Sociedade

O papa conduz sua Igreja para a direita, procura enfraquecer Dom Paulo Evaristo Arns e a Teologia da Libertação no Brasil e dá respaldo aos conservadores. Nesta exclusiva com Frei Betto, um relato transparente sobre os impasses políticos do catolicismo e revelações inéditas sobre o trabalho histórico que ele desenvolve, como cristão e dominicano, nos países socialistas.

"Não há nenhum Frei Betto no Catálogo Internacional da Ordem", ironizaram os dominicanos poloneses durante um almoço em Varsóvia, em outubro do ano passado. Eles se recusaram a hospedá-lo em protesto contra uma entrevista que ele concedera em favor do socialismo na televisão estatal. Bem-humorado, o frei que não é padre – tem apenas os votos de irmão, como uma freira – respondeu reticente: "Eu sou o único Christo que tem lá." Carlos Alberto Libânio Christo, mineiro de 44 anos, quatro de prisão (entre 1969 e 1973), intelectual do ano em 1986, dezenas de obras publicadas, não é polêmico somente dentro das fronteiras polonesas, mais delimitadas pela religião católica do que pela geografia caprichosa, que muda conforme os ventos da política internacional.

É polêmico também e principalmente no Brasil, acusado de "vedete", de "personagem ambíguo", de "voz da CNBB dentro do PT" ou de "porta-voz dos comunistas dentro da Igreja". Um homem tão sereno quanto seguro, tão envolvente quanto determinado, que orou pelo Dr. Tancredo Neves que se encontrava à morte, em São Paulo, e por Giocondo Dias, o ex-secretário-geral do PCB, com a anuência dele, pouco antes de seu falecimento, num hospital de Moscou. Um militante da causa socialista que, nos últimos dez anos, tem viajado tanto quanto viajam as idéias da Teologia da Libertação. Principalmente viajado aos países socialistas. Se alguém quer ir de Frei Betto, que fique no Brasil.

Mas foi em São Paulo, durante alguns dias do final de julho, quando se encontrava hospedado no Hotel Saint Michel, às margens da avenida São João, para escrever um catecismo em quatro volumes, que Frei Betto recebeu Teoria e Debate para conceder a entrevista cujos melhores momentos publicamos aqui.

A Igreja não está cada vez mais conservadora?
Em nível internacional, há na Igreja Católica quatro tendências. A primeira, acentuadamente conservadora, quer restaurar a tradição. Seria encarnada por Monsenhor Lefèbvre. Outra expressão é a TFP (Tradição, Família e Propriedade), de origem brasileira, que hoje se encontra em praticamente todos os continentes. A TFP conta com uma rede muito bem organizada nos EUA, cujo dirigente é o filho do senador Fragelli, e tem a adesão de dois petroleiros texanos, que contribuem cada um, anualmente, com um milhão de dólares. Estive na Ilha de Malta, no Mediterrâneo, em janeiro deste ano, e a minha grande surpresa foi, ao entrar na Universidade, para pronunciar uma palestra sobre cristianismo e socialismo, deparar-me com cartazes escritos, em inglês e maltês, "Viva Frei Lenin" e com um panfleto que reproduzia a foto da noite sandinista na PUC de São Paulo, na qual apareço ao lado do padre Miguel D'Escoto, ministro das Relações Exteriores da Nicarágua. Essa foto foi divulgada no Brasil pela TFP. Esta é uma tendência de restauração do passado, quando havia uma predominância não só cultural, mas também política da Igreja sobre a sociedade civil. Uma segunda tendência é neoconservadora; aceita que cabe ao Estado a direção dos corpos e à Igreja a direção das almas. Ou seja, as questões políticas e administrativas são tarefas do Estado.

Quem representaria essa tendência?
Na América Latina, o CELAM, o Conselho Episcopal Latino Americano, e bispos como D. Eugênio Sales, D. Boaventura Kloppenburg, muitos movimentos como a Opus Dei e os carismáticos. Uma terceira tendência, modernizante, caracteriza-se pelo fato de citar a imposição da modernidade. Até século passado, as pessoas estavam entradas na razão de viver, naquilo que diz respeito ao sentido da vida. E, a partir do século passado, as pessoas estão centradas na questão da produção e do consumo. Ou seja, tudo o mais é relegado à esfera do privado.

Essas três tendências concordariam em atuar na ordem capitalista?
Sim. Esta terceira tendência é a da privatização da fé, daqueles que querem esvaziar a fé da sua dimensão social e política e centrá-la no litúrgico, no espiritual. Por exemplo, a política do Vaticano, hoje, transita entre a segunda e a terceira tendências.

E a quarta?
A quarta tendência é a libertadora, da Teologia da Libertação, das Comunidades Eclesiais de Base, de D. Arns, dos cristãos da Nicarágua, que buscam unificar, encarnar a fé dentro de tudo aquilo que diz respeito ao ser humano: política, família, sexualidade, o lúdico, o esportivo... Não coloca a fé em uma esfera separada. A fé tem que ser como um fermento que trabalha, que mexe e transforma toda essa massa. Hoje, a política do Vaticano privilegia, na Igreja Universal, a tendência neoconservadora e a tendência modernizante.

E o que quer o Papa no âmbito mundial?
Quer homogeneizar a Igreja. Nesse desafio, dois países trazem mais problemas: a Igreja dos EUA, devido a seu avanço na moral pessoal, e a Igreja do Brasil, por causa de sua postura perante a moral social. Em tese, seria fácil para o Vaticano repetir nesses dois países o que fez com a Igreja da Holanda, há uns quinze anos, quando era uma das Igrejas mais avançadas da Europa. O Vaticano trocou todos os bispos holandeses, que são poucos porque o país é pequeno, por bispos acentuadamente conservadores. Mas o complicador no caso dessas duas Igrejas é que a dos EUA tem o que Roma mais procura: dinheiro. E a Igreja do Brasil tem o que Roma mais espera: apoio popular. Por outro lado, são duas Igrejas com grande número de bispos. A do Brasil está com cerca de 350 bispos, atualmente. 90% dos novos bispos brasileiros vêm de formação conservadora. Isso não quer dizer que todos os conservadores correspondam a essa expectativa de Roma. Há exceções: bispos que foram nomeados como conservadores e depois passaram a ter um desempenho muito positivo, na linha de opção pelos pobres, em favor das classes populares. A ponto de um anúncio ter dito: "em matéria de bispos, tenho me equivocado. Mas, em matéria de arcebispos, não me equivocarei".

Mas não é do Concílio Vaticano 2º a opção pelos pobres?
O Vaticano 2º é o grande osso atravessado na garganta romana, hoje. Como digerir isso? Ao mesmo tempo, não se pode anular o Concilio. Mas, o Concílio, sem dúvida nenhuma, deu a nós, da Igreja identificada com as causas populares, fundamentos imprescindíveis e irrespondíveis do ponto de vista teológico.

A excomunhão do Lefèbvre e dos seguidores dele, até mesmo do bispo brasileiro Castro Maia, da TFP, não seria uma vitória do Concílio Vaticano 2º?
Sem dúvida nenhuma é uma vitória do Concilio Vaticano 2º. É o perigo de se ferirem as normas. Só o papa pode nomear bispos. Nenhum arcebispo pode fazê-lo. Mas não é o primeiro cisma dos últimos cem anos, como disse a imprensa. Falta de informação jornalística. No Brasil, há um caso clássico de cisma, o do bispo de Maura. Bispo que rompeu, nomeou outros bispos e tudo, fundando a Igreja Católica Brasileira.

Ele foi excomungado?
Foi. O problema é que vivemos uma cultura eurocentrista. Se a discussão for internacional, tudo o que se passa na Europa é mais importante do que o que se passa no Vale de Taubaté ou em Belo Horizonte.

O que parece é que essa excomunhão promoveria uma espécie de depuração.
Não. Aí é que me preocupo quando, em resposta a Lefèbvre, vejo o bispo de Paris celebrar em Notre Dame missa em latim. Quer dizer, vamos mostrar aos nossos fiéis que também somos guardiães da tradição...

Se a linha do papa é dar uma no cravo e outra na ferradura, aqui no Brasil ele tem martelado mais uma posição só. Com exceção desse Castro Maia aí, não se percebe nenhuma restrição em relação às tendências ultraconservadoras, que atuam aqui no Brasil e na América Latina. Pelo contrário, os teólogos mais progressistas - o caso dos irmãos Boff tiveram problemas seriíssimos.
Eu chamaria a atenção para dois pontos. O primeiro, é que não podemos analisar a Igreja considerando-a uma sociedade de anjos, que paira sobre a luta de classes, como se fosse uma instituição acima das contradições que existem na sociedade. Freqüentemente, em análises de autores marxistas, me deparo com um enfoque idealista da Igreja. Ela é pensada sob um olhar conspirativo, como se fosse dotada de um cérebro maligno, capaz de prever estratégica e taticamente cada passo das suas ambições de ocupação do poder. A ponto de um teórico marxista brasileiro, cujo nome não vou citar (vou citar o pecado, não o pecador), dizer que a Igreja se aproximou dos pobres porque ela sempre foi capaz de ter essa sensibilidade pelas classes sociais emergentes, no caso agora o proletariado. Acontece que o raciocínio dialético me diz que não é bem assim. A Igreja é um saco de contradições como toda instituição social: a universidade, a família, de cada um de nós etc. Um segundo fator é que durante a ditadura, a Igreja Católica no Brasil ocupou um papel quase que de atriz de destaque no palco social. Ela fez o papel do partido político que não podia existir naquele momento. Teve papel preponderante nas denúncias dos crimes da ditadura militar, na defesa dos presos políticos, no atendimento das famílias, na luta pela anistia, sobretudo no incremento do movimento popular, por meio da grande rede de Comunidades Eclesiais de Base. Não só isso. São raros os dirigentes de movimentos populares, sindicais e políticos, de extração popular, hoje no Brasil, que não tenham vindo de um trabalho da Igreja. Não é mérito da Igreja; isso é conjuntura. Ela serviu, bem ou mal, de escola política.

O palco social agora tem muitos atores e atrizes. Evidentemente, a Igreja Católica já não aparece de vedete. Mas existe, sem dúvida, uma estratégia do Vaticano para mudar o perfil da Igreja brasileira por meio da nomeação de bispos de centro-direita. Isso assusta a CNBB, que ainda consegue assegurar uma hegemonia progressista na direção da Igreja do Brasil. Basta ver as Campanhas da Fraternidade (que este ano levanta o problema do preconceito racial contra os negros), que considero importantes. Podiam escolher temas inócuos, mas não. No ano que vem vamos discutir os meios de comunicação. Em 1990, a questão da mulher.

Mas a Igreja não está perdendo a base popular?
Olha, perdendo no sentido de decepção, de ruptura, não. E se ela perder base por isso, aí não tem volta.

E o outro lado da moeda, que é a proliferação dessas Igrejas eletrônicas?
Aí entra uma questão seriíssima. Quando o Reagan tomou posse do mandato, convocou uma reunião de assessores na cidade de Santa Fé, nos Estados Unidos, onde se traçaram as linhas gerais da sua política externa. O documento elaborado diz explicitamente: "mais perigosa aos interesses norte-americanos na América Latina do que os partidos comunistas é a Teologia da Libertação". Aí começa uma ofensiva, uma inversão de recursos humanos e financeiros de setores da direita americana na formação da Igreja eletrônica, para fazer frente à ofensiva da Teologia da Libertação, encarnada mais diretamente no êxito da Revolução Sandinista.

No caso do Brasil, é impressionante o volume de dinheiro. Calcula-se que estão mobilizando por dia cerca de 12 milhões de dólares. 12 milhões de dólares por dia! Muitas das Igrejas, como a Igreja do Reino de Deus, ou muitas dessas seitas que não chegam a ser Igrejas institucionalmente formadas, exigem o dízimo em dólares! E as pessoas, não encontrando respostas na realidade, buscam nesse caso a fantasia. E quanto mais transcendentalistas, maior o êxito. Agora surge também a versão católica da Igreja eletrônica para fazer frente à versão protestante, à Teologia da Libertação e às Comunidades Eclesiais de Base: é o projeto Lumem 2000, patrocinado por uma organização católica de extrema direita da Holanda, chamada Testemunhas do Amor de Deus. O grande financiador disso é proprietário de uma grande rede européia de turismo. São 400 milhões de dólares só para o Terceiro Mundo. Umas das primeiras iniciativas deles é organizar, agora em setembro, um retiro para 4 mil sacerdotes do mundo inteiro, em Roma. Todos os padres do Terceiro Mundo terão passagens pagas de ida e volta. Como sede, compraram o Palácio Belvedere em Roma, na cidade do Vaticano. Todo o organograma de trabalho, de evangelização, usa os meios mais sofisticados, como vídeos, cinema, satélite. E se apresentam não como um movimento, mas como assessoria pastoral. Quando um bispo tiver qualquer dificuldade de fazer qualquer tipo de movimento, pode chamar o Lumem 2000 que eles virão.

E a censura? A Igreja apoiou a censura do filme Je Vous Salue Marie aqui no Brasil. Isso não a enfraquece?
A Igreja tem uma dificuldade ontológica de trabalhar a moral pessoal. Não se encontra na discussão do aborto na Constituinte quase nada produzido por gente da Igreja. O meu texto, que eu saiba, foi o único produzido por uma pessoa que está dentro da estrutura da Igreja. Apesar das deficiências do meu texto (a mais grave, o fato dele ter sido escrito por um homem e não por uma mulher) me parece uma contribuição para, pelo menos, desbloquear a questão. E, no entanto, o assunto continua tabu. Sem dúvida alguma, foi um erro de pessoas da Igreja terem favorecido a censura do Je Vous Salue Marie. Mas é o único caso nos últimos anos e, assim mesmo, não foi uma decisão oficial da CNBB. A direção da CNBB estava de férias, alguém do Ministério da Justiça foi à CNBB e conseguiu envolver um ou dois assessores que andavam por ali com o aval de que o filme deveria ser censurado. Assisti ao filme, achei chatíssimo. Fiquei olhando o relógio para ver a hora que terminava; mas, se eu fosse bispo, obrigaria a passar em todas as aulas de catequese da minha diocese. Nunca vi obra tão minuciosamente respeitosa em relação ao dogma da virgindade de Maria, no sentido mais tradicional. Mas acho que o problema é mais sério. Muitas vezes me pergunto se a visão que a Igreja tem da mulher não é, no fundo, pornográfica.

Agora, voltando a São Paulo, a estratégia de Roma...
Nessa estratégia de Roma para desmobilizar o caráter progressista da Igreja no Brasil, a sua identificação com as classes populares, entraria a divisão da arquidiocese de São Paulo, fazendo com que o atual arcebispo, D. Paulo Evaristo Arns, ficasse responsável pelas áreas do centro - onde há menos contingentes de classes populares - e reservando as grandes áreas de periferia a novos bispos, certamente conservadores. Desmobilizaria, assim, o trabalho excelente de homens como D. Angélico, e todos esses bispos que têm trabalhado em comunhão com D. Paulo.

E fragmentando o poder?
Fragmentando o poder. Porém, o papa teria ficado muito impressionado quando D. Paulo lhe comunicou a reação negativa que houve a essa idéia, junto ao clero e junto às comunidades de São Paulo. Já o preocupou a reação com o caso Boff. Havia um documento encaminhado ao Tribunal de Haya contra a sanção a D. Leonardo Boff, que foi encabeçada pelo dr. Hélio Bicudo. Tudo isso assustou um pouco e fez com que Roma retrocedesse no caso do Leonardo. É preciso lembrar, também, que o Estado brasileiro, aos olhos de Roma, é um pouco mais conservador do que Roma gostaria. Isso foi comprovado na famosa viagem do Sarney a Roma, em julho do ano passado, quando ele foi pedir ao papa que desse um puxão de orelha na CNBB que defendia a reforma agrária, e o papa não só deu um puxão no Sarney como, rompendo o protocolo, ao sair da audiência privada, fez questão de chamar os jornalistas e repetir, como nós vimos na televisão: "olhe, eu disse ao presidente que no Brasil só haverá democracia se houver reforma agrária". Foi uma derrota política, diplomática, terrível para o Sarney, que voltou de cabeça baixa, e reforçou a posição da CNBB.

Esse foi um fato político que marcou o distanciamento oficial entre o Estado e a CNBB, além da ofensa que o ministro Brossard fez a D. Luciano, presidente da CNBB. A nomeação de D. Luciano para Mariana é parte da estratégia de desmobilizar, enfraquecer a Igreja de São Paulo e, por outro lado, é uma faca de dois gumes, porque o promoveu a arcebispo e nada pode removê-lo da presidência da CNBB; e mais: deu a Minas, que tem um dos episcopados mais fortes, tradicionais do Brasil, uma cabeça lúcida. Agora termina aquela coisa monolítica, aquela tendência conservadora de Minas, porque existe lá um arcebispo que é um sujeito aberto, muito mais hábil que todos os demais.

Não existe mais o chamado exílio eclesiástico como na antiguidade, em que você nomeava o bispo para o centro da África e ele ficava lá, perdido. Não, hoje há bispos de grande ressonância no país e na América Latina e cujas cidades só vieram a ter telefone há menos de três anos. É o caso de Pedro Casaldáliga, em São Félix do Araguaia. O fato de o bispo morar em caixa-prego não significa, necessariamente, que ele não tenha mais o poder de expressão. Mas é verdade que há tendência de convivência com o Estado. E a nomeação dos novos cardeais vem reforçar essa tendência. Antes, tínhamos dois a um, agora temos três a dois contra a pastoral popular. São três cardeais com tendências conservadoras: D. Falcão, de Brasília, D. Lucas, de Salvador, e D. Eugênio, no Rio. E, do nosso lado, D. Paulo, de São Paulo, e D. Aloysio, de Fortaleza. Por outro lado, a CNBB às vezes me parece continuar a se assumir como partido político.

Primeiro, por não valorizar as atuais forças partidárias. Valoriza o desempenho individual de alguns políticos cristãos. Segundo, por ter querido correr em faixa própria no que diz respeito às propostas da Constituinte. A meu ver, foi uma grande falha da CNBB não se ter unificado às entidades e organismos que apresentaram, junto à Constituinte, reivindicações muito similares no que diz respeito à reforma agrária, aos direitos do cidadão, ao problema do menor e tantos outros. Em terceiro lugar, o que é mais grave, é essa total falta de assessorias, do ponto de vista científico-ideológico, no que diz respeito aos temas e tabus como aborto, família e escola particular. E nisso a contribuição da Igreja em nada faz avançar. Ao contrário, a essa altura dos tempos faz retroceder. Os leigos devem assumir a palavra oficial da Igreja em relação ao universo da política e não os bispos. Deveria falar o Conselho Nacional de Leigos.

O fato de um assessor especial de D. Paulo, o Chico Whitaker, sair candidato a vereador por São Paulo pelo PT já não significa uma abertura nesse sentido?
Não. Porque nunca houve nada que impedisse nenhum dos leigos vinculados à Igreja de sair candidato a qualquer cargo político. Pelo contrário, os documentos da Igreja trazem todo tipo de incentivo. O grande desafio é a pessoa candidata, sendo e eleita, continuar com o apoio e incentivo de membros da Igreja. Muitos se sentem rejeitados, como se a Igreja, traindo esse seu papel de partido político inconsciente, dissesse: agora ele é do outro partido, não é mais do nosso.

E a Pastoral Operária, que já teve um papel muito grande no movimento sindical? Hoje, principalmente no município de São Paulo, ela se encontra bastante retraída. E, curiosamente, seus principais líderes aqui acabaram sendo candidatos e, nas últimas eleições, foram fragorosamente derrotados.
Primeiro, tenho informações muito seguras de que nunca a Pastoral Operária cresceu tanto como hoje, em termos nacionais. No Estado de São Paulo, o que houve é que um núcleo da Pastoral Operária foi cada vez mais se identificando com as propostas da Oposição Sindical; do Momsp (Movimento da Oposição Metalúrgica de São Paulo) e hoje, também do PPS (Poder Popular Socialista, tendência do PT). E que continua atuando por meio de forças políticas. Não creio assim que a Pastoral Operária tenha se descaracterizado em São Paulo. O que vejo é que fizeram uma opção por uma linha, por uma trajetória política que não é exatamente a que eu consideraria a mais indicada, mas respeito a opção deles. Acho que são tributários de duas grandes linhas que existem nas bases de nossa Igreja. De um lado, o basismo, aqueles que acham que a mudança da sociedade virá sem a hegemonia direcional de um partido político; quem sabe por meio do movimento popular, quem sabe do movimento sindical... O outro desvio é o messianismo. Aqueles que acham que a revolução vai vir depois de amanhã, que a gente não pode perder tempo, que não resta nada a fazer, a não ser apressar a ocupação dos espaços de poder para que a revolução nos pegue no comando de mecanismos que favoreçam a ascensão do poder popular. Acho que nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Nem acredito que o basismo possa apresentar hoje uma contribuição ao avanço das lutas populares e, muito menos, o messianismo. Porque não vejo nenhuma condição para que em nosso país haja revolução nos próximos trinta ou quarenta anos. Não que eu não queira. Pelo contrário, a minha vida toda tenho lutado por isso. Mas temos hoje que ousar pensar um projeto para o Brasil que não trabalhe com a hipótese de uma revolução imediata.

Falemos dos países socialistas. Como você os vê enfrentando o impacto da modernidade?
O problema é que 70 anos depois, o socialismo na União Soviética descobriu o que o socialismo cubano, 30 anos depois, também descobriu. O marxismo não tem receitas para a questão essencial da construção do socialismo: a questão da subjetividade humana. Marx, nesse sentido, foi muito mais realista do que se pensa, porque dizia que, ainda no socialismo, as relações de trabalho continuariam nos estreitos limites do direito burguês. O que ele queria dizer com isso? Que ainda no socialismo você teria que dar estímulos materiais ou funcionais ao trabalhador para que ele produzisse. Porque é uma ingenuidade pensar que, pelo fato de entrar na sociedade socialista, ele vai ter uma mística de trabalho com um superego coletivo brilhando na cabeça dele e movendo todas as suas energias. Isso não ocorre. Na verdade, o cara em Moscou quer sair o quanto mais cedo possível da fábrica para casa, porque vai fazer pequenos serviços que darão a ele, por semana, o que ele ganha na fábrica por mês. Na verdade, em Cuba há o cara da cooperativa que colheu 500 toneladas e mente para o Comitê Central, dizendo que colheu mil, porque quer ganhar medalha de Herói do Trabalho, ou a professora que sabe que se tiver 10% de alunos reprovados cai o índice de avaliação profissional dela. Então, ela aprova incompetentes. Estou citando alguns pequenos exemplos para mostrar que o mero mecanismo econômico no socialismo, embora resolva os problemas fundamentais, que são o problema da sobrevivência, do emprego, da alimentação, não é suficiente para resolver o problema subjetivo, hoje enfrentado pela perestroika soviética e pela retificação cubana. A perestroika soviética é muito diferente da cubana. Vai pela reordenação dos mecanismos econômicos: incremento material da produtividade individual. Agora, que tipo de problemas trará, como a emergência de novas desigualdades sociais, não sei. A opção cubana é mais na linha da subjetividade. Uma nova ressurreição da figura do Che, para realimentar os valores subjetivos colocados na ordem do dia da discussão política.

Isso aí não pode dar uma degeneração do tipo "homem de mármore", de erigir um herói simbólico, um modelo?
É claro que as duas opções têm riscos. Acontece que a figura do Che não é uma figura imposta pelo Estado. É uma figura que nasceu com a Revolução Cubana e muito venerada não só pelos cubanos, mas por todos nós da América Latina. Acho até que o fato de os cubanos retomarem a figura de um argentino, de um internacionalista como o Che, significa buscar aquilo que tem raiz na consciência popular.

Agora conte melhor como aconteceu este trabalho internacional que você está desenvolvendo?
O trabalho nos países socialistas começou pela Nicarágua. Desde setembro de 79, dois meses após a revolução, os padres que participam do governo da Nicarágua me convidaram para ajudar as Comunidades de Base, refletindo com elas a vinculação entre fé e política. Desenvolvi um trabalho periódico, que durou até 86; ia pra lá duas ou três vezes por ano. No primeiro aniversário da Revolução Sandinista os convidados oficiais do Brasil foram o D. Paulo Evaristo Arns, que não pôde comparecer, o Lula e eu. Ficamos juntos no Hotel Intercontinental de Manágua, a pedido da Frente Sandinista que, por razões de segurança, queria manter todos os convidados oficiais reunidos num mesmo lugar. Era dia 19 de julho, o padre D'Escoto me disse, de manhã, na cerimônia pública, que de noite ele queria falar comigo e que me mantivesse no hotel, pois ele iria me apanhar. Perguntei se o Lula também poderia ir. Ele falou, "tudo bem, vocês dois". À noite, nos levou para a casa do Sérgio Ramirez, que é o vice-presidente da Nicarágua. Havia uma série de pessoas e eu notei, pelo excesso de seguranças, que o Fidel ia estar naquela casa. E, aí, conversamos muito sobre a situação da Igreja na América Latina e em Cuba. Desse nosso primeiro contato nasceu o convite para ir a Cuba. Só que naquela época eu já tinha um trabalho na Nicarágua. Vivíamos sob ditadura militar no Brasil: eu já estava muito queimado. Não achei conveniente uma viagem a Cuba. A oportunidade só apareceu em setembro de 81, no Primeiro Congresso de Intelectuais pela Soberania de Nossa América, promovido pela Casa das Américas. Fui convidado, à margem do Congresso, por três setores do Partido Comunista Cubano interessados em estudar, em aprofundar a discussão sobre religião e Igreja na América Latina. Eles me perguntaram se eu estava disposto a retomar a Cuba outras vezes para prosseguir essa discussão. Eu disse que sim, desde que os bispos de Cuba estivessem de acordo. Como sou um homem da Igreja não gostaria de fazer uma coisa por conta própria. Falei com o núncio e com o presidente da Conferência Episcopal de Cuba e os dois concordaram. Comecei a ir a Cuba, numa média de três vezes ao ano: em 81, ainda voltei em dezembro, 82, 83, 84. Ficava no Convento dos Dominicanos, em Havana, e tive oportunidade também de entrar em contato com famílias e pessoas que são muito críticas da Revolução Cubana. E sempre muito bem acolhido pelos companheiros do Partido.

E como surgiu o livro Fidel e a Religião?
Em fevereiro de 85, fui chamado a um encontro com Fidel Castro. Tivemos um encontro num domingo, de duas horas. No dia seguinte o secretário particular dele me convidou para jantar. Era uma segunda-feira e eu deveria partir às sete horas da manhã de terça, para o Brasil. Quando o jantar estava terminando, por volta de meia-noite, Fidel chegou. Sentamos na sala e começamos a dialogar sobre religião, Revolução Cubana, América Latina e a conversa terminou às 6 da manhã. No fim, surpreso com tudo aquilo que Fidel havia contado, perguntei: "Comandante, o senhor estaria disposto a repetir tudo isso em uma entrevista?" Ele falou: "sim", e marcamos a entrevista para maio. Quando voltei em maio, levei o Joelmir Beting, que eu sugerira ao Fidel que convidasse, porque ele estava interessado na questão da economia brasileira e eu não me sentia capaz de responder. O Joelmir ocupou a primeira semana porque ele tinha que sair de Cuba com destino à Alemanha. Quando pretendi iniciar a minha parte com Fidel, a rádio José Marti foi inaugurada em Miami. Então o Fidel me chamou e falou: "Olha Betto, lamento muito, mas vamos ter que adiar a entrevista". Tive uma intuição: era ou naquele momento ou nunca. Eu me senti como no Velho e o Mar, do Hemingway, pescando um peixe enorme. "Eu não me preparei, pretendia ler a Teologia da Libertação", ele disse. Eu havia deixado com ele um livro de Gustavo Gutierrez. Falei: "olha, comandante, não tem a menor importância". Aí, ele se vira para mim, diante daquela minha insistência e fala: "Mas que perguntas você gostaria de me fazer?". Eu já tinha preparado uma lista de 64 perguntas. Tirei a lista do bolso e li as cinco primeiras. Ele então disse: "hoje à noite começamos". Acho que ele esperava, talvez, que eu fosse fazer uma entrevista teórica, e as minhas perguntas partiam do vivencial. Tenho a impressão de que foi isto que o dispôs a iniciar, naquela noite, as 23 horas de entrevista que tivemos. E, pela primeira vez, ele fez um relato autobiográfico. Pela primeira e única vez, porque, agora, no livro de Gianni Mináx, Fidel desmente o Tad Szulc, que publicou o livro Fidel - um retrato crítico, dizendo que realmente ele não deu nenhuma entrevista, para efeitos de publicação, ao Tad Szuylc e que esse senhor se valeu da hospitalidade cubana inclusive para, de dentro de Cuba, entrar em contato com agentes da CIA. E confirma a minha versão de que o Tad Szulc, na falta de entrevista com Fidel, plagiou o Fidel e a religião.

Fidel e a Religião virou bestseller...
Foi publicado primeiro no Brasil, em outubro de 1985 e já vendeu 120.000 exemplares, e depois em Havana, em dezembro. O livro vendeu, em Cuba, um milhão e trezentos mil exemplares, até hoje. É o livro mais vendido na história do país, superando o Diário de Che. Excetuando essa nova edição ampliada que vai sair nos próximos dias, o Diário de Che até então tinha vendido um milhão de exemplares em Cuba. Fidel e a Religião já está traduzido em 19 línguas e editado em 26 países. Foram vendidos cerca de dois milhões de exemplares em todo o mundo. Foi feita uma peça de teatro sobre o livro na Suíça-alemã, que foi considerada o principal espetáculo teatral de lá em 1987. Chama-se Conversações à noite com Fidel. Estive na estréia e já houve cerca de 50 apresentações na Suíça, Alemanha e Áustria.

E a Igreja e o Papa como reagiram?
A igreja e os bispos, em Cuba, consideraram o livro positivo, pelo efeito político que ele teve no trabalho da Igreja. A partir do livro, maior número de pessoas passaram a frequentar as igrejas cubanas. O Papa leu o livro e fez duas observações: "O livro é bom porque é a primeira vez que um dirigente comunista no poder reconhece que a religião não é o ópio do povo" e "ajuda a Igreja, em Cuba".

Isso é textual do Papa? Ele declarou isso por escrito?
Não. Declarou em reuniões com bispos e dois bispos, de dois países diferentes, me passaram a mesma versão.

Bom, aí sua entrevista teve essa repercussão relâmpago?
Aí teve essa repercussão. Provocou muita discussão nos países comunistas e comecei a ser convidado por governos e Igrejas de países socialistas que me colocam o seguinte: "pensávamos que, com o avanço do socialismo, o problema religioso desapareceria. Constatamos que não desapareceu. Agora precisamos ter outra atitude no tratamento dessa questão. No entanto, reconhecemos que precisamos ter uma certa assessoria e confiamos na Teologia da Libertação pela credibilidade, pelo compromisso dela com a luta pela justiça e também pelo fato dela dominar as categorias marxistas". Da parte das Igrejas, a mesma coisa. Eles dizem "estamos interessados não mais em ser uma Igreja anticomunista, uma Igreja de enfrentamento, mas uma Igreja inserida no socialismo. E, já que vocês estão com uma credibilidade junto aos nossos governos, quem sabe vocês podem nos ajudar aqui". Comecei uma série de viagens e já, a essa altura, nos últimos três anos, estive quatro vezes na União Soviética, duas vezes na Polônia, uma vez na República Democrática Alemã, uma na Tchecoslováquia. Agora em outubro irei à China, e, no ano que vem, volto à RDA, vou à Hungria, volto à Tchecoslováquia e há convites para ir à Iugoslávia e Vietnã.

E o nível dos encontros que você tem é com governantes e com dirigentes da Igreja?
É, em geral, com o setor do partido que cuida da questão religiosa. e com autoridades religiosas.

E é gente do partido que vai à missa, ou não?
Não, é gente do partido que é comunista ateu e não vai à missa, mas que tem como tarefa dominar o tema da religião. E tenho contato também com bispos, com párocos, com movimentos cristãos.

Uma pergunta entre parênteses: quando você vai para esses lugares, esse tipo de encontro predominantemente político, você se preocupa em, pelo menos, ter o domingo, estar na missa? Você consegue?
Sempre fico muito atento às referências dos valores espirituais e culturais dos meus anfitriões. Sei que, por exemplo, se no Brasil, hoje, não vou à missa um domingo, isso não constitui escândalo para ninguém. Mas, se deixo de ir à missa em Cuba, num domingo, os próprios companheiros que trabalham no Partido Comunista não vão entender. Porque várias vezes eles citam, quando eles fazem críticas ao passado da Igreja: "fulano posava de muito católico, mas nem à missa de domingo ia". Claro que para mim esse não é o critério. Daí o problema que se criou na Polônia: todos os padres e seminaristas andam de batina ou hábito na rua. Acontece que eu fui à televisão de hábito e dei entrevista favorável, não à Polônia, mas ao socialismo, dizendo que o socialismo tem valores que se aproximam mais do Evangelho que o capitalismo. O que irritou os religiosos poloneses, que são muito conservadores, foi o fato de eu estar de hábito, porque isso me dava uma legitimidade aos olhos da opinião pública que eles não podiam retirar.

E essa notícia recente sobre o tratamento frio que os dominicanos na Polônia teriam dispensado a você, é exatamente em função dessa entrevista?
É. Exatamente dessa entrevista, mas já é uma questão anterior, porque sempre faço questão, quando vou a países socialistas, de ficar hospedado na Igreja. Algumas vezes encontro incompreensão, rejeição. Já estou acostumado. E confesso que muitas vezes encontro maior acolhimento por parte dos comunistas. E os dominicanos me disseram que não me acolheriam no Convento de Varsóvia. Então, fui para o hotel. Eles me receberam só para almoço e missa de domingo. Escreveram depois uma nota me desabonando, no principal jornal católico da Polônia e no Boletim Internacional da Ordem Dominicana, dizendo que eu tinha tido o privilégio de dar uma entrevista na TV Estatal, para a qual nenhum católico polonês jamais fora convidado, e que eu tinha dito que o socialismo polonês - não falei do polonês estava mais próximo do Evangelho que o capitalismo e que isso era absurdo, que eu não conhecia a situação da Polônia, que eu tinha me deixado manipular pelos comunistas, essas coisas. Nunca me defendo de ataques pessoais seguindo um conselho que Tristão de Athayde me deu. Quem está num tipo de atividade polêmica, como estou, produz em torno de si várias hermenêuticas. Agora, nesse caso específico da Polônia, como se tratou do Boletim Internacional da Ordem, os meus superiores do Brasil pediram que eu desse uma resposta. Fiz uma resposta.

Esse incidente foi em outubro do ano passado?
Foi. Só foi divulgado no Brasil no primeiro semestre deste ano.

Em Cuba você doou seus direitos autorais ao país, me parece que na Polônia você tem direito autoral pelos seus 50.000 livros vendidos. Como aconteceu lá?
Quando fui lá pela primeira vez, em janeiro de 86, no Congresso da Paz, já sabia que o livro estava sendo traduzido por ordem do gal. Jaruzelski. O cardeal Glemp, sabendo que o Papa tinha uma visão positiva do livro e que a edição seria feita pelo governo polaco, especificamente do Editorial das Forças Armadas, teria procurado o general e propôs que o livro saísse pelo Pax, que é uma ponte entre Estado e Igreja, como de fato saiu. Ganhei em slot, que é a moeda polaca, cerca de 15 mil dólares. Na verdade, em muitas das edições dos livros não há nenhum pagamento, como no caso do Vietnã, do Sri Lanka, índia, ou há um pagamento meramente simbólico: 100 dólares, 200 dólares. E há pagamentos em moeda nacional não conversível, que é o caso da Polônia. Tenho o dinheiro depositado no Banco de Varsóvia, só que não posso fazer nada com ele, a não ser gastos pessoais. Não posso sequer comprar alguma coisa dentro da Polônia e trazer para fora. A não ser gastos internos: posso ir a um restaurante, pagar hotel, comprar bilhetes para andar de avião, isso sim. Então, nessa segunda vez, resolvi fazer uma visita ao Lech Walesa, em Gdanski. Eu mesmo paguei a viagem.

Como foi esse encontro?
É evidente que não seriam os companheiros lá do partido que iriam promover esse encontro. Eu mesmo telefonei para a casa dele de Varsóvia. Tivemos um encontro na casa do capelão do Solidariedade, durante um almoço, com ele cercado de vários assessores. Ele havia lido o livro, mas foi um diálogo muito tenso, de três horas. Ele fazia dois discursos: um político-sindical e um moralista-clerical. Tivemos total discordância na análise da conjuntura internacional, o que significa o capitalismo na América Central, o que significa socialismo. Ele dizia: "embora eu reconheça que a miséria no Brasil tem que encontrar uma solução urgente, eu só quero dizer para você o que conheço do socialismo: é o pior regime para a classe trabalhadora". Não quero dizer que ele seja pró-capitalista, mas é um pouco aquela atitude da terceira via. Depois vinha o moralismo clerical: "apesar das nossas divergências há uma coisa que temos em comum: a mesma fé católica, e jamais podemos nos esquecer do primeiro princípio da nossa fé - um só rebanho e um só pastor". A minha leitura dessa crítica, desse refrão, é que ele tinha ouvido dos dominicanos (que recusaram o convite para o almoço): "olha, o Frei Betto é da Igreja da Libertação, que ameaça a Igreja com cisma, e você tem que chamá-lo ao rebanho". Eu o achei confuso. Talvez ele esteja confuso por causa da situação do Solidariedade, que chegou ao que o sindicalismo do ABC chegou: ou se transformava em uma força política ou se esvaziava como sindicalismo. Nesse momento, houve uma pressão da Igreja Católica, que não estava interessada em que ele se transformasse em uma força política, temendo o enfrentamento entre trabalhadores e governo, acirrando uma conjuntura que provocasse a intervenção soviética na Polônia. Então, nesse momento, o Solidariedade rachou. Um grupo foi para a clandestinidade e se transformou efetivamente em força política e o outro se manteve vinculado à tutela da Igreja, liderado pelo Lech Walesa, como uma força aparentemente só sindical. É claro que isso reduziu muito o número de adeptos. Depois do Walesa elogiar medidas de Reagan contra a Polônia, houve muita decepção.

A relação de Walesa com a Igreja é uma relação umbilical mesmo? Dependente?
O Walesa é fiei ortodoxo. É incapaz de mover uma palha sem o aval do Papa. O contato entre ambos é intenso e frequente.

E agora, chegando um pouco mais para o Leste, a sua relação com a URSS?
Tenho ido com freqüência para contatos com a Igreja Ortodoxa Russa e com o Conselho de Assuntos Religiosos, que eqüivale a uma espécie de Ministério do Culto. Agora a gente está participando da discussão das questões religiosas dentro da perestroika. E, no próximo ano, vai haver em Moscou, em março, um seminário com a Igreja Ortodoxa Russa, com teólogos da Libertação e cientistas da Academia de Ciências da União Soviética sobre cristianismo e socialismo. O interessante é que a questão vem do projeto da perestroika: está sendo feita na nova legislação de liberdade religiosa na URSS. A vigente é a de Stálin, de 1929. O projeto de lei está sendo formulado pelo Estado e será submetido a todas as Igrejas e associações religiosas, para discussão.

Uma comparação rápida. Na Polônia você encontra o movimento de oposição ao governo muito enraizado na Igreja; na URSS isso não acontece?
Não. Na Polônia, o próprio ministro que faz o trabalho de ligação entre Estado e religião, disse: "olha, somos 36 milhões de habitantes, 30 milhões são católicos". É um problema para o governo reconhecer autocriticamente os erros cometidos na implantação do socialismo polonês, o caráter stalinista, anticierical, sem reconhecer as raízes culturais e religiosas daquele país. Na URSS não há esse problema, porque a Igreja Ortodoxa, mesmo na 2ª Grande Guerra, manteve excelente convivência com o Estado. Ela faz uma distinção teórica entre socialismo, que ela considera positivo, e o marxismo, que ela considera ateu. Mas ela está convencida de que marxistas só são os teóricos do partido. O povo é religioso. Ao mesmo tempo, a URSS tem mais de 100 diferentes religiões, convivendo com as nacionalidades e etnias existentes no país. O que temo é que, não havendo pluralismo partidário, a questão das etnias emirja dentro de uma expressão religiosa, como é o caso, do problema armênio, atualmente. O último reduto religioso anticomunista na URSS era a Igreja Católica nos países bálticos: Estônia, Lituânia e Letônia. Agora, com o Gorbatchev, já há uma aproximação maior.

Você acha que você é um personagem da história mundial?
Não. Acho que a única coisa que fiz na vida, que vai ficar para a história, foi a entrevista com o Fidel, pelo fato de ser o primeiro livro que aborda a questão da religião e do marxismo por uma ótica nova.

Você é vaidoso por causa disso?
Não. Sou vaidoso independente disso, como todo escritor e todo artista, uma vaidade intrínseca à minha personalidade e que me atormenta muito. Tomo algumas atitudes na vida como anticorpos ou antídotos a esta vaidade. Duas delas: evito na medida do possível aparecer em televisão e não quero cargos. Na Igreja nem quero ser padre; fora da Igreja, podem estar certos de que jamais serei candidato a qualquer coisa.

Você é filiado a algum partido político?
Não. Nunca fui filiado a nenhum partido político, nem ao PT, embora haja notícias em contrário. Mas sou um ser essencialmente político.

A Igreja veta a sua participação política?
Não. Pelo contrário, a Igreja me incentiva. É uma consequência da minha fé. Não há um Betto religioso separado de um Betto político, a minha atividade política está estreitamente vinculada à minha atividade pastoral. Agora, justamente como atividade política, evito a esfera partidária, na medida em que, por exemplo, trabalhando com a Pastoral Operária, com as Comunidades Eclesiais de Base, admito no interior da Igreja a pluralidade partidária.

Essa mesma pluralidade que você defende na Igreja, você defende politicamente para União Soviética ou a Polônia? Você defende vários partidos?
Não creio que necessariamente a fórmula dos vários partidos seja a única expressão da democracia. O que defendo é que deve haver, em qualquer país, um alto índice de democracia e de expressão das formas de pensamento, desde que elas não sejam explícita e decididamente contra os interesses da maioria da população. Por exemplo, alguém que defendesse a reintrodução dos mecanismos de exploração nos países socialistas. Isso, como cristão e revolucionário, não posso aceitar.

Você tem ódio de alguém?
Nunca tive ódio de ninguém. Pelo contrário, aprendi na prisão que o ódio destrói primeiro a quem odeia e não quem é odiado. De modo que amar, para mim, é até mais cômodo.

Como é que faz uma pessoa quê tenha mais ódio dos ricos do que amor pelos pobres?
Olha, não sei, pois não tenho ódio dos ricos. Tenho medo dos ricos, porque sei o mal que podem me causar. E tenho medo até pelo poder que têm de cooptação e de corrupção. Minha mãe freqüenta um movimento católico de senhoras de classe média alta, e sempre fala: "Betto, você vai tanto nas comunidades de base, tanto nos núcleos dos trabalhadores sem terra, por que você não vem para nosso movimento?" Brinco com ela e digo: "porque, mãe, a capacidade que vocês têm de me corromper é maior do que a que tenho de convertê-las". Tenho medo do universo dos ricos, é um universo muito envolvente, muito sedutor. E se há uma coisa que temo é a sedução. Qualquer nível de sedução.

Você se confessa sempre?
Tenho um diretor espiritual. O cristianismo é uma religião de pecadores, porque se baseia na misericórdia de Deus. O que faz com que eu busque me redimir dos meus pecados não é a minha culpa. Culpa a gente guarda pelas omissões que comete, não pelas transgressões que faz. E tenho a consciência muito limpa. Minha consciência religiosa se baseia numa experiência muito íntima que tenho de Deus, que me ama irremediavelmente. E que, inclusive, tem muito ciúme de mim.

Eugênio Bucci é editor de Teoria e Debate.

Paulo de Tarso Venceslau é do Conselho de Redação de Teoria e Debate e do Departamento de Estudos Socioeconômicos e Políticos da CUT.