Mundo do Trabalho

São 23 milhões de trabalhadores no campo. São assalariados, parceiros, meeiros, posseiros e pequenos proprietários. São 23 milhões de excluídos da "democracia" brasileira, que só vai até a cerca que demarca o latifúndio. Reverter este quadro exige a aceitação do trabalhador rural como agente histórico da revolução, que acumulou um volume significativo de experiências organizativas nos últimos anos.

Raimundo Bezerra, lavrador da região do Bico do Papagaio, a mais conflitiva do país, definiu com este cristal a exclusão dos camponeses da sociedade brasileira: "Aí é que eu fui entender que nós, lavradores, não somos parte da Nação. Porque a Nação se acaba ali, onde acaba a cerca do latifúndio".

Há quase 200 anos, em 1789, na França, o capitalismo despedaçava implacavelmente os limites do monopólio da terra e incorporava à condição de cidadãos seus camponeses. Essa era uma das condições básicas para a burguesia afirmar-se como classe dominante. Duzentos anos depois, nesta democracia tropical, assistimos precisamente o contrário. Para levar adiante seu projeto de modernização do campo, o capitalismo que se desenvolve no Brasil trata de perpetuar por meios diversos - desde a boca do rifle dos jagunços, passando pela política agrícola, até o texto aprovado na Constituinte - a marginalização dos trabalhadores rurais. Estamos fundando, neste final de século, uma curiosa democracia baseada no monopólio da terra e na exclusão de 23 milhões de trabalhadores que labutam no campo nas mais diferentes condições: assalariados, parceiros, posseiros e pequenos proprietários.

A pergunta que levantamos aqui vai não apenas para a Nova República, para os senhores constituintes, mas para o conjunto da sociedade brasileira - aí incluídos os partidos que fazem profissão de fé no socialismo. É possível construir uma sociedade democrática sem garantir de forma duradoura e estável o acesso dos camponeses à propriedade da terra?

Haverá quem diga que o enigma já está resolvido, tanto pela sociedade burguesa como pelas revoluções socialistas. O capitalismo, porém, para implantar-se, ao mesmo tempo que democratiza a propriedade da terra por meio da reforma agrária (EUA, França, Japão etc.), estimulando o aparecimento da propriedade camponesa, trata de prover os meios para subordiná-la à lógica da concentração do capital. Com o avanço do capitalismo, a propriedade camponesa não desaparece de todo, mas estará sempre equilibrando-se na corda bamba entre a hipoteca bancária e a falência por falta de recursos para investir e reproduzir-se.

Nas revoluções socialistas - deve haver alguma exceção que nos salve - a resposta tem sido dada historicamente nos termos da conhecida aliança operário-camponesa, uma espécie de aliança entre a corda e o pescoço.

Na época do comunismo de guerra, nos primeiros anos da Revolução Russa, a aliança foi estabelecida na base das requisições, confiscos de colheita dos camponeses. Mal sabiam estes que era apenas o começo. Quando veio a coletivização no final da década de 20, sentiram saudades dos primeiros anos, quando perdiam apenas o trigo e não o pescoço.

O desafio está posto. E não responderemos a ele simplesmente pelo exercício intelectual, acadêmico ou não. Não haverá resposta revolucionária que não passe pela incorporação dos interessados diretos no problema, os próprios trabalhadores rurais, que vêm acumulando um volume significativo de experiências organizativas nos últimos anos. A aceitação deste ponto de vista exigirá de nós uma nova postura diante dos trabalhadores rurais: reconhecê-los como agentes históricos da revolução e, portanto, interlocutores com um perfil de interesses diferenciados, que demandam um processo de negociação permanente. Em outras palavras, exige o permanente exercício da democracia.

A nova cara do latifúndio

Nestes tempos de ofensiva contra a presença do Estado na economia, quando o empresariado vocifera contra tudo que seja estatal, é oportuno refrescar a memória e expor o cinismo e a hipocrisia desses senhores. O avanço do capitalismo no campo brasileiro a partir de 1966, com a criação da Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia) e da política de incentivos fiscais, passou pela utilização descarada do Estado como captador de recursos públicos para transferi-los, em geral a fundo perdido, aos capitalistas - fossem eles empresários de tradição na agricultura, fosse industriais, comerciantes ou banqueiros. O capital inicial desses valentes pioneiros foi graciosamente ofertado pelo Estado às custas do bolso do contribuinte. O resultado imediato dessa política de incentivos fiscais foi o aparecimento do industrial-latifundiário, da multinacional-latifundiária, do banqueiro-latifundiário. Essa ofensiva do grande capital no campo trouxe consigo a necessidade de uma nova postura do Estado frente às populações rurais.

A questão agrária se converte em questão de segurança nacional e nesses termos será tratada. O regime militar centraliza o tratamento da política agrária, estabelece um texto legal - a Lei 4.504, o Estatuto da Terra, de novembro de 1964 - e dota-se dos organismos necessários para conduzi-la. Todos (Ibra, Inda, Incra, Getat, Ministério dos Assuntos Fundiários) subordinados ao Conselho de Segurança Nacional.

O Estatuto da Terra prometia a criação de uma "extensa classe média rural" por meio de uma política de colonização e reforma agrária rigidamente controlada pelo aparato militar, fora do âmbito do debate político. A distribuição generosa dos incentivos fiscais às grandes empresas foi mais poderosa que a política de colonização e reforma agrária, de tal modo que operou-se no país um processo de modernização conservadora da agricultura, baseado na concentração da propriedade fundiária e na incorporação de tecnologias modernas de produção agrícola. Elevou-se aceleradamente o nível de mecanização - particularmente na produção de grãos - ao mesmo tempo que se mantiveram ou recriaram relações de trabalho extremamente atrasadas. O exemplo disso é que a cada ano se sucedem as denúncias de exploração de mão-de-obra escrava, envolvendo até empresas multinacionais, como o caso da Fazenda Vale do Rio Cristalino, em Santana do Araguaia, sul do Pará, de propriedade da Volkswagen na época.

Quando o regime militar apresenta sinais de esgotamento econômico e político, e começa a ser elaborada pelas classes dominantes a proposta que resultou na Nova República, o campo brasileiro já tem recortado um novo perfil. Está liquidado ou em vias de liquidação, o velho latifundiário de esporas e chapelão. Ou foi substituído ou se associou, nas áreas mais desenvolvidas do país, aos executivos que gerenciam os interesses dos comerciantes, banqueiros e industriais que investiram no campo. Está consolidado ou em vias de consolidação um pacto que, nesse momento, unifica os interesses dos latifundiários com os outros setores do capital. As consequências deste pacto serão visíveis quando a Nova República apresentar sua proposta de reforma agrária para a sociedade brasileira, em maio de 1985.

Na outra ponta, a resistência dos trabalhadores rurais se expressa num sem-número de conflitos pela posse da terra espalhados por todo o país, greves importantes nas áreas de assalariados - zona canavieira de Pernambuco e São Paulo - e, mais recentemente, as lutas em torno da política agrícola, envolvendo particularmente os pequenos produtores do sul do país. A marca dessas lutas, e a sua condenação, reside em seu isolamento, sua dispersão, sua solidão. A ausência de articulação entre elas funciona como um poderoso obstáculo à sua tradução em fato político de peso, no contexto da luta de classes no país. A diversidade das lutas e o volume de pessoas envolvidas nos dão conta de que, se de um lado o velho latifúndio cede lugar a novos métodos de exploração, os trabalhadores rurais emergem ao final do regime militar com uma face nova. Trazem na bagagem uma rica experiência, que se expressa em novas formas de organização e de luta que passam por dentro do movimento sindical mas não se esgotam nele e o questionam. O questionamento se dá a partir de dois desafios principais. O instrumento sindicato é eficaz para travar a luta pela terra? E o instrumento sindicato é eficaz para enfrentar as demandas em tomo da política agrícola? O acelerado processo de mudanças ocorrido no campo brasileiro pelo maciço investimento de recursos e tecnologia, aliado a uma concentração de terra e de renda nunca vistas, apresenta aos trabalhadores o seguinte desafio: a estrutura sindical vigente no campo brasileiro hoje é adequada à condução das lutas dos trabalhadores, no seu enfrentamento com esse novo latifúndio?

A contra-reforma agrária

A Nova República trouxe consigo a perspectiva de aplicação do Estatuto da Terra e de atendimento às reivindicações que a luta travada pelos trabalhadores rurais traduzia na exigência de reforma agrária imediata. Não foram necessários mais que dez meses de governo para que ficasse desvendado o pacto estabelecido entre o latifúndio e os outros setores do capital, assim como os meios convenientes de que dispunha para impedir qualquer política que implicasse democratizar a propriedade da terra.

Com o decreto de 10 de outubro de 1985, a Nova República estabeleceu a sua política para o campo: o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). O texto pode ser definido como uma ata de rendição da Nova República às exigências do novo latifúndio. Nada tem a ver com a proposta de plano apresentada por Sarney no 4º Congresso dos Trabalhadores Rurais. O conteúdo do Decreto está definido com limpidez neste comentário do sr. Abreu Sodré, publicado na Folha de S. Paulo na ocasião: "O PNRA de um lado reservou à iniciativa privada o papel preponderante na implantação da reforma agrária; e de outro deu aos proprietários rurais a oportunidade de realizá-la por sua própria iniciativa". O dr. José Gomes, então presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), entendeu o recado e demitiu-se. A partir de então a proposta de reforma agrária da Nova República se converteria numa fraude às aspirações dos trabalhadores brasileiros.

O PNRA fixou para o período 1985/1987 a meta de desapropriar 13.860.000 ha, para assentar 450 mil famílias. Até março último foram desapropriados 2.350.518 ha e assentadas 11.794 famílias, apenas 2,6% do total de famílias previsto. Os dados são do próprio Ministério da Reforma Agrária (Mirad). Se a eles acrescentarmos que no mesmo período mais de 100 mil pequenas propriedades foram arrancadas das mãos dos seus donos, por meio de leilões promovidos pelos bancos, vamos concluir que a Nova República conduz uma política de contra-reforma agrária no país.

Mais do que os incêndios de casas, os despejos, os assassinatos de trabalhadores, a política agrícola da Nova República atua como um poderoso fator de expropriação da terra. Poderíamos dizer que há uma articulação entre as ações do Ministério da Reforma Agrária e do Ministério da Agricultura com o objetivo de consolidar um novo padrão de desenvolvimento para a agricultura brasileira, baseado na alta concentração da propriedade fundiária e, em conseqüência, na liquidação da pequena propriedade; e na adoção de um padrão tecnológico agroindustrial que permita ao país concorrer no mercado internacional de grãos e outros produtos primários. Em outras palavras, as políticas agrária e agrícola da Nova República são estabelecidas a partir dos interesses em jogo no mercado internacional e não a partir das exigências da sociedade brasileira - que demanda, por um lado, uma política voltada para a produção de alimentos para o mercado interno e o enfrentamento do problema da fome e, por outro lado, a incorporação dos trabalhadores rurais à condição de cidadãos por meio da reforma agrária.

A ação do Mirad, convertido na gestão de Jáder Barbalho em agência de transações imobiliárias, inviabiliza o PNRA e se completa com a política agrícola conduzida por Íris Resende, que vem levando à liquidação da pequena propriedade no país. Se tomamos como verdadeiros os dados oferecidos pelo Censo Agropecuário de 1980, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), as propriedades com até 100 ha produzem 87,48% da mandioca, 78,63% do feijão, 68,16% do milho, 65,64% do algodão, 46,41% da soja, 37,10% do arroz e 25,58% do rebanho bovino do país. É precisamente contra essa pequena propriedade que se orienta a política agrícola da Nova República. Dados do Banco Central sobre a política de financiamentos dão conta de que os pequenos agricultores realizam 81% dos contratos de crédito agrícola e recebem 26,5% do valor total dos empréstimos; os médios produtores, que realizam 14% dos contratos, ficam com 27% do valor; os latifundiários, com apenas 4,5% dos contratos, abocanham 41,0% do total dos empréstimos; os 0,5% restantes contratos são realizados pelas cooperativas, que ficam com 5,5% do valor emprestado. Não é difícil perceber que a política da alocação de recursos para a agricultura neste país se dá na ordem inversa da capacidade de produzir. Resumindo: penaliza quem produz e premia quem especula.

É essa pequena propriedade que está sendo levada a leilão pelos bancos e foi ela também que mobilizou mais de 300 mil pessoas no último ano, para bloquear estradas, fechar agências bancárias, em protesto contra essa política de expropriação.

Quando um rico mata um pobre...

...O defunto é que vai para a cadeia, diz o ditado.

A violência tem sido a marca permanente da história das lutas pela terra no Brasil. Se pensarmos numa história das lutas populares no campo vamos nos deparar com uma multidão de conflitos que dão conta da diversidade de situações em que os trabalhadores rurais realizam sua luta de resistência.

Além da violência, outra marca está presente em todas essas lutas: a dispersão. A unificação dos interesses do capital no campo brasileiro ainda não produziu a contra-partida da unificação das lutas dos trabalhadores rurais. No último ano foram documentados 782 conflitos de diversos tipos no campo. Nestes conflitos foram envolvidas 1.363.729 pessoas, a metade em disputas pela posse ou propriedade da terra. Esses dados estão contidos no relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

Conflitos no campo em 1987

Há no país uma crença generalizada de que a violência no campo é coisa de latifundiários de maus bofes. E está restrita às áreas da chamada fronteira agrícola. A realidade refuta esta ilusão e exige uma observação além da superfície.

A violência repressiva, centralizada, do período da ditadura militar, foi substituída pela violência descentralizada, conduzida pelas oligarquias locais, fortalecidas com o advento da Nova República. A partir de 1982, com a eleição dos primeiros governadores do PMDB, os agentes da repressão política do regime militar vão sendo aos poucos substituídos pelas Polícias Militares dos estados e pelas milícias privadas dos latifundiários. Há um deslocamento do centro da violência das mãos do aparato do Estado para a sociedade. Por essa época aparecem na cena política as primeiras articulações públicas de latifundiários para organizar a violência. São pequenos grupos de atuação localizada, como a Asfax (Associação dos Fazendeiros do Alto Xingu) no Mato Grosso, a Aprusp (Associação dos Produtores Rurais do Sul do Pará). São os primeiros sinais de uma concepção de empresariamento da violência no campo.

O surgimento da UDR (União Democrática Ruralista), em 1985, aglutina esses núcleos geradores de violência e confere a eles um objetivo político: articular organicamente a ação dos latifundiários, seja no plano para-militar, seja no plano político, e direcioná-la no sentido de bloquear qualquer tentativa de realizar a reforma agrária. Homogeneizando o pensamento e a ação dos latifundiários, a UDR vai se convertendo no coração da violência no campo, no motor principal da radicalização da questão agrária e no núcleo gerador de um partido civil de extrema direita no Brasil.

O aparecimento da UDR modifica radicalmente o quadro da luta pela reforma agrária no Brasil. A violência no campo deixa de ser a violência espontânea, produto do choque de interesses sociais objetivos, e passa a ser planejada, seletiva, uma violência de classe.

O assassinato de advogados, padres, agentes de pastoral, religiosas obedece a uma tática claramente estabelecida: isolar os trabalhadores rurais de todas as forças sociais que se solidarizam com eles. Cumprida essa etapa, golpeá-los destruindo suas organizações e assassinando suas lideranças mais destacadas. Aqui reside a explicação para a política de terror seletivo aplicada nos últimos anos contra as lideranças de trabalhadores rurais. Quanto tempo os camponeses levarão para produzir outros Wilson Pinheiro, Margarida, Eloy, Gringo, Nativo, Benezinho, Tião da Paz? O latifúndio sabe que um movimento sem dirigentes é um movimento sem direção.

Por fim, a violência no campo no Brasil traz a marca da impunidade. Nenhum outro organismo do Estado Brasileiro tem se identificado mais com o latifúndio do que o poder judiciário. Com as exceções de praxe, funciona como um poderosos obstáculo às aspirações dos trabalhadores no sentido de democratizar a propriedade da terra, nos processos possessórios, quando não absolve réus confessas em processos criminais. Para os latifundiários, o Código Civil; para os trabalhadores, o Código Penal.

Algumas cercas caíram, o Estado não

Para resistir à violência do latifúndio e do avanço do capitalismo no campo, os trabalhadores buscaram novas formas de luta. Nas áreas da fronteira agrícola, a partir da tradição histórica das lutas dos posseiros, os trabalhadores se organizam para ocupar a terra. Essas organizações, porém, ocorrem de maneira informal, ou seja, não possuem um caráter permanente. O que não significa que não obtenham um alto nível de eficácia para os objetivos a que se propõem. Esse tipo de organização tipicamente camponesa não é compreendido muitas vezes pelos de fora, mesmo aliados, que, em geral, quando pensam em organização, não conseguem concebê-la separada de uma estrutura reconhecível e duradoura no tempo.

Esse tipo de organização, presente nas lutas pela posse da terra, colocou em xeque a estrutura formal do sindicato de trabalhadores rurais, incapaz de responder à complexa soma de tarefas necessárias à conquista coletiva da terra. Em alguns casos, porém, os trabalhadores rurais combinam sua organização informal com a estrutura formal do sindicato para realizar de maneira eficaz a conquista da terra.

A experiência mais nova e mais significativa, no contexto da luta popular no campo, sem dúvida é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra. Primeiro, porque nasceu e estabeleceu sua linha de frente no Sul do país, onde a estrutura fundiária está mais estratificada e legitimada e onde se localiza a agricultura mais desenvolvida. Segundo, porque deu à luta um caráter de massa oferecendo a milhares de trabalhadores expulsos da terra, que se recusam a se tornar assalariados, a milhares de filhos de pequenos proprietários que não têm perspectiva de receber um quinhão de partilha ou de herança e se recusam a migrar para o Norte ou para o Centro-Oeste, a possibilidade de conquistar a teria na própria região.

Do ponto de vista da organização dos trabalhadores, o Movimento dos Sem-Terra representa o questionamento mais radical à estrutura sindical vigente no campo. O Movimento passa por dentro do sindicato mas não se esgota nele e combate o que poderíamos definir como o sindicalismo de memorando posto em prática pela estrutura sindical oficial, da Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas), passando pelas federações, até o sindicato-posto-do-INAMPS.

Se de um lado podemos afirmar que o Plano Nacional de Reforma Agrária entrou em colapso, é necessário reconhecer que a principal forma de luta que o Movimento dos Sem-Terra incorporou às lutas dos trabalhadores nos últimos anos, as ocupações massivas, os acampamentos como forma de pressão sobre o Estado, encontram-se numa situação de impasse. Algumas cercas foram derrubadas. Mas não caiu com elas o Estado brasileiro. E esta realidade obriga os trabalhadores a enfrentar-se, depois de acampados, e obrigatoriamente depois de assentados por meio de desapropriações, com uma estrutura montada para inviabilizar qualquer tentativa de democratizar a terra por iniciativa e sob o controle dos próprios trabalhadores. Essa situação de impasse pressiona o Movimento dos Sem-Terra no sentido de aprimorar cada vez mais a qualidade dos seus quadros, o que é positivo, e ao mesmo tempo apresenta o perigo de distanciá-lo da base de massa de onde precisamente retira sua força.

Latifúndio acima da Constituição

Por ironia, neste país do latifúndio, o termo latifúndio não aparece no texto da nova Constituição. Vestido com a armadura da "propriedade produtiva", o latifúndio se tornou "insuscetível de desapropriação" para fins de reforma agrária.

O significado da votação de 10 de maio, na Constituinte, não se esgota aí. Ficou demonstrada uma realidade política tremendamente enraizada na história deste país: a estreita relação entre a propriedade da terra e a propriedade do poder político. Há ainda outra constatação a fazer: ante qualquer possibilidade de avanço na democratização da propriedade da terra, as elites políticas brasileiras reagem como antigos senhores de escravos. A cultura política das elites é rural. E arcaica.

Com o resultado da votação de 10 de maio, fica evidente que a luta pela reforma agrária no Brasil, a partir de agora, se dará em condições mais adversas que durante o período do regime militar. E apresenta aos trabalhadores rurais um desafio de fôlego: é indispensável incorporar o operariado industrial e o setor de serviços à luta pela reforma agrária. A partir daí, é necessário compor um amplo arco de alianças para fazer frente ao pacto econômico e político estabelecido entre os latifundiários e os outros setores do capital, cujo objetivo é perpetuar o monopólio da terra no Brasil.

A tarefa de compor este arco de alianças cobra do Partido dos Trabalhadores uma responsabilidade histórica. Pela primeira vez temos na história do país um partido político que incorporou nas suas fileiras, como eleitores, como simpatizantes e militantes, uma quantidade significativa de trabalhadores rurais. Cabe agora, como passo imediato, incorporá-los também como dirigentes. Mais. Cabe modificar profundamente a postura tradicional - da qual o PT é herdeiro - de encarar os trabalhadores rurais como representantes do atraso, como descendentes sociais dos escravos. Cabe romper com a concepção que não reconhece neles a condição de agentes históricos da revolução, mas apenas uma força predestinada a receber uma proposta produzida fora dela e a cumprir a tarefa de bater-se agregada à classe que comandará o processo de transformações sociais.

Os partidos políticos brasileiros nunca foram capazes de se acercar dos trabalhadores rurais com a disposição honesta de ouvi-los. Se o PT quer ser a oficina do novo, terá que romper também com essa tradição, como já rompeu com outras. A adoção dessa nova postura, a incorporação dos trabalhadores rurais nas instâncias de decisão, são condições indispensáveis para compor o campo de forças democráticas e populares capaz de fazer frente ao novo latifúndio.

É indispensável compreender que a luta dos trabalhadores brasileiros pela reforma agrária tem um caráter necessariamente amplo. Ela se inscreve no marco da luta dos trabalhadores rurais pela cidadania. E sendo amplo, é igualmente radical - no melhor sentido da expressão. Porque, se implica reorganizar a estrutura produtiva do país, cujas distorções são responsáveis pela fome de milhões de brasileiros, implica também demolir as estruturas antidemocráticas do poder político, assentadas sobre o monopólio da terra. Retomando as palavras de Raimundo Bezerra, com que abri essas reflexões, se "a nação se acaba ali onde acaba a cerca do latifúndio" está posto diante dos trabalhadores - rurais e urbanos - o desafio de romper as cercas do latifúndio, invadir a Nação e fundar uma sociedade nova, capaz de redimir da marginalidade a esmagadora maioria dos brasileiros.

A estrutura material implantada no campo oferece as condições para a construção dessa sociedade nova. Resta saber se os trabalhadores deste país acumularam maturidade política necessária para escapar do imediatismo das lutas diárias que a miséria lhes impõe, e se serão capazes de apresentar o projeto político que responda aos seus interesses históricos, que se confundem com a própria perspectiva deste país como nação.

Hamilton Pereira da Silva (Pedro Tierra) é secretário agrário do Diretório Nacional do PT.