Internacional

Apesar da ação dos contras e do imperialismo, a revolução sandinista triunfa, apoiada no pluralismo, na economia mista e no não-alinhamento.

A atual política imperialista norte-americana para a América Central não é uma abstração doutrinária apenas. Ela se revela na Nicarágua muito concretamente, por meio do fomento à contra-revolução, que conduz uma guerra interna de baixa intensidade, abalando a economia.* Há ainda o bloqueio econômico efetivo e a potencial ameaça militar pelo governo Reagan, que chegou a minar os portos nicaragüenses.

É nítido o contraste da situação centro-americana com a dos países do Cone Sul, como o Brasil, onde a industrialização, ainda que sem resolver a miséria de amplas camadas da população, induziu setores importantes da esquerda a negar atualidade ao próprio conceito de imperialismo, considerado ultrapassado apesar da realidade crua da dívida externa, das retaliações à política de informática e do acinte da Autolatina ao ministro da Fazenda. Na América Central a realidade se impõe, sem deixar lugar às sofisticações subjetivas de teorias sem base no mundo real. Não só na Nicarágua, um país pequeno, com cerca de 3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 1 milhão em Manágua.

Uma rápida passagem pelo Panamá serve de aula introdutória à realidade centro-americana. Como no Brasil, a pobreza e a chamada economia informal dos vendedores ambulantes ocupam as ruas, enquanto as vitrinas das lojas estão cheias de aparelhos eletrônicos moderníssimos. A peculiaridade é o dólar norte-americano como moeda circulante: com ele se pagam inclusive as viagens nos ônibus apinhados de gente, multicoloridos e enfeitados. Os ônibus panamenhos costumam ter enormes figuras de heróis norte-americanos, como Rambo, pintadas externamente. Talvez essa descrição sirva de cenário presumível para as Zonas de Processamento de Exportação que se cogita criar no Brasil. Fechando o quadro, há a ostensiva presença militar norte-americana ocupando a Zona do Canal, onde se tem a impressão de se estar na Flórida ou na Califórnia e não no Panamá. Os demais países centro-americanos vivem, em maior ou menor grau, tensões decorrentes desse quadro político.

As dificuldades da Nicarágua

Após nove anos da vitória da FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional) sobre a ditadura de Somoza, a Nicarágua vive um momento histórico contraditório para observador desavisado.

De um lado, há a vitória militar sobre os contras, agora desfalcados pela negativa do Congresso norte-americano, em fevereiro de 1988. Às verbas propostas por Reagan; a vitória política nas negociações em busca da paz em várias frentes: no acordo internacional de Esquipulas II, no apaziguamento da população indígena está no diálogo interno com a população, e nas convocação para um cessar-fogo com os contras, enfraquecidos mas anda montados pelo apoio norte-americano. De outro lado, o recrudescimento da oposição interna com duros ataques do jornal La Prensa ao governo, dentro de um clima de liberdade ímpar em um processo revolucionário em curso e em um país assediado por uma guerra. Guerra que agrava a crise econômica, impedindo que a política social da revolução se amplie em benefício das camadas mais pobres da população. A oposição ao governo da Frente vai desde os resíduos direitistas do somozismo e seus aliados simpáticos aos contras, até grupos de esquerda hostis à FSLN, como o próprio Partido Comunista (que assume posições de franco ataque ao governo revolucionário na imprensa e em manifestações públicas), passando por grupos ligados ao grande capital transnacional ou ao incipiente capital nacional contrariado.

De fato, são muitas as dificuldades por que passa o país. Lamentavelmente vê-se muita pobreza na periferia de Manágua e no meio rural - evidenciando os problemas do governo revolucionário para cumprir alguns dos objetivos maiores da revolução. Os gastos e as perdas na guerra dos contras juntamente com os prejuízos causados pelo bloqueio econômico explicam grande parte dessas dificuldades.

Tabela 1

Perdas sociais na guerra dos contras (1980-1986)

Mortos 3.999
Feridos 4.542
Seqüestrados 3.191
Órfãos

6.329

Refugiados de guerra 250.000
Centros de saúde destruídos 20
Centros e postos de serviços abandonados 99
Escolas destruídas 48
Escolas fechadas

502

Coletivos de educação de adultos fechados

840

Recursos florestais queimados

44.000 ha

Máquinas destruídas

US$ 35.000.000

Fonte CRIES, 1986

Outros problemas de fundo somam-se a esses fatores conjunturais:

- o aumento da estrutura econômica e social;

- o conflito étnico-cultural que se manifesta tanto no autonomismo das populações indígenas da Costa Atlântica, agora bem encaminhado, como também no choque entre o projeto de desenvolvimento produtivista e os padrões culturais, de hábitos arraigados no uso do tempo e do espaço, pouco adaptados à organização empresarial do trabalho;

- a herança histórica de dominação, agravada pelos longos anos de ditadura;

- a dependência de importações de bens e insumos, como o petróleo, essenciais para o projeto de desenvolvimento;

- a dificuldade para exportar, a deterioração dos termos de intercâmbio e a falta de capitais para investir, agravadas pela crise econômica mundial.

O pluralismo

Embora esses fatores sociais e econômicos sejam essenciais para a compreensão das atuais dificuldades, deve-se destacar o aspecto político no senso estrito. Não é trivial a tarefa de governar a Nicarágua nos marcos que a FSLN se propõe. Em parte pode-se atribuir isso à ineficácia administrativa típica do subdesenvolvimento em qualquer país, à ineficiência de quadros profissionais, ao emperramento da burocracia estatal e a erros na condução do governo. Mas isso existe, em maior ou "menor escala, em todos os países latino-americanos.

Por trás desses sintomas estão os obstáculos inerentes ao projeto político da FSLN, de levar à frente a revolução com pluralismo político, economia mista e não-alinhamento internacional — apesar da agressão externa e da contra-revolução interna — em um quadro de extrema pobreza e de diferenças sociais. É uma experiência não só inédita na prática dos movimentos revolucionários, como também relacionada a uma formação teórica em elaboração, não acabada. Talvez, do ponto de vista da eficácia imediata, fosse tentador assumir a ditadura do proletariado da teoria marxista, como nas suas variantes históricas soviética, chinesa ou cubana, incorporando alianças camponesas ou burguesas nacionalistas, à falta de um proletariado numericamente significativo.

Entretanto, o caminho nicaragüense é outro, e se insere em outro contexto histórico e geográfico, exigindo uma solução inovadora, que a FSLN procura criar. Daí o fascínio que exerce sobre as forças democráticas e progressistas de todo o mundo, céticas quanto às propostas de renovação do capitalismo com suas crises cíclicas, sua insensibilidade social nos países da periferia e sua tendência ao holocausto nuclear, mas alertadas para os desvios autoritários das formas do socialismo realmente existente.

O pluralismo político começa na própria composição da FSLN, fruto da união de três tendências nas quais se cindira o movimento de libertação nacional: a insurrecional (cuja concepção prevaleceu), a de guerra popular prolongada e a proletária. O governo é amplo, incluindo além dos comandantes com posições atualmente mais moderadas (como o presidente Daniel Ortega) e mais duras (como o ministro do Interior, Tomás Borge), intelectuais (como o vice-presidente Sérgio Ramires) e padres progressistas (como os ministros Ernesto Cardenal, Fernando Cardenal e Miguel D’Escoto). Presume-se que concepções diferenciadas quanto a certos aspectos de condução do governo, oriundas das três componentes históricas da FSLN, possam ainda influir hoje. Os comandantes oriundos da tendência insurrecional tenderam historicamente a uma abertura muito ampla para o envolvimento de setores variados da sociedade, enquanto os da guerra popular prolongada tenderam a um maior purismo da revolução e os da tendência proletária à ortodoxia revolucionária. De um lado, essas concepções se complementam nas tarefas concretas, sob a unidade forjada na luta, refletida nas manifestações de massa. De outro, elas atuam com certa diferenciação dentro do pluralismo de idéias em efervescência.

Isso está longe do partido único clássico e significa uma gestão de compromissos, mais democrática — embora a FSLN mantenha completa hegemonia na sociedade, controle o Estado e o Exército Popular Sandinista, formado na luta revolucionária. A FSLN foi amplamente majoritária nas últimas eleições, com 67% dos votos. A oposição de direita e de centro teve 29,2% dos votos e a de esquerda, 3,8% dos votos. Existem hoje 14 partidos no país. Há também organizações independentes, empresariais e sindicais, que formulam críticas e reivindicações ao governo. Nas empresas privadas e estatais ocorrem greves que não são reprimidas pela polícia. Ou seja, o processo político pluralista nicaragüense não se limita ao pluralismo formal, que nas democracias populares da Europa Oriental não significou muito, que também não se realiza na prática no México hegemonizado por um só partido, nem nos EUA, onde prevalece de fato o bipartidarismo.

O não-alinhamento

O não-alinhamento da Nicarágua, embora angarie a simpatia de governos europeus de orientação social-democrata e mesmo de setores liberais norte-americanos, e abra espaço político também na América Latina, não foi motivo suficiente para evitar que o governo Reagan rotulasse a FSLN como comunista. Por outro lado é inegável o apoio dos países socialistas, a começar pela União Soviética.

Apesar das acusações norte-americanas, o clima de liberdade é real. Fala-se mal do governo abertamente, nos bares burgueses freqüentados pelos estrangeiros e na imprensa (La Prensa), tanto quanto se defende com ardor a revolução em manifestações populares, nas quais há um clima comovente. E claro que há uma forte presença do Exército Popular Sandinista no país, mas ela é muito informal, vendo-se soldados armados e veículos verdes por todo canto. Países que fizeram a revolução e ficaram acuados foram levados a essa forte presença militar na sociedade. Vê-se isso na Nicarágua, como em Cuba e, ainda, na China e na União Soviética: muitos soldados fardados nas ruas, misturados ao povo. O caráter revolucionário do Exército é um dos pontos mais atacados pelos opositores, que querem descaracterizá-lo como força popular.

Não há um sentimento antiamericano indiscriminado entre os dirigentes da FSLN: acusa-se Reagan, mas nas referências à política de Carter reconhece-se seu papel importante para a derrubada das ditaduras latino-americanas. Vêem-se muitos jovens norte-americanos na Nicarágua.

Não é trivial levar a cabo uma revolução que se propõe a corrigir as distorções sociais acumuladas e combater militarmente os contras mantendo, ao mesmo tempo, o pluralismo, a economia mista e o não-alinhamento. Mas o outro caminho seria o autoritarismo de esquerda, que se quer evitar.

A economia mista

A economia mista é considerada por alguns teóricos do processo nicaraguense como um objetivo estratégico, necessário para o desenvolvimento econômico e para evitar a concentração autoritária do poder estatal. Isto não é consensual entre os teóricos do sandinismo. A questão é como garantir o caráter socialista da revolução com democracia participativa no lugar do centralismo democrático. É o mesmo desafio da proposta teórica do PT no Brasil, e não é por acaso o prestígio de Lula na Nicarágua.

A questão, além da proporção que tem o setor estatal e o privado, é: quem controla o quê. Na discussão teórica que se trava na Nicarágua, associa-se a empresa típica da economia mista à autogestão pelos trabalhadores (com o excedente distribuído aos mesmos e a um fundo de acumulação), ou à co-gestão de trabalhadores e empresários (indo o excedente para os donos do capital, com participação nos lucros para os trabalhadores). Mas isto ainda está longe de concretizar-se.

A participação direta do Estado na economia, da ordem de 40%, é inferior à do Brasil. A maior parte do setor privado é constituída de pequenas e médias empresas. Das empresas de maior porte, uma parcela (1/3) é controlada pelos empresários nacionalistas, aliados da revolução, outra pelos adversários da FSLN, que sabotam a economia, e uma terceira por empresários de posição ambígua, que não investem no país alegando não haver clima político ou econômico.

Algumas companhias multinacionais tendem a alinhar-se contra o governo, criando dificuldades: empresas petrolíferas norte-americanas recusaram-se a receber petróleo de origem cubana; outras operam normalmente, havendo um estudo abrangendo 40 dessas empresas que mostra terem elas auferido lucros razoáveis após a revolução.

A chamada economia informal é muito ativa, o que não deve ser motivo de grande otimismo, dadas as severas condições de trabalho, insegurança social e precária remuneração das mulheres, homens idosos e crianças que tomam as ruas e praças públicas para vender toda sorte de coisas. O desemprego elevado e o subemprego, bem como os baixos salários, contribuem para a ampliação desse setor informal.

Há duas economias funcionando no país. Uma delas é a dos salários muito baixos, dos cartões de abastecimento de bens e gêneros essenciais, a preços baixíssimos, do preço dos transportes, quase gratuitos, bem como do próprio combustível. Outra é a do mercado livre, dos restaurantes, dos bens não-essenciais e típicos da classe média, inclusive duráveis, que são muito caros. A política econômica procura um equilíbrio entre esses dois subsistemas difícil de ser mantido, tendendo a economia livre a corroer a economia de preços controlado por meio da revenda de bens adquiridos nesta última, por exemplo.

Recentes medidas de mudança monetária, de fevereiro de 1988, visaram estabelecer um controle mais severo dessas atividades especulativas e valorizar mais as atividades assalariadas, ao mesmo tempo que reduziram subsídios a produtos importados e estabeleceram um controle de preços no estilo do Plano Cruzado. Entretanto, as pressões políticas da classe média, atuantes no pluralismo político, obrigam a uma convivência dessas duas economias. A classe média não vive mal; há bairros bem apresentados, com ótimas casas, pode-se comer bem, há relativamente mais carros circulando em Manágua do que em Nova Delhi ou Pequim, embora muitos sejam velhos e estejam em estado precário de manutenção. Os aparelhos de TV são difundidos pela população em geral, podendo-se vê-los em residências pobres.

A tabela abaixo dá uma descrição global da divisão da propriedade na Nicarágua. A chamada área de propriedade do povo, controlada pelo Estado (40%), é na sua maior parte (25%) oriunda de empresas confiscadas a somosistas — logo, tem origem mais política do que econômica —, os 15% restantes são basicamente de empresas mistas do Estado com capitais privados nacionais (10%) e estrangeiros (5%).

Tabela 2

Economia mista na Nicarágua

Área

Global Agrop. Indust. Serv. Observação

Área de propriedade
do povo
40% 24% 48% 39%

O confisco restringiu-se basicamente às propriedades de somosistas.

Confiscada 25%

Mista com:

Capital nac.

10%
Capital est. 5%

Área Privada 60% 76% 51% 61%

Dos grandes produtores, 1/3 é favorável à revolução 2/3 são de oposição ou ambíguos

Grandes produtores 30% 50% 27% 10%

Pequenos
Produtores
30% 26% 24% 51%

Os pequenos produtores abrangem mais da metade da população economicamente ativa, incluindo o setor informal, bem como as cooperativas.

Fonte: Xabier Gorostiaga, La Economia Mixta en Nicarágua, CRIES, 1986. Centro de Comunicación Internacional, 1987.

Como consequência da forma de apropriação das empresas somosistas, a presença do Estado na economia, como proprietário de unidades produtivas, é um tanto diversificada e inclui uma variada gama de negócios nem sempre essenciais ao controle da economia, deixando de fora outros essenciais. Segundo o Conselho Superior da Empresa Privada (COSEP), que faz oposição ao governo, "o Estado está em todo tipo de negócios: desde todos os bancos, empresas de poupança e empréstimos, seguros, financeiras, fábricas de cimento, hotéis e motéis, cinemas, discotecas, cabarés, circos, parques de diversões, representações de empresas estrangeiras, plantações de algodão, café, cana, fazendas de gado, fábricas de bebidas, canais de televisão, 75% das radioemissoras, supermercados..." Por outro lado, a refinaria de petróleo é da Exxon, mas foram nacionalizados todo o sistema financeiro e o comércio exterior de exportações, sem dúvida essenciais ao controle da economia.

A reforma agrária é levada a sério e produziu mudanças essenciais no campo, de modo a não propiciar base interna camponesa para as atividades contra-revolucionárias. O impressionante é que mais da metade da população economicamente ativa está em pequenas empresas ou no setor informal da economia, o que dificulta muito o planejamento e mais ainda a sua execução, dada a estruturação anárquica desse setor.

A Operação Mártires da Quilali

Presentemente, o governo se digladia com pequenos vendedores, atravessadores, cambistas de dólares, quase todos irregulares, mas que exercem forte pressão na elevação dos preços. Constituem uma espécie de contras da economia, que estão em toda parte, manejam substancial parte do dinheiro em circulação, fazem o que bem entendem. Há dificuldade em fazer cumprir a lei pois eles não são legalizados; a menos que se usasse a repressão policial, o que se quer evitar por princípio.

Assim, o alvo principal da política de controle de preços na criação do córdoba nuevo (1/1000 córdoba velho) e nos slogans de campanha da Operação Mártires da Quilali, de fevereiro de 1988, não é a grande empresa razoavelmente controlada pelo Estado. É essa massa de negociantes, que vai dos vendedores semiclandestinos das barracas de mercado aos especuladores ricos. O espectro é tão amplo que quase impossibilita a ação fiscalizadora. Uma medida inusitada nesse contexto foi a determinação de que todo o dinheiro velho fosse trocado pelo novo inopinadamente, em um prazo de três dias, garantindo apenas a troca imediata até um pequeno valor por pessoa/família. A diferença acima desse valor ficou bloqueada e sujeita a averiguação sobre a origem do dinheiro, sob intensa campanha de opinião contra ganhos irregulares. O resultado foi uma redução imediata do meio circulante em pouco mais de 10%, como decorrência do dinheiro não trocado nos dias estipulados.

Entre os objetivos da Operação Mártires da Quilali estão:

>— controle da inflação, que ultrapassava 1.000% ao ano;
>— correção dos preços relativos, totalmente desorganizados por uma política de subsídios desatualizada;
>— atualização da taxa de câmbio, que variava desde 70 até 20 mil córdobas por dólar, conforme o produto ou o serviço, chegando a 50 mil no câmbio negro; agora foi unificada em 10 córdobas novos (10 mil córdobas velhos) por dólar;
>— atualização dos valores dos salários, que estavam baixíssimos, e abertura do leque salarial, que era muito comprimido. O objetivo é valorizar os quadros técnicos e especialistas, que ganhavam muito pouco em relação aos países vizinhos;
>— controle de gastos públicos e aumento da eficiência do Estado.

Há uma escala salarial unificada, que abrange não só o setor estatal (administração governamental e empresas do Estado ou mistas) mas também o setor privado, pelo SNOTS (Sistema Nacional de Ordenação de Trabalho e Salários). Com a recente reforma, essa escala vai de 50 a 750 dólares, usando o câmbio oficial. Antes era bem mais comprimida, o que criava problemas para fixação dos quadros técnicos do país. A perda de técnicos e profissionais de nível superior desde a revolução de 1979 é estimada em alguns milhares, sendo que só entre os médicos 600 saíram do país. Levando em conta a população e a imobilização de quadros competentes na defesa e tarefas correlatas, a escassez de pessoal competente especializado é grande, especialmente em determinadas áreas. Há dificuldades para cumprir o SNOTS, pois nas empresas privadas há comissões percentuais pagas de acordo com a produção. Por exemplo, os garçons recebem gorjetas, incluídas nas contas, os mecânicos, gratificações percentuais de acordo com o serviço etc. Além disso permite-se o exercício privado das profissões liberais. Aí está um ponto em que sobressai a contradição da economia mista com a política salarial unificada.

Como um desdobramento da Operação Mártires da Quilali, já ao final do mês de fevereiro de 1988 foi promovida uma reestruturação da organização administrativa do Estado.

Como consequência dessa reestruturação, foram fundidos alguns ministérios: o de Transportes com o de Construções e o de Habitação; o de Comércio Exterior com o de Comércio Interior e da Indústria. Obviamente não houve tempo de se avaliar a significação dessas medidas de impacto.

O agravamento da situação econômica
A grande questão, entretanto, é a deterioração do parque produtivo do país e o estrangulamento da economia, pelas razões já expostas. A tabela 3 mostra o agravamento da situação econômica, retratado pela queda do PIB (em dólares de 1980), sistemática após 1983, pelo aumento da inflação, muito acentuado no final do período, e pelo valor das exportações, sempre abaixo das importações.

Tabela 3

Agravamento da situação econômica após 1981
(Em milhões de dólares de 1980)

ANO 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986
PIB 2.219 2.338 2.319 2.422 2.388 2.325 2.315
Taxa de crescimento(%) 4,6 5,4 -0,8 4,4 -1,4 -2,6 -0,4
Desemprego (%) 18,3 14,8 14,5 18,9 21,4 20,9 21,5
Importação (%) 35,3 23,9 24,8 31,1 35,4 219,0 657,0
Exportação 450 508 408 431 385 294 719
Importação 887 999 775 807 826 936 880
Dívida externa 2.048 2.718 3.465 4.000 4.668 5.000 5.687
Termos de Intercâmbio
(preços export./import.)
100 88 79 69 74 66 -

Fonte: Encuentro, nº 31, Agosto, 1987. (Revista da Universidade Centro-Americana)

Os prejuízos e perdas econômicas efetivas com a guerra dos contras e com o bloqueio norte-americano agravaram a crise econômica a partir de 1983/84, com o agravamento das perdas de guerra (sem contar as despesas voltadas à mobilização para a defesa).

O resultado foi uma deterioração das condições econômicas do país, que se reflete na vida da população, na queda da renda, da produção, do consumo. Colocando no nível 100 o salário médio de 1980, ele caiu para cerca de apenas 18 em 1986, considerando-se seu poder aquisitivo sem incluir os bens essenciais subsidiados; incluindo-os, esse índice sobe para 60 (CEPAL, 1986).

O problema da guerra transparece também na composição dos gastos do governo. As despesas diretas com defesa subiram de 18%, em 1983, para 35,6%, em 1985, um enorme peso para o país. Apesar disso, os gastos governamentais na área social (educação, saúde, habitação) cresceram de 19,3% (em 1983) para 23,6% (em 1985), mas às custas de uma queda de 34% para 16,3% em infra-estrutura e produção no mesmo período.

O resultado do que se fez na área social refletiu-se na redução da taxa de mortalidade infantil (de 113,2 por mil, em 1979, para 64,6 por mil, em 1986), no aumento das matrículas escolares (de menos de 0,5 milhão, em 1979, para quase 1 milhão, em 1987).

Conclusões

As dificuldades por que passa a Nicarágua são agravadas na passagem de 1987 para 1988 por uma forte crise de energia, primeiramente no abastecimento do petróleo e, logo a seguir, na geração de energia elétrica. No primeiro, o estrangulamento está na ausência de divisas para importar. No segundo caso, há falta de capacidade de investimento na construção de novas usinas para aumentar a geração e para substituir as velhas termoelétricas a óleo, embora o país tenha um potencial hidrelétrico e geotérmico ainda não aproveitado plenamente.

Mas esse bravo povo há de sair da crise política e da guerra para vencer a crise econômica, como vence os inimigos contras e os seus financiadores estrangeiros. É impressionante a habilidade política do governo sandinista, como se revelou agora esvaziando a provocação de Reagan. No justo momento em que as tropas norte-americanas desembarcadas em Honduras marchavam para a fronteira da Nicarágua, o governo chefiado por Daniel Ortega faz um armistício provisório com os contras. O preço pago para isso foi fazer concessões contestadas por setores revolucionários internamente. Entretanto, o processo democrático nica tem se mostrado capaz de superar crises e manter unidade de ação.

No momento, os contras tentam esvaziar as negociações com novas exigências: o objetivo é obter novamente apoio maciço norte-americano em dólares para os mercenários.

É fundamental apoiar a Nicarágua. Jovens têm ido em número expressivo participar das brigadas de colheita de café. Há uma presença organizada de cooperantes do Partido dos Trabalhadores, em geral profissionais que vão trabalhar na Nicarágua por algum tempo. Especialistas brasileiros também têm cooperado no plano do governo.

Há por outro lado que se considerar a experiência nicaraguense na discussão de alguns problemas políticos em pauta no Brasil como a democratização da universidade, inclusive no que diz respeito ao acesso dos alunos a ela.

Além da área acadêmica, as possibilidades de cooperação brasileira são muito grandes. Ela se dá em nível empresarial, por exemplo, na abertura de linhas de crédito para a exportação de ônibus etc., e em algumas consultarias. No campo da energia e da tecnologia a cooperação do Brasil poderia ser importante envolvendo as grandes estatais como a Petrobrás, devendo-se pressionar o governo para isso, inclusive porque a presença brasileira juntamente com outros países latino-americanos na América Central pode contribuir para o equilíbrio daquela região em face dos Estados Unidos. Nesse sentido o papel diplomático brasileiro no grupo de apoio a Contadora tem sido positivo para o encaminhamento de uma solução de paz.

Luiz Pinguelli Rosa é físico, membro do Conselho da SBPC, professor da área de energia da COPPE-UFRJ.

Este texto foi escrito com base em dados colhidos em publicações, conversas com autoridades da Nicarágua e discussões com dirigentes e professores das universidades e técnicos de órgãos do governo. As conclusões e opiniões, embora pretendam estar fundamentadas nas informações, são da responsabilidade pessoal do autor e poderão estar em discordância com as das fontes. É assumida, desde logo, uma posição simpática à revolução nicaragüense, com algumas críticas a aspectos específicos que serão discutidos.