Cultura

A indústria cultural está em expansão. Universaliza-se. Com isso, aumenta seu potencial de intervenção nas esferas políticas

"A indústria cultural defrauda continuamente os seus consumidores daquilo que
continuamente lhes promete. O sexo está constantemente presente
e constantemente se esquiva; o desejo é sempre estimulado e nunca satisfeito.
Ela promete tudo e não realiza nada, e nessa promessa inibe a crítica emancipatória. Produz objetos ambíguos, que gratificam o desejo sem gratificá-lo."

Theodor Adorno, por meio de Sérgio Paulo Rouanet

Um belo dia, um velho canastrão de filmes B da gloriosa Hollywood foi eleito presidente dos Estados Unidos. Antes, por dois mandatos, ele já governara um dos estados mais ricos daquele país, a Califórnia. Em São Paulo, depois de ter participado ativamente de muitas representações no circo da burguesia nacional, reelegeu-se prefeito o mais refinado ator brasileiro do momento. Inúmeros cidadãos elegeram-se por aqui e elegem-se em outros países, tendo como plataforma política sua nomeada, construída nos veículos de comunicação de massa.

Na Itália, a Cicciolina (fofinha) fez campanha literalmente nos peitos, mediante a exposição pública dos seios. E elegeu-se deputada. No Brasil, Afanázio Jazadi explorou - e explora - os sentimentos de insegurança e incerteza de enormes camadas da população pobre, com a mensagem do combate ao crime e morte aos criminosos, para alcançar sucesso eleitoral. O porta-voz de Tancredo Neves e o neto deste elegeram-se deputados federais com o saldo publicitário e sentimental que a morte daquele lhes trouxe. Destacados esportistas têm sido eleitos deputados e vereadores, também, regra geral, sem plataforma política e sem ligações partidárias.

Não está em questão evidentemente o legítimo direito de qualquer cidadão candidatar-se e eleger-se para qualquer cargo, independentemente de classe social, raça, cor, profissão etc. Portanto, não se faz aqui a defesa da idéia asnática da política como reserva de domínio dos políticos, como campo privilegiado de alguns cidadãos. Só a camada mais conservadora da burguesia procura generalizar esse cacoete ideológico, porque isso interessa sobretudo a ela, para manter seu domínio de classe e estrito controle sobre os poderes de Estado.

Esses rápidos mas significativos exemplos parecem demonstrar que, nos últimos anos, a abrangência e universalização da indústria cultural permitiram uma mudança de fundo no modo pelo qual ela passou a explorar seu potencial de intervenção na política. A estetização da política, que já foi constatada nas décadas de 1920 e 1930, quando surgiram os movimentos fascistas, parece agora repor-se, embora sob formas diferenciadas. Os objetivos também aparecem de modo diferenciado, muito mais emaranhados na vastíssima teia dos interesses de mercado dos grupos e classes dominantes. Desse ponto de vista, por exemplo, quando Sílvio Santos ou Pelé intervêm diretamente na política eleitoral, tornam-se casos muito mais complexos de serem deslindados pela população do que Antônio Ermírio ou o presidente de alguma associação comercial.

Parece que, de repente, a indústria cultural descobriu seu cacife político-eleitoral e, ao invés de apenas ser usada pela política, passou também a usá-la. Além dos representantes clandestinos que elege e financia para defender seus interesses, a indústria cultural passou a empregar, direta ou indiretamente, seus quadros propriamente publicitários mais notórios, para a defesa de seus interesses próximos ou não. Também não é por acaso que a imensa maioria desses quadros, eleitos e saídos diretamente da notoriedade da indústria cultural, são extremamente conservadores, defensores os mais reacionários dos piores clichês ideológicos com que ganham fortunas em seus respectivos meios de comunicação: rádio, TV, jornal etc.

Alguma história

A indústria cultural não é fenômeno recente. Ela nasceu quando tomou forma no Ocidente o mercado propriamente capitalista. Seu desenvolvimento, abrangência e universalização, como é óbvio, foram sempre dependentes de conquistas técnicas e do investimento de poderosos capitais. Certamente a palavra impressa foi a forma original, e o aparecimento de tecnologia e capitais que permitiram a edição de jornais e revistas deve ter constituído o impulso decisivo. Essa é uma história que data de pelo menos dois séculos, embora a história da impressão seja muito mais antiga, prevalecendo, anteriormente aos jornais e revistas, quase exclusivamente o livro.

Mas a palavra impressa contém exigências de composição, industrialização e consumo que fazem dela um produto de acesso relativamente difícil. A pequena e precária alfabetização das grandes massas do povo e o custo do material, além do modo especial da recepção (decifração) sempre representaram um obstáculo a que livros, jornais e revistas pudessem atingir a população do mesmo modo com que o fazem hoje o rádio e a televisão. Não obstante, desde pelo menos os inícios do século XIX, a palavra impressa foi descoberta como potencial econômico e ideológico, diferenciado da cultura popular, folclórica: "abertamente organizada por empresários da indústria do lazer; fortemente estruturada em função de um certo público-massa; e necessariamente distinta das experiências da ‘alta cultura’." (Ecléa Bosi).

A proliferação de material impresso dirigido para um público-massa representou, ao mesmo tempo, opção econômica e política. Revistas religiosas, educativas, políticas, com conselhos sobre modas e modos de vida, além de seções semelhantes nos jornais, e estes como fonte de informação sobre acontecimentos locais, regionais, nacionais e mundiais, passaram a conviver com um material ficcional, romanesco, os chamados romances-folhetins. Nestes, um herói de moralidade pequeno-burguesa e uma heroína idem, sempre monolíticos em seus valores, enfrentam todas as torpezas dos vilões e vencem todos os obstáculos, para finalmente alcançar a felicidade, através do casamento e da integração nos valores "éticos" e de mercado do capitalismo. Os conselhos, a moda, a notícia filtrada e manipulada, e tais heróis simplórios e moralistas encheram a imensa maioria dos papéis impressos para o público nos dois últimos séculos.

Ao mesmo tempo desenvolveram-se técnicas de massa em outros setores, como o teatro, a música, a pintura etc. O crescimento das cidades pela industrialização crescente e migração ofereceu o campo propício ao surgimento de um público enorme, como nunca antes visto. Era um público extremamente heterogêneo, que precisava de controles, de lazer e de integração ao mercado consumidor, a indústria cultural estava armada: passou a produzir bens culturais como mercadorias apropriáveis por baixo preço, em grande variedade, para todos os níveis sociais e gostos. Esses bens mercadorias industrializadas e não cultura em sentido próprio — passaram a conter, desde a origem, seus padrões básicos, que até hoje só fizeram se acentuar: a repetição e a coerção.

Mercado e ideologia

Mas é certo que a indústria cultural não desenvolveu suas técnicas de produção de comunicação de massa casualmente. Ao contrário, seu surgimento e desenvolvimento, desde o século passado até a abrangência e universalização que a caracterizam hoje, devem-se a profundas necessidades do próprio modo de produção do capitalismo. De um lado, o aumento da oferta de mercadorias, sua diversidade, e de outro, o seu aspecto concorrencial impuseram a publicidade dos produtos. "A propaganda é a alma do negócio", a significar que, num mercado de produtos diversificados e concorrentes entre si, o que for melhor conhecido e mais persuasivamente imposto será o de maior sucesso comercial.

Ao mesmo tempo, a indústria cultural encontrou na ideologia do liberalismo um substrato, ideal, de grande versatilidade, que lhe permitiu (e lhe permite) defender, ao mesmo tempo, os valores do progresso e da liberdade burgueses e os fundamentos mais conservadores da ordem capitalista. Foi (e é) a indústria cultural quem trocou em moeda corrente o pensamento filosófico, econômico e político da racionalidade capitalista ajudando-a a difundir-se para todas as classes sociais e defendendo-a como ordem universal. Ficou, portanto, engendrado um círculo vicioso em que, por meio da indústria cultural, é divulgada e reforçada uma racionalidade que se funda no mercado; e este, por sua vez, funda e reforça a mesma razão contida nos meios de comunicação de massas.

O moderno e o modelo

As descobertas técnicas que permitiram a industrialização do rádio e da televisão datam do século XX. O rádio começa seu percurso na década de 20; a televisão é muito mais recente, pois data de fins da década de 40. A história desses dois veículos já é demais conhecida para que a abordemos aqui. Seus efeitos ideológicos, políticos e econômicos sob o capitalismo na era dos monopólios, das multinacionais e do imperialismo moderno têm sido motivo das mais acirradas críticas e, ao mesmo tempo, de grandes confusões.

O debate sobre a indústria cultural é certamente um campo minado em que os "apocalípticos" e os "integrados" (para usar a expressão de Umberto Eco) contendem, com argumentos e exigências legítimas de ambos os lados, sem que o resultado do embate altere propriamente o problema, complexo como ele é. Cada vez mais a indústria cultural desenvolve seus recursos econômicos e suas sutilezas persuasivas de controle e coerção, expandindo-se em níveis transnacionais, atendendo principalmente aos requisitos da difusão e do reforço da racionalidade capitalista. O grande modelo dessa expansão são os meios de comunicação de massa do centro imperialista mundial: os Estados Unidos. É ali que se forja e se difunde a profunda coerência entre a produção serializada e a publicidade, entre a sedução publicitária e os programas, coerência que governa o modo de produção e de consumo de todas as zonas da televisão e... da vida cotidiana.

Pensemos um pouco a coisa brasileira, neste presente crítico e conturbado, porque contamos hoje com a quarta maior rede de televisão do mundo ocidental, a Globo, atrás apenas das três grandes redes norte-americanas. O desenvolvimento do rádio e da televisão por aqui é bastante recente, embora seu processo inicial venha dos anos 20 para o rádio e dos anos 50 para a TV. A importação maciça de tecnologia e capitais a partir dos anos 60, com a conseqüente modernização conservadora (como se diz ...), criou os meios para o estágio atual, onde praticamente toda a população do país está integrada pelos meios de comunicação de massa.

Curiosamente, a importação em larga escala dos modelos norte-americanos não destruiu completamente a preocupação da indústria cultural brasileira com os velhos padrões tradicionais da ideologia conservadora de busca do caráter nacional (e popular) e da identidade nacional. Ao contrário, parece que a rede Globo está hoje na linha de frente da afirmação das coisas autenticamente brasileiras, como ideologia da indistinção entre as divisões internas da sociedade. Praticamente nada ali deixa passar sequer o reconhecimento de que existem classes sociais em luta no Brasil, de que há opressão da minoria rica sobre o resto pobre ou menos pobre da população, de que há conflito entre interesses e valores de diferentes grupos e camadas sociais e culturais etc. A bem da verdade, a Rede Globo dá o tom e o padrão, seguidos com poucas diferenças pelos outros canais de TV e/ou rádio. Os outros têm a diferenciar-se da Globo apenas um caráter mais regional de programação, ou mais pobre, porque menos capazes de investimentos e, portanto, de diversificação dos materiais e tecnologias. Como a Rede Globo sozinha, ao que se noticia, consome de 70% a 80% de toda a verba publicitária disponível no país, ela praticamente detém um monopólio sem concorrentes razoáveis. Sua chave está em que conquistou os corações e as mentes por meio do abrasileiramento dos modelos transnacionais de sua programação. Nela tudo é nacional, exatamente porque nada o é. Sua lógica e a razão do monopólio interno são as mesmas das forças monopolistas do grande capital nacional e internacional: Mandala e Casal Vinte, Sassaricando e Dallas. De fato, MAN-DALLAS...

Monopólio estatal e liberdade

As telecomunicações no Brasil constituem legalmente monopólio da União. Compete a ela, segundo o Código Brasileiro de Telecomunicações, "explorar, diretamente ou mediante autorização ou concessão, os serviços de telecomunicações". Ela também legisla a respeito, prevendo as infrações administrativas e criminais, com as respectivas sanções. Todas as estações de rádio e TV exploradas por particulares são concessões, que podem a qualquer momento ser cassadas ou suspensas, tornando, portanto, esses veículos completamente vulneráveis às decisões do aparelho de Estado.

Na situação brasileira, de autoritarismo e coerção brutal das classes dominantes, que mandam e desmandam no aparelho de Estado, a liberdade das rádios e TVs não passa da mais irônica ilusão. Por isso mesmo, não existe no país nenhum serviço de telecomunicação de oposição aos governos. É verdade que a indústria cultural é organicamente capitalista e não poderia, portanto, voltar-se contra si mesma. Entretanto o caso brasileiro é agravado pelas identificações que existem entre governo e aparelho de Estado e destes com as classes hegemônicas. Mas, mesmo na Inglaterra, a ministra conservadora Margareth Thatcher vem desfechando ataques cada vez mais brutais contra a BBC, procurando acomodá-la à sua linha política.

Desde a origem a indústria cultural difunde uma ideologia liberal-burguesa de — progresso e liberdade, cujo coroamento se encontra no mercado capitalista. Por isso, ela nunca defende ostensivamente o totalitarismo, a tirania e a ditadura; apenas obscurece esse caráter dos governos, quando eles o têm (como obscurece a natureza da hegemonia burguesa), desde que defendam, em comum, a ordem capitalista. No entanto, certamente a indústria cultural cumpre com muito mais eficácia seu papel econômico, político e ideológico nas situações de democracia burguesa.

Fundamental, para escapar das ingenuidades da crítica ou da defesa cega da indústria cultural, é compreender que, como tudo o que circula no mercado capitalista, ela também está marcada por contradições internas. O que a indústria cultural procura a qualquer custo é disfarçar essas contradições, as suas próprias como as outras, engendrando as ilusões que ela transforma em programas, publicidade e modos de vida. A felicidade no cotidiano imediato ou no distante exótico, no lar ou nas viagens a outras terras, no trabalho conformista e persistente (o operário padrão...) ou no capital acumulado ou em acumulação, na pobreza ou na riqueza, no governo ou na oposição; enfim, qualquer matéria é transformada em pílula de felicidade possível, aqui e agora, com o espírito do happy end. O privado e o individual constituem as únicas dimensões racionais para a realização do homem, tal e qual é feita a apropriação pelo capital privado dos frutos do trabalho.

Não obstante, a função formativa e informativa que sempre foi intrínseca à indústria cultural, faz com que, ainda que filtrado e manipulado, o mundo real também passe por ela e chegue à consciência das pessoas. Aí, ainda que quase sempre como fraude, as contradições e combates da sociedade se fazem presentes. Por isso, a análise do rádio e da TV exige que se diferencie internamente os diferentes programas e seu funcionamento. Sabe-se muito bem do peso que a TV, mostrando ao vivo a barbárie que o imperialismo praticava no Vietnã, teve para a desmoralização de sua política intervencionista e contrária aos interesses do próprio povo norte-americano.

O conhecimento e o debate da indústria cultural são essenciais num partido como o PT, pois hoje ela influencia quase toda a população do país, de um modo ou de outro, consciente e inconscientemente. Exige-se que o PT, o mais breve possível, venha a ter uma política clara e radical sobre a indústria cultural e seus efeitos.

Valentim Faccioli é professor de Literatura Brasileira da USP, vice-presidente do Diretório Zonal de Vila Mariana.