade e silêncio que protegia e poupava os membros das sociedades psicanalíticas de se defrontarem, como seres humanos e políticos, com os acontecimentos de seu tempo. A atuação de Hélio, seus artigos e reflexões sobre a verdadeira ética da psicanálise sacudiram a poeira de todos os consultórios brasileiros, tiraram os divãs de um limbo atemporal em que se tratava o inconsciente como pura idéia imaterial e desvinculada da história, para nos situar (como quis Freud, há cem anos) num lugar absolutamente humano, envolvido com matéria carnal e social, tendo o amor como maior recurso e a liberdade como objetivo. Para Hélio, "liberdade é ação, é coisa encarnada, inserida no real com objetivo de transformá-lo, modelando-o (...) Não há liberdade abstrata, nobre princípio apenas retórico, a ser festejado e exaltado em cerimônias patrióticas. A liberdade é centro da condição humana"1. Não se concebe analista como o Dr. Cabernite, que, em nome de uma pretensa neutralidade, não se empenhe de corpo e alma em analisar e curar seu cliente da psicopatologia que fez dele um homem envolvido na tortura de outros homens; assim como não se concebe médico como o Dr. Lobo, que assistia cidadãos torturados, alguns até a morte, sem denunciar o sadismo institucionalizado que os estava vitimando. Se os Dr. Lobo e Cabernite correriam riscos? São riscos da profissão, de quem se envolve com matéria humana, emocional, obscura às vezes, perigosa sempre. Se não queriam riscos, deveriam ter ficado na botânica, na veterinária ... "O psicanalista é o contrário do burocrata ou do especialista. Ele escuta o desejo, debruçado sobre o coração selvagem da vida e, a partir desse pólo, se esgalha, ampliadamente, em todas as direções (...) Você é um centro pessoal de transformação do mundo. Só sua prática nesse sentido é que dirá a você o que fazer e o que mudar, inclusive na sua vida e na própria profissão"2.

Assim viveu Hélio Pellegrino: esgalhando-se, ampliadamente, em todas as direções, acertando e errando, pagando alto preço de sua ousadia em fazer da própria vida um exercício de liberdade. Embora não compartilhe de sua fé religiosa, reconheço na atuação analítica, política e também poética de Hélio Pellegrino uma espécie de vínculo permanente com o aspecto sagrado da vida, esta única chance que nos é dada de participar da comunidade humana e do cosmo, e com a qual temos um único compromisso: o de não fazê-la pequena, mesquinha, covarde. Não desperdiçar a vida, não desperdiçar o manancial de amor que existe em cada um de nós.

Hélio Pellegrino morreu do coração no dia em que o governo Sarney derrotava por meio de uma Constituinte majoritariamente corrompida, mais uma esperança de eleições diretas, agora em 1988. Depois do duro impacto que foi a notícia de sua morte repentina, depois de algumas horas parada diante do vazio que sempre nos deixa o desaparecimento de uma pessoa querida e admirada, compreendi que só morre do coração quem tem coração. A coletânea que se segue, de trechos de seu pensamento sobre vários assuntos, não pretende dar conta da complexidade e da amplitude do personagem Hélio — ela é só uma pequena amostra dos caminhos que ele percorreu e desbravou com lucidez e coragem; com a inteligência e o coração.

Maria Rita Kehl é psicanalista e escritora.


A 23 de março passado, quando um infarto matou Hélio Pellegrino, no Rio de Janeiro, não foram poucas as tentativas de capturar com palavras a sua figura múltipla. "Ele foi o poeta da psicanálise", escreveu o repórter José Castello, no Jornal do Brasil. "Um inacreditável homem-e-meio", disse o advogado e professor de direito Nilo Batista. "O melhor exemplo do homem sem medo", observou o jornalista e escritor Cícero Sandroni. "Ninguém como ele sabia falar e escrever a palavra mais certa para abalar a iniqüidade e despertar o sentimento fraterno", declarou o ensaísta e professor Antonio Candido, que concluiu: "Foi luminoso e é insubstituível". A definição mais exata de Hélio Pellegrino, no entanto, talvez tenha sido dada por ele próprio, num artigo que dedicou à memória do indigenista Noel Nutels, quando de sua morte, em 1973. Era um homem desatado, verdadeiro, caloroso", anotou Hélio, como se falasse de si mesmo. "Sua capacidade de aceitar o Outro fazia com que este se sentisse, irresistivelmente, convidado para a festa do diálogo, da amizade, da comunicação."

Festa que este poeta, psicanalista, escritor e ativista político, mineiro de Belo Horizonte, animou como ninguém em seus 64 anos de vida. Raras pessoas terão sabido, como ele, combinar ação e pensamento. Dono de uma capacidade verbal assombrosa, batalhou por meio de ensaios, palestras, debates, conferências e artigos na imprensa. Mas não ficou sendo um intelectual de gabinete: levou seu verbo também para as praças, ruas, palestras, e por causa dele amargou três meses de prisão sob o AI-5, em 1969. Psiquiatra e, mais tarde, psicanalista, concebia seu ofício como um instrumento de libertação — mas não se limitou a exorcizar os fantasmas que rondam os divãs: combateu igualmente os vícios e monstruosidades que, aos poucos, se vão grudando no casco da instituição psicanalítica.

No caso da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), de que foi membro, Hélio Pellegrino denunciou não apenas o poder imperial dos burocratas que a comandavam como também o acobertamento, por esses dirigentes, de um associado, Amílcar Lobo, que colaborara com a tortura a prisioneiros políticos no início dos anos 70. A denúncia lhe custou a expulsão da SPRJ, à qual só conseguiu retornar pela via judicial. Pouco antes de morrer, colheu um vitória quando o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro cassou o registro de Amílcar Lobo, impedindo-o de exercer a profissão. "Pela primeira vez desde 1964", observou Hélio num artigo; "alguém é punido por ter-se envolvido, na condição de militar, com a tortura política".

Apaixonado pela justiça, ele carregava em seu final de vida um sonho obsessivo: ver reaberto o caso Riocentro. Uma semana antes de sua morte, o Superior Tribunal Militar decidiu pelo arquivamento do inquérito aberto para apurar esse atentado terrorista com que a extrema-direita, no dia 30 de abril de 1981, pretendeu semear o pânico e a morte entre as 30 mil pessoas que assistiam a um show de música promovido por organizações democráticas. O inquérito policial-militar, como se previa, não avançou um milímetro na direção da verdade.

Hélio Pellegrino nunca se conformou com isso. No último parágrafo de seu último artigo, publicado postumamente, citava o ministro do Exército, general Leônidas Gonçalves, que a propósito de outro episódio falara em "honra militar". "Em nome dela é que o IPM do Riocentro deveria ter sido reaberto", argumentou Hélio. O escritor Otto Lara Resende, seu amigo, conta que ele andava siderado pelo conceito de honra e lia muito sobre o tema — mergulhara, com especial interesse, nos textos do escritor católico francês Georges Bernanos. "Estava se preparando para escrever um longo artigo sobre o Riocentro", revela Otto Lara Resende, lembrando que Hélio morreu com outra frustração: horas antes do infarto fatal, já hospitalizado, viu a Constituinte aprovar a emenda que praticamente liquidou a esperança de eleições diretas para presidente este ano.

A morte poupou-o de mais um pesado golpe: internado no Instituto Brasileiro de Cardiologia, em Ipanema, não chegou a saber do melancólico fechamento da Clínica Social de Psicanálise, decidida em assembléia da entidade na noite de 22 de março. "A clínica morreu com ele", diz com amargura o psicanalista carioca João Batista Ferreira, que ajudou a pôr de pé essa utopia sonhada por Hélio Pellegrino. A idéia era colocar a psicanálise ao alcance das camadas mais pobres da população. "O operário só entra no meu consultório como bombeiro ou pintor de paredes, jamais como cliente", disse ele certa vez. "Só entra quem paga meu preço, e o preço é a nossa linha de partilha severa, o leão-de-chácara na porta do consultório, que tem a arrogância de barrar a imensa maioria do povo brasileiro. O preço é uma determinação do mercado, o ponto em que a psicanálise se articula com a política".

Como driblar esse nada manso leão-de-chácara? Hélio imaginou um banco de horas em que cada profissional ligado ao projeto depositaria duas horas de atendimento gratuito por semana. Os clientes pagariam quantias simbólicas pelos serviços, que consistiriam em terapia de grupo para adultos e adolescentes e ludo-terapia para crianças, além de orientação para os pais. Implantada em 1973, a Clínica Social de Psicanálise foi sendo lentamente sufocada por problemas financeiros, como a alta perpétua dos aluguéis. Resta o consolo de saber que não desapareceu sem deixar traços. "Foi uma fagulha irradiadora", avalia João Batista Ferreira. "Hoje, várias sociedades psicanalíticas têm suas clínicas sociais". Em 1981, ainda vicejante, a entidade, numa iniciativa sem precedentes, estendeu seu raio de ação até uma favela carioca, o Morro dos Cabritos. No tempo da ditadura, chamou a si a tarefa de dar cobertura a militantes políticos que precisavam deixar o país.

A clínica promoveu ainda fecundos simpósios sobre psicanálise. Um deles em particular, dedicado ao tema Psicanálise e Política, em setembro de 1980, teria importantes desdobramentos: foi nessa oportunidade que Hélio Pellegrino, ao lado de dois colegas, Eduardo Mascarenhas e Wilson Chebabi, abriu fogo contra os barões da instituição, denunciando seus privilégios, seu pretenso apolitismo e os altos custos do tratamento. Começava uma pequena revolução. "A história das instituições psicanalíticas brasileiras se divide em antes e depois de Hélio Pellegrino", demarca Eduardo Mascarenhas, para quem o colega morto, entre outros méritos, teve o de "tirar a psicanálise , de seus castelos mal-assombrados e transportá-la para o espaço público".

"Incansável Dom Quixote a lutar contra dragões reais que nada tinham de moinhos de vento", como o descreveu Cícero Sandroni, Hélio Pellegrino já nasceu marcado por essa vocação. "Nas minhas lembranças mais remotas eu o vejo indignado com os absurdos do país", depõe o crítico de teatro Sábato Magaldi, seu primo e companheiro de infância em Belo Horizonte. "Ele tinha uma espécie de ira santa". Ira que, uma vez provocada, desconhecia barreiras e convenções. Certa madrugada — quem conta é outro amigo de juventude, o radiologista Eloy Heraldo Lima, seu colega de faculdade —, Hélio Pellegrino passava pela Praça da Estação, em Belo Horizonte, quando deparou com dezenas de famílias de indigentes dormindo ao relento. Indignado, buscou um telefone e interrompeu o sono do arcebispo da cidade, Dom Antônio dos Santos Cabral, para exigir — inutilmente — que ele, primeiro, fosse ver o triste espetáculo, e em seguida acolhesse aquela gente em seu palácio, afinal de contas "uma casa de Deus".

A história é contada no romance O Encontro Marcado, de Fernando Sabino, do qual um dos personagens principais, Mauro, não disfarça o perfil exuberante de Hélio Pellegrino. Este livro, que já vendeu mais de 50 edições desde 1956, além de traduções para várias línguas, eterniza a amizade que, na vida real, uniu quatro escritores mineiros ao longo de meio século: Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Hélio Pellegrino. Os quatro "vintanistas", como os chamava carinhosamente seu mestre Mário de Andrade. No caso dos dois últimos, os laços eram ainda mais antigos, pois se conheceram nos bancos do Jardim da Infância Delfim Moreira, em Belo Horizonte. "Perdi uma grande parte de mim, e com certeza a melhor", disse Fernando Sabino ao ver decepada essa camaradagem de 60 anos.

Há quem sustente que, dos quatro, Hélio "era o menos mineiro". Nada tinha, em todo caso, da proverbial contenção montanhosa — quem sabe pelo fato de ser filho e neto de italianos. "Brasileiro, mineiro, belo-horizontino, era italiano como quem mais o fosse", disse dele o historiador Francisco Iglésias, em homenagem que lhe prestou no Conselho Federal de Cultura. Ardia em Hélio Pellegrino aquela desmesura que o fascinava na figura de Noel Nutels. "Era uma personalidade solar, que irradiava de maneira incrível a inteligência e a generosidade", observa Antonio Candido, seu companheiro de Esquerda Democrática, Partido Socialista e, por fim, Partido dos Trabalhadores. "Nada de fechado nele. Tudo aberto, para deixar passar a força de vida e para receber a força da vida. Homem de justiça e de combate, ele se jogava com a intensidade da paixão, fosse raiva contra o mal, fosse a mais ruidosa alegria diante do bem.

Para Iglésias, que com ele conviveu desde a juventude, Hélio era "um homem-comício" — "um extraordinário orador, de linguagem incisiva, de forte beleza poética, imagens ousadas, de voz firme e sonora, servido por sua bela estampa". O jornalista carioca Moacir Werneck de Castro, que o conheceu mais tarde, carrega no mesmo adjetivo para qualificar Hélio Pellegrino: "Era dono de uma opulência verbal extraordinária, as palavras lhe vinham com extraordinária facilidade, num submisso tropel. Gostava de jogar com elas, de as dissecar, esbagaçar e remontar, de tirar efeitos inesperados de suas assonâncias — e dissonâncias". Não se perdia, entretanto, "no fluxo vocabular, não se deixava arrastar por ele. Guardava seguro o equilíbrio entre a forma exuberante, barroca, e o claro conteúdo do pensamento.

Tão bem dotado para a tribuna, o palanque, era fatal que Hélio Pellegrino cedo se entregasse à paixão da política embora sua mocidade transcorresse sob a repressão da ditadura do Estado Novo. Até isso parecia movê-lo. "A guerra e a política nos marcaram profundamente", disse numa entrevista. "Nossas esperanças eram centradas no pós-guerra, na vitória da justiça, da liberdade, da fraternidade".

Assim, aos 20 anos, fundou em Belo Horizonte uma Liga Intelectual AntiFascista. Juntou-se, por essa época, ao grupo que iria editar na capital mineira um panfleto clandestino, Liberdade (nome proposto, a pedido de Hélio, pelo escritor Georges Bernanos, que vivia então em Minas). Era impresso numa velha máquina temerariamente instalada atrás do prédio da Secretaria da Segurança Pública. A publicação, em 1945, ano da redemocratização, ganhou existência legal e sobreviveu por alguns meses, como jornal diário. "Passávamos o dia inteiro de cuecas imprimindo o jornalzinho", contava Hélio Pellegrino, que assinava com o pseudônimo Mário Sobral (tomado de empréstimo a Mário de Andrade) uma crônica com muita gozação em cima dos políticos que apoiavam o governo.

Deposto Vargas, Hélio embarcou com entusiasmo na recém-criada União Democrática Nacional (UDN), que ainda não adquirira sua fisionomia conservadora. Era estuário natural da gente de esquerda que não fechava com o Partidão. Mais exatamente, na ala da UDN que ficou conhecida como Esquerda Democrática. Foi por essa facção que Hélio, ainda estudante, aos 21 anos, saiu candidato a uma cadeira de deputado federal na Constituinte de 1946. "Ele fez uma campanha curtíssima, só quinze dias, e por pouco não se elegeu", lembra sua viúva, a psicóloga Maria Urbana Pentagna Guimarães Pellegrino, com quem teve seus sete filhos (nos últimos 27 meses, vivia com a escritora gaúcha Lya Luft; costumava dizer que "o casamento feliz é uma penitenciária de cinco estrelas").

Da Esquerda Democrática, Hélio saltou para o pequeno e aguerrido Partido Socialista Brasileiro, o PSB, do qual viria a ser uma das figuras principais em Minas. "Foi uma experiência tumultuada", rememora o escritor Marco Aurélio de Moura Matos, que foi presidente da seção mineira do partido. "A direção nacional não nos entendia, era muito acadêmica, tinha até um certo ranço stalinista". Do outro lado, Hélio e seus companheiros sofriam ataques do Partidão, que os acusava de trotskismo. "O que éramos mesmo é anti-stalinistas", precisa outro antigo dirigente do PSB de Minas, o jornalista José Maria Rabêlo, hoje presidente da seção estadual do PDT (Partido Democrático Trabalhista). "Nós acreditávamos que a revolução não podia ser feita para implantar outro totalitarismo". Rabêlo se recorda de Hélio Pellegrino "menos como um construtor de partido do que como um teórico brilhante". O que não o impedia de sair às ruas para liderar, por exemplo, duas greves históricas, dos bancários e dos condutores de bonde. Participou também de um esforço pioneiro para organizar a população de periferia, na favela conhecida como Vila dos Marmiteiros. Já formado em medicina, Hélio ligou seu nome a uma ruidosa campanha para expulsar o então governador Juscelino Kubitschek que era urologista — da Associação Médica de Minas Gerais. Juscelino havia negado aumento de ordenado e melhores condições de trabalho para os médicos do serviço público estadual. "Conseguimos expulsar o homem", conta o radiologista Eloy Lima, outro líder do movimento.

Nessa época, Hélio já havia escolhido a psiquiatria, a partir de um episódio decisivo, que relataria anos mais tarde num belo artigo, "Minha vida com os neuróticos". Durante uma aula de fisiologia nervosa, no segundo ano do curso, o professor ilustrava, na pessoa de um velho marinheiro, a doença chamada tabes dorsal. Sentindo-se reduzido a objeto, a coisa, no centro do anfiteatro repleto de estudantes, o homem, de repente, urinou na roupa — e, vexado, não pôde conter também as lágrimas. "Meu colega Eloy Lima percebeu juntamente comigo o acontecimento espantoso, e fomos três a chorar", escreve Hélio em seu artigo. "O choro do velho, seu desamparo, sua figura engrouvinhada sobre a qual parecia ter-se abatido todo o inverno do mundo, tudo me surgiu de repente como um tema de meditação, a partir de cuja importância poderia eu, quem sabe, encontrar caminho. A meus olhos, a tabes dorsal integrou-se numa pessoa humana visada como um todo. Esta totalidade única e indissolúvel deveria tornar-se objeto de ciência.

Foi em busca dessa trilha que Hélio, formado em 1947, enveredou pela psiquiatria, para desaguar em seguida na psicanálise. Não é verídica a história, integrante de seu copioso folclore, segundo a qual ele teria colocado à porta de seu primeiro consultório uma tabuleta dizendo que "só um louco procura o psicanalista Hélio Pellegrino".1Mas poderia perfeitamente ser de Hélio Pellegrino, um homem que nunca perdeu a capacidade de rir e de brincar. "As pessoas graves, sérias, compostas, morrem ainda em vida, e se tornam o busto de si mesmas", advertia. Sabia como poucos manejar a arma do humor. Numa passeata, por exemplo, no centro do Rio de Janeiro, nos anos 60, os manifestantes foram subitamente surpreendidos pela entrada em cena do brucutu, o assustador veículo que a polícia usa para dispersar multidões com jatos de água. Mas das mangueiras da fera, naquele dia, não saiu mais que um ralo fio de água. "Pessoal, o brucutu brochou!", pôs-se a berrar Hélio Pellegrino, provocando gargalhadas e desmoralizando a repressão.

Em outra ocasião, lembra Moacir Werneck de Castro, envolveu-se num incidente de trânsito; quando a pessoa com quem discutia informou que era uma alta patente militar, Hélio bateu de joelhos no asfalto e clamou, com as mãos postas: "Um marechal! Meu Deus, eu não mereço tanto!" Algumas de suas brincadeiras entravam na conta de um lirismo temperado pelo anarquismo — ou vice-versa. Foi assim em São Paulo, no ano de 1945, quando tomou nos braços a figura miúda de Monteiro Lobato e disparou com ela pela avenida São João, conta o poeta Paulo Mendes Campos: "Lobato, possesso, bradava 'pusilânime!', e o nosso amigo tentava explicar-lhe que estava apenas realizando uma complicada aspiração de infância: carregar no colo o mágico de seu mundo infantil.

Seu amor pela brincadeira, no entanto, nunca impediu que Hélio Pellegrino encarasse com exemplar seriedade as tarefas, profissionais ou não, que tinha pela frente. Solicitado por todos os lados, raramente se recusava a prestar os serviços que lhe pediam — escrever um artigo, redigir um manifesto, participar de um debate. Nos últimos anos, entre inúmeros compromissos que aceitou, fez parte da Comissão Teotônio Vilela, por melhores condições carcerárias, e do grupo Tortura Nunca Mais. Tinha prodigiosa capacidade de trabalho e passava mais de dez horas por dia no consultório — "puxando minha carroça", como dizia. Como militante, foi pouco típico e não raro dissentiu. Levado ao PT pela mão do crítico e teórico de arte Mário Pedrosa, Hélio dizia que pela classe trabalhadora era capaz de tudo, até de agüentar reuniões muito compridas. Não obstante, era o que acabava fazendo com muita frequência — como atesta o psicanalista Carlos Alberto Barreto, seu companheiro de militância no PT.

Os dois ajudaram a criar, dentro do partido, no Rio, o Núcleo (hoje Clube) Mário Pedrosa, grupo informal de intelectuais e artistas que se reúnem toda sexta-feira em casa de Barreto para discussões políticas.

Ali se travaram debates inflamados — por exemplo, sobre se o PT devia ou não ir ao Colégio Eleitoral. Hélio, simpatizante de Tancredo Neves, mais tarde admitiu que boa parte dos atuais problemas brasileiros decorre da eleição indireta de janeiro de 1985. "Ele não tinha essa coisa da verdade absoluta", chama atenção Carlos Alberto Barreto. Era, para todos os efeitos, um homem aberto e tolerante — a tal ponto que sua flexibilidade por vezes deixava desconcertados os próprios amigos. Uma boa ilustração disso foi o episódio de sua prisão, em 1969. Durante o ano anterior, de grande agitação política, Hélio escreveu artigos incandescentes no hoje desaparecido Correio da Manhã. Além disso, participou de passeatas, discursou em praça pública, integrou comissões formadas para parlamentar com as autoridades.

Mas o que de fato pesou contra o psicanalista foi a imagem que dele projetou nessa época o dramaturgo Nelson Rodrigues, adepto da ditadura. Amigo e admirador de Hélio, Nelson converteu-o num dos personagens obsessivos de suas crônicas de jornal. Hiperbólico, pintava-o ali como um líder carismático capaz de incendiar multidões com "sua voz de barítono". Os militares, parece, tomaram ao pé da letra os arroubos retóricas do cronista: no primeiro dia de vigência do AI-5, 13 de dezembro de 1968, mandaram prender o psicanalista, que passou semanas escondido antes de se apresentar aos militares, em fevereiro — sob a proteção de Nelson Rodrigues, aliás. Muitos de seus amigos, nesse momento, não entendiam por que Hélio, tendo sido levado àquela aflitiva situação por causa de Nelson, não rompia com ele. Um desses companheiros, o jornalista Zuenir Ventura, que também estava preso, conta que nem quis ser apresentado ao cronista quando este foi visitar Pellegrino no cárcere. Logo compreendeu que uma das virtudes mais invejáveis de Hélio era, exatamente, "a sua capacidade de perceber, na pessoa, todos os pedaços dela". "Com ele aprendi que você pode ser radical sem ser sectário", diz o jornalista. "Nem mesmo nos momentos em que o radicalismo fervia, em 1968, Hélio deixou de ser plural."

Nelson Rodrigues, em suas crônicas, falava de Pellegrino como "o nosso Dante". Exageros à parte, não resta dúvida de que ele foi um poeta de alta qualidade, saudado em seus começos como um dos talentos mais puros de sua geração. Tinha enorme facilidade para versejar — o professor Antonio Candido se lembra das estrofes quinhentistas ("muitas vezes obscenas") que ele produziu de improviso, em mesas de bar. Maria Urbana, sua viúva, diz que Hélio nunca deixou de fazer poesia. Mas, por alguma razão, não quis publicar, a não ser esparsamente, em jornais e revistas (em 1980, gravou alguns poemas no disco Os 4 Mineiros). Livro, mesmo, se assim se pode chamar, só o Poema de Príncipe Exilado, volume com pouco mais de vinte páginas lançado em Belo Horizonte em 1947. Recusou, certa ocasião, o oferecimento de uma editora paulista para publicar Os Melhores Poemas do Hélio Pellegrino, alegando, com graça, que os textos não incluídos passariam automaticamente a ser "os piores poemas de Hélio Pellegrino."

Como prosador, limitou-se a participar de obras coletivas, como Crise na Psicanálise, de 1982, e Os Sentido da Paixão, um dos best-sellers do ano passado, no qual assina um ensaio sobre o mito de Édipo. A explicação para a sua inapetência editorial pode estar numa confissão que fez em 1979: "Fiquei dividido entre uma identidade de escritor, que não cheguei a realizar, e a identidade de psicanalista, que eu assumo", constatou, evasivo, numa entrevista. "Talvez eu seja exigente ou vaidoso demais". Otto Lara Resende acha que a psicanálise foi, para ele, uma espécie de sucedâneo da literatura. Só recentemente, e ainda assim sem entusiasmo, Hélio concordou em trazer à tona seus baús literários. Ao morrer, preparava uma coletânea de artigos publicados na imprensa, A Burrice do Demônio, outra de textos sobre psicanálise e uma terceira de versos.

Em tudo o que escreveu, poesia ou prosa, Hélio Pellegrino deixou a marca de uma inextirpável religiosidade, um cristianismo que ele, "socialista histórico, eventualmente histérico", casava bem com o marxismo. "Por mais que fizesse força, não conseguia escapar do projeto de Deus", diz Frei Betto. Hélio não brincava quando dizia que o programa do PT, para ser perfeito, só faltava incluir a ressurreição da carne — porque, explicava, "não há afirmativa mais materialista e mais revolucionária do que esta.

Duas semanas antes de morrer, num jantar em sua casa, ele surpreendeu alguns dos convidados ao pedir que Frei Betto lhe arranjasse um padre, pois queria se confessar. "Logo você, Hélio, adepto da Igreja moderna, da Teologia da Libertação?", houve quem se escandalizasse. Um dos presentes lhe perguntou se aquele desejo de se confessar não escondia o medo de morrer. "Não, com a morte eu já acertei as minhas contas", respondeu Hélio serenamente, para arrematar com bom humor: "Meu problema, agora, é com Deus — e, como mineiro, prefiro chegar a Ele através de um chefe de gabinete...

Humberto Werneck é editor de cultura da revista Isto É.

De Helio Pellegrino

Sobre a tortura
"A utilização da tortura contra presos políticos, ou contra quem quer que seja, constitui crime de lesa-humanidade, e nesta medida fere de morte o imenso esforço civilizatório pelo qual a raça humana, através dos tempos, busca salvar-se das trevas da barbárie (...) A tortura visa a produção diabólica de um discurso que é o avesso da liberdade. Ele vira o torturado pelo avesso, na busca de uma confissão que o destrói, envenena as fontes de sua vida carnal e de seus valores espirituais.

"A tortura — corrupção absoluta — serve ao mal e à morte. A dignidade da vida, também absoluta, exige que em nenhum momento nos esqueçamos da tortura, sua negação mais evidente"3.

"Só a verdade liberta — diz a tradição humanística de todas as idades. Ao denunciar os torturadores, a sociedade civil busca não o revanchismo, mas a dignidade e a liberdade"4.

"A violência da tortura não é a violência da guerra. Esta, embora detestável, não chega a destruir o chão ético que torna possível a vida — e a morte — comunitária. Tortura é barbárie, pura e simples. (...) Na tortura o torturador desonra e destrói a condição humana e, portanto, foge da possibilidade social de anistia. Só se esquece um erro que pertença ao território humano. Um erro que destrói o fundamento da condição humana não pode não deve — ser anistiado, a não ser pela misericórdia de Deus."5.

Relato de uma conversa com Amílcar Lobo, em setembro de 1986: "Por fim contou-me um episódio edificante. Tinha consultório no mesmo andar e no mesmo prédio que o Dr. Leão Cabernite, que havia sido seu analista-didata. Era o tempo da crise, e os libelos por mim escritos deveriam incomodar os burocratas da SPRJ. Um dia, encontrou o Dr. Cabernite no corredor. Começaram a conversar sobre a tempestade que sacudia a SPRJ, até que o Dr. Cabernite lhe perguntou: ‘O Lobo, você não tem algum amigo militar que possa dar una cana dura nesse Hélio Pellegrino? Esse sujeito é insuportável e anda precisando’"6.

Sobre a criminalidade no Brasil

"Criminalidade é efeito, é forma perversa de protesto, gerada por uma patologia social que a antecede e que é, também ela, perversa. (...) Uma crise social se torna apta a fomentar a criminalidade quando chega a lesar, por apodrecimento grave, os valores sociais capazes de promover a identificação agregadora entre os membros de uma comunidade.

"A crise brasileira, tal como agora a descrevemos, corresponde minuciosa e cuidadosamente ao tipo de crise capaz de produzir o sintoma da criminalidade. Assistimos, em nossa terra, provocada pelo capitalismo selvagem, uma guerra civil crônica, cuja assustadora violência nos enche de pasmo — e pânico. A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a nada, e sem dúvida piora tudo. O delinquente, ao cometer seu crime, não pretende nenhuma transformação da sociedade. Ao contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os defeitos e deformidades"7.

"A direita, pelos tempos afora e nos mais variados quadrantes, é useira e vezeira em atribuir alguns de seus piores crimes aos adversários de esquerda, com objetivo de denegri-los — e persegui-los. Tenta-se armar, nesta medida, uma subversão monstruosa: a autoria e a responsabilidade do delito são transferidos, pelos delinquentes, aos que a eles se opõem, de modo que os criminosos, botando banca de impolutos, ainda encontrem, de lambugem, razões e argumentos para desmoralizar, reprimir e, se possível, eliminar seus oponentes.

"(...)"A guerrilha dos ricos, em nome da TFP (Tradição, Família e Propriedade) e, agora, da UDR (União Democrática Ruralista), assassinou em 1985 perto de 250 trabalhadores rurais e continua a fazê-lo. Para torpedear o Plano Cruzado, pecuaristas da mesma UDR tentaram, na Europa, pagar dez dólares por tonelada de carne não exportada para o Brasil, no sentido de forçar a alta do produto. Qual é, a respeito, a opinião do general Ivan Mendes, chefe do SNI? Nós, do PT, temos a nossa — e não a escondemos. Quem são os delinquentes?"8.

Sobre as diretas...
"Vão perder a guerra, sim. Mais precisamente: já perderam. O povo nas pragas assumiu, sem caminho de volta, seu protagonismo histórico. A ditadura, trespassada pelo próprio fracasso, estrebucha. Sua violência já não infunde medo ou respeito. O autoritarismo e o arbítrio não conseguem auto-sustentar-se por mais tempo. O anticomunismo, como ideologia ativa, está esgotado, inclusive nos meios militares. E a exigência de impunidade dos corruptos não é razão decente para deter a abertura, tanto mais que a imensa maioria das Forças Armadas não é corrupta. Portanto, diretas-já. É este o mínimo a que tem direito o povo brasileiro depois de tanta tormenta e tanto dano"9.

Sobre o governo Sarney
"...E é isto, exatamente, o que está fazendo o governo Sarney. Há uma conspiração, dentro de seus quadros, contra a reforma agrária. Querem transformá-la numa negociata sinistra, conspurcando uma bandeira manchada com o sangue de mártires, como o padre Josimo e milhares de líderes camponeses massacrados. (...) Hoje, a guerrilha dos ricos, patrocinada pela UDR e pela TFP, está impune e vitoriosa. O Estatuto da Terra, engendrado pelos próprios militares, foi jogado no lixo. O retrocesso vergonhoso nos aproxima da barbárie e do genocídio, pela violência e pela fome. ‘Estamos vivendo como nos piores tempos da ditadura’ — diz D. Ivo Lorscheider, presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Tem razão"10.

Sobre a Igreja e o marxismo
"Não existe, para o ser humano, espiritualidade desencarnada. Se isto fosse possível, Deus salvaria o homem por decreto, e não mandaria seu filho ao mundo para ser, entre nós, uma plena — e esplêndida — prática divina. Cristo nasceu, viveu e morreu. Ele foi o verdadeiro homem e, na ação de sê-lo, através de sua prática humana, garimpou e resgatou a luz de Deus que há no coração de todos os homens. A luz de Deus, aliás, reside não apenas no coração dos homens, mas no coração da matéria. Nesta medida o materialismo não ofende a Deus, nem o renega — necessariamente. Marx, materialista e ateu, está mais próximo da verdade de Cristo do que, por exemplo, o senhor Paulo Salim Maluf, católico praticante e confesso, mas dado a práticas perfeitamente inconfessáveis"11.

Sobre o PT e as eleições
"O socialismo é hoje, no Brasil, um projeto possível, em virtude da existência do PT. Não é por outra razão que se procurou, recentemente, comprometer a todo pano a figura de Lula, distorcendo e deformando, a serviço da reação contrista ou direitista, as incisivas e corajosas declarações do presidente do PT feitas à Folha de S. Paulo. Lula sabe — como sabem os marxistas e os cristãos revolucionários — que a história do Brasil e, de resto, a história do mundo, é determinada pela luta de classes. Para que haja uma democracia que mereça o seu nome é preciso pugnar por uma 'sociedade sem classes' onde não haja uma minoria opressora e uma imensa maioria oprimida e explorada. Lula sabe também que, em nosso país, a classe dominante, para manter sua hegemonia, é capaz de qualquer vileza e de qualquer violência. As eleições burguesas só são toleradas — e seus resultados mantidos — na medida em que não ameaçam tal hegemonia. Transformá-las em fetiche é cair na perversão do processo democrático, cujo estuário só pode ser o controle da economia e do poder pela classe operária"12.

Sobre a psicanálise
"Quando Freud desembarcou na América, em 1909, para fazer uma série de conferências — hoje célebres — sobre psicanálise, virou-se para Jung, que o acompanhava, e disse: 'Venho trazer-lhes a peste'. Em verdade, e num certo sentido, a psicanálise é a peste; ou melhor, ela representa a antiutopia mais radical até hoje concebida pelo espírito humano, chegando mesmo a constituir-se como uma utopia às avessas. A psicanálise pretende curar o ser humano de suas ilusões. Ela não acredita na bondade fundamental do homem, nem parte do princípio de que o processo civilizatório é uma rampa ascendente, de sucessivas vitórias, que chegarão necessariamente à plenitude do amor de todos por todos. A luta entre Eros e Thanatos — vida e morte — se decide dentro de nós, a cada instante. Por nascermos prematurados, incompletos, sem equipamento instintivo capaz de nos costurar com solidez ao mundo, sofremos a permanente saudade de ser pedra, a nostalgia de um sono sem retomo, regido por estatuto que nos transcenda e que não possamos desobedecer ou transgredir.

"O ser humano é ruptura com a natureza e a ordem cósmica, salto para a cultura, a linguagem e a lei, por cujo intermédio tenta assumir o rombo de indeterminação e liberdade que constitui o seu centro. A psicanálise é a ciência desse salto e do processo pelo qual gradativamente, nos tornamos humanos, através de dolorosas lutas e renúncias"13.

Sobre a morte
"Nesse campo de paradoxos acelerados, podemos dizer que o suicida — e também o homicida — tem horror à morte e quer matá-la em si mesmo e no outro. Morrer é coisa de vivos — não de mortos. Morro enquanto vivo e, ao morrer, perco a vida e a morte, para entrar noutro reino. Luz e sombra, escuridão e rutilância dão-se sempre as mãos na eterna passagem das coisas, e no eterno retorno de tudo"14.

Seleção de textos por Maria Rita Kehl e Patrícia Costa


Junto com o poema de Hélio Pellegrino, abaixo publicado, veio um bilhete em que Humberto Werneck revela: "... ele dizia que escrevê-lo foi sua primeira reação diante do golpe de 64".

A CÓLERA-ESPERANÇA

Atiro-a contra as quinas erguidas desta madrugada, contra estes edifícios enormes, parados contra o cinza do céu sujo como o sabão que lava o piso dos botequins ao fim da noite.

Atiro-a contra o cansaço do mundo, contra o meu próprio e inenarrável cansaço, atiro-a em nome da utopia que é minha, a tua, a nossa utopia, atiro-a com raiva, sem estratégia, sem prudência, como uma hemorragia que se esvai e tinge a calçada com o esguicho de seu incêndio rubro.

Atiro-a para nada, para o nenhum resultado do grito que precede o baque do corpo atropelado na rua, atiro-a no ar do mar, na curva corrosiva do azul, à porta dos orfanatos e prostíbulos, atiro-a ao chão, como bile sanguinolenta que escorre, como quem cospe um dente arrancado por um murro na boca.

Mas atiro-a, flecha turva, esperança e nojo, vida e cólera, atiro-a com este punho fechado, com esta sede e esta fome, atiro-a com a funda mais funda do meu sonho mais profundo, atiro-a contra argentários e fundiários, opressores e ditadores, atiro-a em meu nome e em nome dos que ainda não têm nome, e em nome dos que em dores e cólicas acordam para o seu nome, e ao rés do chão, em pleno pó, o desentranham.

Hélio Pellegrino, abril, 1964