Nacional

O espaço urbano não é apenas o lugar onde o cidadão vive, mora, trabalha. Nem só o local onde o capital obtém lucros. É, principalmente, o objeto em si da extração dos ganhos capitalistas. Apesar disso, nem sempre a questão urbana faz parte da análise da esquerda. Geralmente, é um tema secundário. Talvez, por isso, a luta urbana ainda não tem a sua teoria.

A teoria revolucionária priorizou tradicionalmente a luta operária, atribuindo um status secundário às mobilizações que não se fundamentassem na oposição capital X trabalho. Já na América Latina, em anos recentes, algumas versões sobre estratégia revolucionária privilegiaram a guerrilha rural, particularmente após o evento da revolução cubana, em 1959. Essa herança histórica certamente tem peso na determinação do desprezo que tem acompanhado o debate da questão urbana no Brasil. É preciso reconhecer que a urbanização da sociedade brasileira data de poucos anos. Em 1940, apenas 31% da população era urbana; em meados da década de 80, porém, mais de 75% da população está nas cidades, e a tendência é de continuidade desse crescimento.

O volume de recursos provenientes de toda a sociedade, captados pela renda imobiliária, é muito grande para que as análises econômicas o ignorem, como freqüentemente acontece. A extensão das lutas urbanas é muito ampla para que a questão seja remetida a plano político secundário. No PT, as lutas urbanas são confinadas no saco de gatos denominado movimentos populares (onde cabe tudo que não diz respeito às lutas operária e camponesa), condenando-as dessa forma à diluição e indefinição1. As dramáticas condições de habitação, transporte e meio ambiente não tem solução nos limites da reforma agrária e da luta por melhores salários, como pensam erroneamente muitos companheiros. Na cidade, além do capital em geral, o trabalhador enfrenta o capital imobiliário que, articulado a outros setores capitalistas (serviços públicos principalmente), orienta os investimentos públicos. A crescente submissão da terra urbana ao capital imobiliário, combinada ao arrocho salarial e a depauperação das massas (excluídas do mercado imobiliário privado e ignoradas pelas políticas públicas), conduz a situação das cidades a um impasse.

Milhares de pessoas vêm se reunindo, em milhares de movimentos em todo o país, para oferecer resistência à espoliação urbana. Insubordinam-se contra o capital (representado muitas vezes pelo Estado) também nos locais de moradia e não apenas nos locais de trabalho: num caso como no outro, está presente a tendência de controle sobre o cotidiano ou sobre o modo de vida dos trabalhadores.

Dentro dos limites deste texto, vamos esboçar algumas idéias sobre: a) como o capital se organiza para a produção e distribuição do espaço urbano, criando a carência e a segregação; b) antecedentes e características da crise de moradia que se aprofunda nos anos 80; c) a resposta popular à crise, através da proposta de reforma urbana, que fornece um programa para a unificação dos movimentos urbanos.

Luta de classes no espaço urbano

Para os trabalhadores em geral, a cidade é um local de moradia, trabalho, lazer etc. Ela é, num primeiro momento, principalmente valor de uso. Para o capital em geral (industrial e comercial) a cidade também responde a interesses genéricos: necessidade de energia, matéria-prima, circulação de mercadorias, insumos. Dependendo do estágio da luta de classes, ganham importância ainda os aspectos relativos à reprodução da força de trabalho. Mas para o capital imobiliário, especificamente, a cidade não é apenas um local para obtenção do lucro; ela é o próprio objeto da extração dos lucros, rendas e juros. Harvey distingue duas formas de capital imobiliário: o que explora a cidade para se apropriar da renda (proprietários de terras ou de imóveis, e incorporadores) e o que obtém lucro com a produção do próprio espaço urbano (construtoras e financeiras).

Há uma profunda oposição de interesses nas cidades. De um lado estão os usuários, que vêem a cidade como um local para viver e desejam de um modo geral uma moradia de melhor qualidade possível (o que inclui localização, além de dimensões, durabilidade etc.) ao preço mais baixo possível. De outro lado, o capital imobiliário, para o qual a cidade é um negócio de cuja exploração busca a máxima extração do lucro. Se dizemos que no local de trabalho o trabalhador é explorado, podemos dizer que no local de moradia ele é espoliado, sendo que há profundas imbricações entre os dois processos.

O avanço da luta popular pode acarretar o surgimento de conflitos no interior dos capitais. De um lado, o capital em geral pode se opor a ações do capital imobiliário, quando se coloca a exigência do barateamento da força de trabalho. Barateamento este, que se refere, em geral, aos custos de saúde, habitação e transporte. De outro lado, em determinados momentos históricos podem surgir contradições no interior mesmo do capital imobiliário, entre os setores chamados improdutivos (proprietários de terra, incorporadores) e os setores produtivos (financiamento, construção, materiais e equipamentos de construção). A retenção especulativa da terra urbana pode ferir os interesses do capital de construção e financiamento, a menos que este se beneficie também da renda fundiária. Fazemos aqui uma abordagem esquemática, para melhor compreensão dos interesses de cada um. Nas situações concretas podemos constatar que os bancos (financiamento) ou construtoras podem ser grandes proprietários de terra ou incorporadores, ou podem estar em alianças com esses setores.

O Estado atua, intermediando esses conflitos, por meio do direcionamento dos investimentos públicos, da fixação das regras para financiamento imobiliário, criação ou mudança de legislação etc.; políticas públicas que ora favorecem certos setores do capital, ora atendem às reivindicações dos trabalhadores, quando o seu nível de organização assim o obriga.

Habitação, uma mercadoria especial

A habitação é uma mercadoria especial, de produção e distribuição complexas. É a mais cara entre as mercadorias de consumo privado (roupas, sapatos, alimentos, móveis etc.). Nem todo mundo pode ter automóvel, também uma mercadoria cara, de consumo privado; mas todo mundo precisa morar de alguma forma, em algum lugar. Devido ao seu preço, a habitação é uma mercadoria que tem longo período de circulação; isto é, o comprador freqüentemente demora dezenas de anos para pagá-la; ela exige um capital de financiamento ao consumo. Mas não é apenas seu período de circulação que é longo. O período de produção também exige a imobilização de capital por longo prazo (um ou dois anos, em geral); em função disso, a habitação necessita de um capital de financiamento à produção. Segundo alguns autores, há outro fator central nos problemas ligados à moradia. É a sua vinculação com a terra. Cada novo edifício exige um novo solo. A casa não é uma ilha na cidade; ela é parte do espaço urbano. Este espaço foi produzido com investimento de capital e aplicação de trabalho.

A produção e a distribuição da moradia relacionam-se com os investimentos públicos feitos na cidade. A orientação desses investimentos, por meio das políticas públicas, orienta também, em parte, a valorização imobiliária e, particularmente, a valorização fundiária. Os interesses políticos envolvidos na produção da moradia e do espaço urbano, como se pode perceber, são muitos e poderosos. O crescimento urbano, aparentemente natural, tem por trás de si uma lógica que é dada pelos interesses em jogo e pelo conflito entre eles.

Há autores que ressaltam ainda a questão da construção como mais um elemento dessa complexidade. Diferentemente de outros setores industriais, a produção de edifícios no canteiro de obras mantém características de atraso tecnológico e intensa exploração de força de trabalho. A construção civil é um dos setores produtivos que paga os mais baixos salários, tem os mais altos índices de acidentes de trabalho e as mais baixas taxas de produtividade. O setor, grande empregador da força de trabalho recém-migrada, é marcado pela corrupção em sua simbiose com o aparelho de Estado.

Governo militar e política habitacional

Em 1964, com a criação do BNH (Banco Nacional de Habitação), o governo militar inicia uma nova etapa na política habitacional e de produção do espaço urbano no Brasil2. A configuração dessa política foi traçada com a criação do SFH (Sistema Financeiro de Habitação) e do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, uma espécie de fundo-desemprego), em 1967. Com essas medidas, o Estado reuniu o capital necessário ao financiamento do consumo e da produção de moradias, com base na poupança voluntária, fundamentalmente em cadernetas de poupança (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), e na poupança compulsória (FGTS). Essa capitalização possibilitou um amplo desenvolvimento do mercado imobiliário por meio da estruturação de uma rede de agentes financeiros, do fortalecimento e da expansão da incorporação imobiliária e da indústria da construção. A produção capitalista da moradia expandiu-se e, como não podia deixar de ser, atingiu o mercado de terras. Nesse processo, a terra tende a tornar-se, cada vez mais, cativa do capital imobiliário (note-se que a hipoteca do SFH se dá sobre o imóvel e não sobre o terreno).

Essa nova etapa da política habitacional e urbana significou de fato uma expansão e um aprofundamento das tendências já existentes. Mas as medidas tomadas no final dos anos 60 e no começo dos anos 70 trouxeram conseqüências muito fortes para as cidades brasileiras. Das 18.250 mil moradias construídas no país, entre 1964 e 1986, 4.400 mil foram financiadas pelo SFH — o que em números absolutos é muito significativo. E isso sem falar no SFS (Sistema de Financiamento ao Saneamento), criado em 1968 como programa do BNH, e que centralizou no Planasa (Plano Nacional de Saneamento Básico) os serviços de água e esgoto de cerca da metade dos municípios brasileiros.

Como já foi bastante difundido, o SFH se dirigia a um mercado restrito: as camadas de rendas médias e altas. Mas o responsável por praticamente 90% a 95% dos lançamentos do chamado mercado imobiliário formal, até 1982. Isto é, construía-se muito pouco com capital próprio. São razoavelmente conhecidas também as formas de que a população excluída do mercado lançou mão para se prover de habitação: a favela e o cortiço principalmente.

Ao lado desse papel estruturador e modernizador da produção do espaço urbano e habitacional, o Estado deixou praticamente intacto o estatuto jurídico da terra urbana. Afora a lei federal 6.766, de 1979, que criminaliza o loteamento irregular, nenhuma medida coibidora da retenção especulativa da terra urbana foi tomada. E este é, sem dúvida, um dos principais, senão o principal, gargalos para a crise habitacional que aflora em meados dos anos 80.

A crise habitacional dos anos 80

Embora os dados revelassem que, durante a década de 70, a população favelada crescia mais rapidamente do que o total da população urbana, embora a abertura de loteamentos irregulares fosse indiscriminada, não emergiu nesse período, no plano da opinião pública, a idéia de crise habitacional. Em 1983, entretanto, ela começa a ocupar espaço na imprensa e, em meados da década, quando a dificuldade de acesso à moradia atinge a classe média, há uma clara consciência social sobre ela.

Segundo a Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio), em 1986 os aluguéis subiram 500% em relação ao ano de 1981. A classe média começou inclusive a disputar locações que antes estavam destinadas à população de renda menor ou equivalente a cinco salários mínimos. As dificuldades que atingem a classe média têm origem na crise econômica do início dos anos 80. Com o colapso que atinge o SFH e a indisponibilidade de financiamento, de 1982 a 1986 a construção atravessa uma fase recessiva.

Além do agravamento do quadro geral, os trabalhadores de rendas mais baixas enfrentam fatores localizados que contribuem para dificultar o acesso à habitação. Enquanto existiram (e continuam existindo em muitas cidades) as alternativas da favela, do cortiço ou do loteamento irregular, a noção de crise habitacional não emergiu. Durante várias décadas, a população favelada do Rio cresceu a ponto de constituir aproximadamente l/3 do total da população urbana. Em Belo Horizonte, l/4. Em Salvador e Fortaleza, l/2. A idéia da crise não surge apenas porque as alternativas informais também diminuem.

A lei federal 6.766/79, que trata dos loteamentos irregulares ou clandestinos, se não eliminou pelo menos foi fator de diminuição sensível da abertura de novas loteamentos. Estes constituíram, durante muitos anos (acentuadamente a partir de 1940), uma alternativa importante de acesso à precária casa própria por parte dos trabalhadores de rendas mais baixas. Os efeitos retardados da lei federal 6.766/79 só vieram a agravar uma crise dada pela recessão econômica geral. Uma saída fundamental para os setores populares, o pequeno lote na periferia desurbanizada, foi fechada e nenhuma outra foi aberta.

No final dos anos 70 e início dos anos 80, a prática de invasão de terras ganha uma nova qualidade. As invasões tornam-se organizadas, massivas e multiplicam-se a cada ano. Passaram-se apenas dois anos desde a invasão da Fazenda Itupu, na zona sul da cidade de São Paulo, repelida pela polícia em 1981, aos vitoriosos Filhos da Terra, na zona norte da mesma cidade, com 700 famílias. Em abril de 87, quase 100 mil pessoas invadem grandes terrenos ociosos na zona leste do município de São Paulo. A repressão policial aos invasores por parte da Guarda Municipal resultou na morte de um trabalhador da construção civil que tentava se apossar de um pedaço de terra, mas não logrou desalojar todos os invasores.

Proposta popular de reforma urbana

Desde 1961, os lavradores e trabalhadores agrícolas, reunidos em encontro nacional, traçaram as bases da proposta de reforma agrária. A proposta de reforma urbana foi esboçada em 1963, pouco antes do golpe militar, em congresso do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil). Ela faz parte do conjunto das propostas de Reformas de Base, em torno das quais se uniram os movimentos populares e de esquerda, no período de agitações que precedeu o golpe militar. A proposta de reforma agrária resistiu e, a duras penas, foi ampliada durante o regime militar. Já a reforma urbana, cuja formulação ficou praticamente restrita a um conjunto de pessoas e entidades de profissionais, sem contar o respaldo popular, desapareceu.

Uma nova proposta de reforma urbana, elaborada em 1987, fez-se em novo cenário e com novos protagonistas. O processo de urbanização do país avançou muito e o estágio de acumulação do capital é, por sua natureza, urbano. Como lembra Francisco de Oliveira, o bóia-fria é trabalhador rural, mas morador urbano; e freqüentemente é trabalhador urbano durante meio ano. 20% da população total do país estão em duas metrópoles: São Paulo e Rio de Janeiro. As transformações ocorridas no campo com a presença do grande capital acarretam mudanças regionais, com a emergência de importantes centros urbanos de porte médio, em diversos estados brasileiros. Segundo Francisco de Oliveira, "a urbanização da economia e sociedade brasileiras nada mais é senão a extensão, a todos os recantos da vida nacional, das relações de produção capitalistas".

A nova proposta de reforma urbana surgiu nesse contexto. Surgiu também da possibilidade de apresentação de emendas de iniciativa popular à Assembléia Nacional Constituinte, ou seja, emendas com 30 mil assinaturas de eleitores de todo o país. A emenda popular de reforma urbana é uma plataforma resultante das forças sociais que participaram de sua elaboração mais que uma emenda à Constituinte. Daí sua importância. Sua formulação seria inviável se não fosse precedida de um certo acúmulo de proposições e reflexões, realizadas por entidades vinculadas às lutas urbanas: mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados etc... Profissionais de classe média, vinculados de forma mais ou menos efetiva as lutas populares, e entidades representativas de movimentos de massa, reuniram-se3.

Assinaram-na seis entidades nacionais: Articulação Nacional do Solo Urbano, Federação Nacional de Arquitetos, Federação Nacional de Engenheiros, Coordenação Nacional de Associações de Mutuários do BNH, Movimento em Defesa do Favelado e Instituto dos Arquitetos do Brasil; apoiaram-na 48 entidades estaduais ou locais.

O conteúdo da proposta, concluída após intensos e acirrados debates, pode ser resumido da seguinte maneira:

1- Sobre o direito de propriedade e uso do solo: facilidade para desapropriação de grandes propriedades ociosas (com títulos da dívida pública, pagáveis em 20 anos); coibição de lucros especulativos (imposto progressivo, imposto sobre valorização imobiliária); regularização fundiária (usucapião especial urbano, discriminação das terras públicas, concessão de direito real de uso); maior controle do uso do solo pelo Estado (urbanização compulsória, proteção urbanística e prevenção ambiental, tombamento).

2 - Política habitacional: fixação de responsabilidades do Estado na promoção pública da habitação; eliminação de agentes privados nos programas habitacionais populares; equivalência salarial nos reajustes de aluguéis e prestações da casa própria.

3 - Serviços públicos: eliminação do lucro privado na exploração dos serviços públicos; tarifas compatíveis com salário mínimo; participação dos trabalhadores dos órgãos do Estado na formulação das políticas públicas.

4 - Gestão das cidades: participação popular na elaboração de planos urbanos; iniciativa popular para apresentação de projetos e para o veto a projetos legislativos apresentados.

Esta proposta expressa um momento e um estágio da articulação das forças sociais. Daí apresentar omissões (relativas a meio ambiente, à questão municipal e regional, à reforma tributária) e imprecisões (sobre a política habitacional e de serviços públicos). Mas constitui, sem dúvida, um primeiro passo para a superação das lutas localizadas e meramente reivindicatórias, contrapondo a ordem social vigente uma outra ordem, construída com a participação democrática. A existência de uma plataforma oferece metas ao movimento, contribui para a unificação das lutas específicas e incorpora setores de massa à participação política mais geral.

Bibliografia:

BALDEZ, Miguel. "Solo urbano". FASE, Rio de Janeiro, 1986.
CNBB. "Uso do solo e ação pastoral". XX assembléia da CNBB, Itaici, 1978.
HARVEY, David. "O trabalho, o capital e o conflito de classes em torno do ambiente construído nas sociedades capitalistas avançadas" in Espaço e Debates. São Paulo, Cortez, 6; 6-35, 1982.
MARICATO, Ermínia. "Indústria da construção e política habitacional", FAU/USP, São Paulo. 1984.
OLIVEIRA, Francisco. "Acumulação monopolista, Estado e urbanização: a nova qualidade do conflito de classes" in Moisés, José Álvaro e outros. Contradições urbanas e movimentos sociais. Paz e Terra, São Paulo, 1977. (p.74)
PRESSBURGER. M. "A propriedade da terra na constituição". FASE, Rio de Janeiro, 1986.
RIBEIRO, Luís Cesar de Q. e ABREU, Haroldo. "Debatendo a Reforma Urbana". FASE, Rio de Janeiro, 1986.

Erminia Maricato é membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, assessora da Articulação Nacional do Solo Urbano.