Nacional

Se nem tudo começou em Diamantina, quando Juscelino nasceu, a verdade é que a atual conjuntura lembra muito o samba do crioulo doido do Stanislaw Ponte Preta. E no entanto é preciso navegar num mar de lucidez. É perceber que, queiram ou não, o Brasil começa a marchar para o socialismo.

A transição brasileira aproxima-se da sua fase final. A nova Constituição, de fundo marcadamente conservador, não vai agradar nem gregos nem troianos. Para entendê-la é necessário lembrar como e por que surgiu o processo constituinte.

Quando, em 1973, crises econômicas internacionais abalam o milagre brasileiro, a ditadura começa a dar mostras de instabilidade. Acirra-se a contradição entre defensores da iniciativa privada e da intervenção estatal. Derrotada a oposição armada de esquerda, intensifica-se a resistência civil, liberal e democrática. Os resultados eleitorais de 74 favorecem o MDB, então pólo da oposição. Surgem e proliferam atos públicos, manifestações populares, o movimento estudantil, as lutas contra a carestia e por anistia, e as discussões para uma reforma partidária.

Em 78 e 79 eclodem as greves operárias no ABC e a oposição ao regime dá um salto de qualidade. A ditadura é obrigada a acelerar a distensão "lenta, gradual e segura".

A crise que apenas se esboçara em 73/74 vai se agravando nos anos seguintes. Fracassado o milagre, a burguesia brasileira se vê sem perspectivas de crescimento. Os fantasmas da recessão, do desemprego e da queda de consumo criam distensões entre o empresariado. Os compromissos com os credores externos aumentam. Intensifica-se o jugo do FMI (Fundo Monetário Internacional) sobre a política econômica. Arrocho salarial, carestia e inflação fermentam a inquietude social. Manifestações, greves e protestos tornam-se cada vez mais freqüentes.

Com exceção de latifundiários, banqueiros e grandes capitalistas associados às multinacionais, boa parte do empresariado nacional coloca-se, taticamente, em divergência com a ditadura, na esperança de que um novo tipo de governo, menos intervencionista, lhe abra as portas do paraíso.

As eleições para governadores em 1982 — as primeiras, diretas depois de muitos anos — levam aos governos estaduais numerosas figuras do PMDB, partido que já então deixara de monopolizar a oposição à ditadura mas ainda contava com forte apelo popular.

Os governos militares, por sua vez, já não conseguem atender nem às reivindicações dos trabalhadores nem às da burguesia. Enfraquecidos, vêem seu fim aproximar-se.

Já em 82, e durante o ano de 83, começam a ouvir-se tímidos apelos por eleição direta para presidente. No final de 83, o PT faz em São Paulo o primeiro comício pelas diretas. A partir daí, numerosas outras manifestações, em vários pontos do país. Vários governadores aderem e a campanha se alastra.

Ao crescer, a campanha das diretas vai mudando de qualidade e rumos. As forças mais à esquerda começam a exigir mudanças mais radicais. Parte da classe média politizada adere à campanha na esperança de acabar com a ditadura e de transformar o regime.

Os setores liberais percebem o perigo a tempo. Nos palanques, continuam gritando "diretas-já". Mas, nos corredores palacianos, articulam o fim da campanha, a derrota das diretas, a eleição indireta pelo Colégio Eleitoral e a manutenção da burguesia no poder. Fazem um pacto com a ditadura: haverá transição, sim, mas "lenta, gradual e segura", sem traumas nem retaliações, sem mudanças essenciais e sem povo no poder.

Em meados de 84 a campanha já está, de fato, derrotada. Mas, para salvar as aparências, é mantida até o final do ano e vai mudando de figurino até a eleição de Tancredo Neves. A morte do presidente e a conseqüente ascensão do vice é um incidente de percurso, que não altera o projeto original: uma transição conservadora entre a ditadura ostensiva para um governo civil sob tutela militar. Tudo como dantes no quartel d’abrantes.

As diretas em 84 poderiam ter ensejado uma ruptura democrática não só com o regime militar mas com a própria hegemonia burguesa no poder. Não é que a eleição significasse o fim do capitalismo. Mas poderia representar o rompimento do pacto burguês e a entrega do poder a um governo popular e democrático. A derrota significou a negação dessa possibilidade.

A Constituinte: um pacto para manter a burguesia no poder

A seqüência é lógica e inevitável. A nova burguesia no poder inventa a Nova República. Mas não consegue encontrar solução para os problemas, velhos ou novos.

Para consolidar-se no poder, a burguesia sente a imperiosa necessidade de formalizar um novo pacto social, naturalmente a seu favor: uma Constituinte, capaz de cristalizar a correlação de forças revelada no Colégio Eleitoral de janeiro de 85. Para isso, a Assembléia Nacional Constituinte não pode ser soberana, democrática, popular e autônoma. Tem de ser controlada e submissa, com poderes emanados do Executivo.

É nesse momento que o PT incorpora a bandeira da Constituinte, que já tremulava em manifestações políticas desde 74. Ao fazê-lo, o PT tenta salvar algumas conquistas num Congresso que de antemão sabe conservador. Ao mesmo tempo que reitera seu caráter de partido popular e institucional.

Outros partidos de raízes populares — PCB, PC do B, PDT —, embora tivessem participado das diretas-já, acabam acompanhando a onda de apoio à transição conservadora e ao governo Sarney. À exceção de Brizola, rival de Sarney na disputa da Presidência, durante largo tempo o PT ficou sozinho na oposição, isolado e marginalizado.

Sarney não consegue mais governar por fora dos partidos

No começo de 86, o Planalto perpetra o espetacular golpe do Plano Cruzado, amparado pelas grandes empresas jornalísticas. O Plano e um projeto de arrocho salarial controlado, combinado com o controle de preços, de maneira a manter uma diferença de níveis suficiente para não diminuir os lucros do empresariado e incorporar novos setores da população no mercado consumidor.

Para aplicar esse pacote, Sarney passa por cima do Congresso e dos partidos, e se compõe diretamente com o alto empresariado. Diretamente, também, dirige-se ao povo falando pela TV com cada cidadão em particular, deliberadamente ignorando partidos, sindicatos, entidades populares e diferenças de classe.

É uma jogada bonapartista, que no começo dá certo. Diante da TV, ou das tabelas impressas nos jornais, o telespectador se transforma num indivíduo, desvinculado de sua classe, do sindicato, do partido. A população é fragmentada, esfacelada, e fica desarmada.

O PMDB baseia toda sua campanha eleitoral de 86 no êxito do Plano Cruzado, e assim consegue eleger praticamente todos os governadores e a maioria absoluta do Congresso. Mas quando substitui o Plano Cruzado pelo seu oposto, quebra o encantamento. O antigo fiscal do Sarney não se transforma automaticamente em opositor a Sarney. Mas vira um ser apático, cético, descrente e indiferente.

O governo Sarney cai em descrédito e perde os apoios que obtivera em sua fase bonapartista. A Aliança Democrática fora destroçada pelas eleições de novembro, embora o atestado de óbito seja passado muito tempo depois. Para refazer os apoios, o governo Sarney volta-se novamente para a busca de pactos e blocos interpartidários.

No plano sindical, o governo encontra respaldo na corrente de resultados, que troca apoio certo ao patronato e ao Estado burguês por duvidosos e transitórios ganhos salariais. No Congresso, o governo encontra campo fértil. Há, ali, uma direita que serve o governo para dele servir-se, e numerosos parlamentares alienados e disponíveis para a cooptação e para o suborno.

Mas, para governar, o Planalto já não pode mais prescindir dos partidos e de seus representantes no Congresso. Já não há mais lugar para lances individualistas, carismáticos e populistas. Projetos, decretos e pacotes têm de ser negociados. Assim, aos trancos e barrancos, por vias tortuosas, vai se constituindo e fortalecendo o sistema partidário brasileiro.

O governo Sarney vai empurrando o mandato com a barriga, tentando prolongá-lo o máximo possível. As idas e vindas nas votações do Congresso Constituinte mostram o instável equilíbrio da correlação de forças. O Congresso é o avesso do avesso do avesso: a maioria de constituintes foi eleita por uma minoria de eleitores; a minoria dos parlamentares defende os interesses da maioria da população. Daí que a nova Constituição não consegue deixar de ser uma colcha de retalhos...

O significado das denúncias contra os atos de corrupção

Nem tudo é tranquilidade, porém. Surgem fatos novos.

Um deles é a corrupção. Todos sabem que corrupção sempre existiu. Durante a ditadura militar, certamente houve muita corrupção. Mas ditadura é silêncio, e a censura protegeu corruptos e corruptores. Na transição conservadora, contudo, as denúncias contra a corrupção estão cada vez mais freqüentes. Esse é o fato novo.

O que se denuncia como corrupção, em larga medida, são as mordomias, os marajás, os privilégios de autoridades, de políticos e de servidores públicos de alto escalão. Ou o tráfico de influência, o uso da máquina administrativa para favorecimentos pessoais, a repassagem de verbas públicas de uma repartição a outra, a troca de votos por cargos, e as taxas e comissões ilegalmente cobradas na execução de obras públicas.

Em menor escala, a inoperosidade, a incompetência, a ineficiência, a ausência de políticos e de servidores públicos.

Só. Nenhuma palavra sobre corrupção nas empresas privadas. Nem uma linha sobre a super-exploração da mais-valia, salários baixos, aluguéis extorsivos, jornadas de trabalho desumanas, insalubridade nos locais de trabalho, demissões em massa, transportes coletivos caros e desconfortáveis, taxas escolares criminosas, inacessíveis preços de comida e de remédio etc. É claro que esses fatos são denunciados. Mas nunca como corrupção, como crime. Sempre como resultado de inevitáveis leis naturais da economia ou lamentáveis, porém, igualmente inexoráveis, cataclismas da natureza: secas, enchentes, frio, calor, inverno, verão, plantio, colheita etc.

Ou seja: a corrupção denunciada é a do domínio do setor público, do Estado, dos políticos. O setor privado está acima do bem e do mal, e o que faz é moralmente justificado pela lógica do sistema capitalista.

O que está por trás disso — abstraídos os casos individuais de efetiva busca da moralidade — é a desqualificação sistemática da esfera política e do setor estatal. E a tentativa de passar a idéia de que o Estado é o Mal, enquanto promotor ou fiscal de atividades administrativas e econômicas. De que o Estado só é o Bem quando garante a infraestrutura para que o empresário capitalista obtenha lucros; ou quando funciona como repressor das reivindicações e revoltas populares.

A denúncia da corrupção tem impacto imediato na maioria da população. Porque aciona um vago sentimento moralizante de vingança por tabela, em que o eterno humilhado se vê subitamente por cima de seu cotidiano espezinhador. No final, nada vai mudar, mas, por um átimo, parece que a Bastilha está caindo. O verdadeiro resultado final é a desmoralização da contestação política de oposição e a ocupação do poder pela burguesia.

As entidades sindicais e partidárias que defendem os trabalhadores devem apontar o caráter de classe das denúncias contra a corrupção, mas não podem deixar de combatê-la, como sempre fizeram. O combate à corrupção é fundamentalmente político, mas está assentado numa legítima base ética, e é essa face moral desse tipo de luta que pode mobilizar a população. O combate não deve restringir-se à corrupção no Estado: deve abranger a do setor privado, das multinacionais, dos latifúndios, dos bancos, dos supermercados, das empresas de comunicação de massa, das grandes redes de estabelecimentos comerciais, das escolas e dos hospitais.

Outro fato novo da conjuntura é a chamada apatia popular.

Existe mesmo apatia? Ou toma-se por apatia um certo desencantamento popular em fórmulas convencionais e tradicionais, em partidos políticos, em slogans gastos pelo uso e pelo abuso?

A indiferença do povão aos apelos dos partidos de oposição — o PT aí incluído — deve ser tomada como uma característica do estado de desânimo do povo? Ou, ao contrário, é um sintoma dos erros e das debilidades nas táticas e nas formas de comunicação empregadas pelos partidos políticos de oposição, aí incluído o próprio PT?

Provavelmente coexistem as duas razões. Os partidos, os sindicatos e as centrais, mesmo quando combativos, nem sempre encontram fórmulas novas. E, no Brasil de hoje, parece haver um imenso, mas vago e difuso, sentimento de insatisfação popular, nem sempre adequadamente canalizado para propostas políticas conseqüentes.

Em raros momentos, essa insatisfação eclode em súbitas e improvisadas explosões de revolta, de violência, com enormes doses de espontaneísmo. Foi o caso das manifestações de novembro de 86 contra o Cruzado II, dos quebra-quebra de ônibus, dos saques a alguns supermercados, das manifestações de hostilidade a comitivas governamentais. Não fazem parte de um plano organizado, nem de direita, nem de esquerda, embora possam ser aproveitadas por provocadores de extrema-direita. Não são precedidas por análises ou planejamentos estratégicos e táticos. Surgem e desaparecem no espaço de um dia, de algumas horas. Não deixam saldo organizativo ou político. Não contribuem para o avanço da luta de classes organizada. Podem colaborar involuntariamente com projetos reacionários de repressão e fechamento. Devem ser acompanhadas e analisadas porque, embora ainda não representem uma tendência, não podem deixar de ser vistas como um sintoma.

A insatisfação generalizada provoca outros tipos de reações. Na classe média — especialmente nos setores de renda alta — alastram-se as características mais negativas dessa camada social: competição social desenfreada, cooptação a projetos empresariais e autoritários, carreirismo yuppista, consumismo ostensivo, alienação social e militante declarada. Quando não, a fuga pela via das drogas.

Vastos setores dos insatisfeitos buscam uma saída pela direita. A UDR (União Democrática Ruralista), a União dos Empresários, outras entidades de âmbito mais restrito mas igualmente reacionárias, encontram aí um campo fértil. E possível que esteja superado o tempo dos lideres carismáticos populistas tradicionais, tipo Jânio e Maluf. A nova direita é muito mais inteligente, moderna e capaz. Em poucos anos, surgiu, cresceu e multiplicou-se. Alimenta-se da insatisfação popular, como a esquerda. Vai buscar seus sustentáculos políticos e financeiros na classe média, nos micro, pequenos e médios empresários e produtores do campo e da cidade. Toma do movimento popular algumas de suas bandeiras, que mistura aos slogans em defesa do capitalismo, da livre iniciativa e contra o comunismo. Usa métodos de mobilização de massa que durante muitas décadas foram apanágio das organizações revolucionárias: caravanas, passeatas, bloqueios de estradas, acampamentos, comícios e pressões diretas sobre o Congresso. A nova direita brasileira exerce forte atração entre os trabalhadores assalariados de renda média e baixa, e pode crescer ainda mais. Quando estiverem esgotados todos os recursos do governo Sarney, o que não deve durar muito, a nova direita pode aparecer como uma saída para a burguesia em crise.

Alguns setores de esquerda vêem, na insatisfação popular, aquilo que ela não é. Nesse vago e difuso sentimento, do qual nem os próprios portadores têm sempre consciência, tais setores julgam perceber uma disposição de oposição política militante contra o governo, contra o regime e quiçá contra o sistema capitalista. Acham, portanto, que chegou a hora de a onça beber água. E supõem, erradamente, que estão dadas as condições para atos mais ousados, mais corajosos, mais decisivos na direção de uma virada de mesa. Transformam-se, assim, em vanguarda extremada de uma massa que não só não os reconhece como vanguarda, mas muitas vezes sequer sabe de sua existência. Propõem análises, projeções e ações que nem correspondem ao momento histórico, nem ao estado de ânimo dos que, supostamente, deveriam ser os agentes ativos dessas ações. Independentemente de suas boas intenções, correm assim o risco de jogar em aventuras fatais a classe trabalhadora. Se suas teses ainda têm pequena repercussão nos meios urbanos, podem exercer alto poder de atração no campo, onde a superexploração e a super-violência constituem o cotidiano da luta de classes.

A grande maioria da população insatisfeita, porém, recolhe-se a uma postura individualizada e isolada. Embrutecido pela imperiosa e opressora faina diária pela sobrevivência, o homem comum, embora descontente, não faz quase nada para mudar a situação. É uma população reiteradamente frustrada com sucessivas derrotas: nas diretas de 84, na eleição de prefeitos em 85, na fiscalização dos preços em 86, no resultado das eleições de novembro, na aparente inutilidade das assinaturas nas emendas populares de 87, no desânimo da Constituição que vai sendo montada em 88. O novo homem do povo já não acredita mais em soluções coletivas e institucionais. Isso não quer dizer que esteja disposto a gestos insurrecionais. Ao contrário. Ele está mais para o "deixa como está para ver como é que fica...". Querendo, talvez, ver o circo pegar fogo, mas sem atiçar a chama. Está pagando para ver. Mas espera que outros tomem as iniciativas.

E as iniciativas tardam. Mesmo os setores mais combativos do movimento popular e sindical não têm conseguido propor fórmulas políticas capazes de alterar a situação. Nem têm logrado articular um sem-número de pequenas lutas isoladas e fragmentadas em campanhas políticas de maior envergadura.

Os partidos de oposição, tirante sua cotidiana ação no Congresso Constituinte, não têm encontrado forças para combinar as ações parlamentares com as lutas das ruas, das fábricas, das escolas e do campo. E também não têm sido capazes, até o momento — aí incluído o PT —, de oferecer ao conjunto da população uma saída capaz de galvanizar a todos e jogá-los numa luta comum organizada, para mudar a correlação de forças e a situação econômica, social e política.

A indiferença popular, portanto, é em grande parte justificada. Quebrá-la, transformá-la em ação, e canalizar essa ação para lutas comuns, não é tarefa de cada indivíduo, isoladamente. É dos sindicatos, das centrais, dos partidos, do PT.

Perspectivas atuais: lucidez e vontade para ver o novo

Que fazer?

Em primeiro lugar, é proibido ficar perplexo. Lucidez é uma tarefa. A análise constante e cada vez mais aprofundada da realidade brasileira é indispensável. As últimas décadas geraram fenômenos anteriormente desconhecidos. Os modelos de compreensão utilizados em outras épocas precisam ser repensados e aperfeiçoados, para terem validade nos dias de hoje. É necessário dispor-se a captar variáveis novas, antigamente inexistentes. E igualmente perceber a presença de novos agentes na luta de classes, mesmo que eles não apareçam em antiquados e superados esquemas de estratificação social.

Não é mais possível supor que a sociedade brasileira se divida em burguesia e proletariado, e ponto final. Ou se detectam e se caracterizam as novas camadas sociais, as novas frações de classe, os novos setores surgidos nos últimos trinta anos ou não vai se compreender nada do que está acontecendo.

Também é necessário entender que as relações entre os grupos sociais não se reduzem a uma dualidade mecanicista, expressa ou pela colaboração ou pelo antagonismo irremissível. São mais sutis. Mais complicadas e complexas. E, talvez por isso, mesmo, mais cruciais para o entendimento da situação.

É fundamental conhecer as bases econômicas em que se assenta o jogo de forças sociais e políticas. Mas é imprescindível aceitar que a base econômica não explica tudo. Manifestações em outras esferas da vida coletiva, mais sutis, geralmente desprezadas em análises convencionais, devem passar a compor o rol de fatos observáveis.

O que pensa e como age a juventude? E, principalmente, o que é a juventude, tirando o movimento estudantil; mesmo este, o que significa hoje em dia?

E o movimento sindical? Já não é suficiente classificar os líderes sindicais em combativos e pelegos, como se fazia até recentemente. Qual o significado real do surgimento de novas correntes, novas lideranças e novas centrais? O chamado sindicalismo de resultados, que exerce certa atração sobre a base operária, não pode ser combatido com insultos e slogans. Deve ser entendido, para ser superado.

E o movimento popular? Os favelados, os que não têm onde morar? As mulheres, os negros, os índios, os idosos, as crianças? Os office-boys, os professores, os funcionários públicos? E os que se dedicam a economia marginal? E os que vivem no campo, com muita, média, pouca ou nenhuma terra? Os bóias-frias, os meeiros, os arrendatários?

Equilíbrio instável: acúmulo de forças e lutas democráticas

Em segundo lugar, é necessário admitir que a luta de classes, no Brasil, atravessa um período de relativo equilíbrio. É um equilíbrio instável, originado mais pela inércia, pelo empate técnico da inorganização de parte a parte, do que do embate testado das forças.

A burguesia, embora como classe dominante tenha tornado as principais iniciativas no campo econômico, social e político, não tem um projeto unificador e hegemônico, capaz de lhe assegurar perspectivas de crescimento e de solução dos problemas do país. No mais das vezes, a política burguesa se resume em aumentar, a taxa de exploração da mais-valia e perpetuar-se no poder. É pouco. Observadores burgueses perspicazes sabem que esse equilíbrio não vai manter-se para sempre. Se a burguesia não encontrar uma saída pelo centro ou pela direita, acabará perdendo o poder e o lugar na História.

A classe trabalhadora, por sua vez, também ainda não foi capaz de formular um projeto alternativo para o conjunto da sociedade. Ainda não conseguiu unificar seus heterogêneos setores, nem aglutinar as diversas forças ideológicas e políticas que atuam em seu interior. Na última década, criou novos instrumentos sindicais e políticos de organização, conscientização e mobilização. Mas ainda está longe de propor-se a tomada do poder e a transformação radical da sociedade.

É, portanto, uma conjuntura de acúmulo de forças. Do ponto de vista da classe trabalhadora, uma conjuntura cuja saída imediata é a conquista de vitórias democráticas e populares que constituam um patamar para avanços mais radicais em direção ao futuro. Conquistas que passam por eleições presidenciais, eleições municipais, referendo popular para a nova Constituição, e um programa de governo compromissado com o povo.

Em terceiro lugar, é possível detectar, desde já, alguns elementos embrionários do que se poderia chamar, sem risco de grave erro, de um processo brasileiro de transformação socialista.

Várias das condições objetivas para um processo socialista já se acham colocadas no cenário econômico e social desde há anos. Foram criadas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo no Brasil: expansão e concentração do capitalismo industrial, crescimento do capitalismo agrário, formação de um sistema de classes sociais, existência de instrumentos sindicais e partidários de organização e conscientização da luta de classes, inexistência de um projeto hegemônico da burguesia.

Vinham faltando, porém, o que se chama de condições subjetivas, isto é, de vontade e capacidade dos sujeitos do processo de atuarem nessa direção. Ao que parece, algumas dessas condições subjetivas estão começando a existir.

Ainda não há um projeto unificado de transformação. Mas o conhecimento e o pensamento reflexivo acumulados, ou os que podem ser mobilizados, já são suficientes para iniciar a formulação de um projeto estratégico na direção da transformação socialista.

As forças de esquerda continuam divididas, e a própria classe trabalhadora é, na maioria, alheia à atividade política. Mas já existe a possibilidade de aglutinação de forças em torno do PT, como instrumento indispensável para a condução do processo, sozinho ou ao lado de outros partidos.

A insatisfação popular ainda consiste num sentimento vago e difuso. Mas há uma potencialidade de luta, latente e não manifesta, que pode ser despertada, canalizada e organizada para um projeto orgânico de transformação social, econômica e política.

A direita brasileira cresce e se moderniza. Mas se for eficazmente combatida a tempo, pode ser derrotada, como já o foi na década de trinta.

Pequenos e médios produtores do campo e da cidade exploram os trabalhadores assalariados. Mas também são explorados pelo grande capital, pelos latifundiários e pelos banqueiros; podem, portanto, ser ganhos para um processo de transformação ou, pelo menos, neutralizados como opositores às mudanças.

Partidos conservadores de centro, como o PMDB e o PFL, ainda são fortes. Mas estão começando a se fracionar e podem se enfraquecer rapidamente; isso possibilitará opções mais claras para amplos setores da classe média em favor de um projeto socialista.

Assim, se não há motivos para triunfalismos otimistas, nem grandes esperanças ingênuas, também não cabe o derrotismo niilista.

O processo socialista brasileiro está ainda no começo. Vai ter um caminho longo, duro e difícil. Ainda sofrerá derrotas e recuos. Mas a tendência geral é de progressivo avanço.

O processo terá, necessariamente, um caráter revolucionário, mais ou menos independentemente da vontade de seus propugnadores e seus agentes. Independentemente, também, de precisos significados semânticos que se queiram emprestar ao vocábulo revolucionário, a priori. Será revolucionário porque não poderá deixar de sê-lo, ao se propor acabar com o capitalismo e construir o socialismo.

Grande parte desse caminho revolucionário ainda permanece obscuro. Mas o processo já começou e dificilmente voltará para trás, a não ser, eventualmente, por rápidos instantes. Daqui para a frente, já há uma real alternativa socialista como opção de saída para as crises conjunturais e estruturais que o país sofre há tantos anos. Sem aventureirismos, mas sem vacilações, é preciso adotá-la, e trilhar o seu caminho.

Perseu Abramo é jornalista, membro da Executiva Nacional do PT e do Conselho de Redação Teoria e Debate.