Política

Em primeiro lugar é preciso que a teoria deste partido seja uma resposta à pergunta: "Para que um partido?"

Alguns pressupostos desta discussão exigiriam, por si só, uma exposição mais profunda do que permite este artigo e exigiriam também um debate que precede a própria concepção de partido. Não se pode abdicar, porém, de enumerá-los para que as discordâncias possam ser orientadas a partir de uma visão do conjunto das opiniões do autor e não simplesmente por meio de teses que se opõem, sem que fiquem lembradas as suas raízes teóricas.

Alguns pressupostos desta discussão exigiriam, por si só, uma exposição mais profunda do que permite este artigo e exigiriam também um debate que precede a própria concepção de partido. Não se pode abdicar, porém, de enumerá-los para que as discordâncias possam ser orientadas a partir de uma visão do conjunto das opiniões do autor e não simplesmente por meio de teses que se opõem, sem que fiquem lembradas as suas raízes teóricas.

Em primeiro lugar é preciso que a teoria deste partido seja uma resposta à pergunta: "Para que um partido?". Sem definir qual o objeto da organização partidária dificilmente passar-se-á para um debate de fundo. O primeiro pressuposto, portanto, é que as opiniões aqui expostas têm o partido como organicidade, que se expressa como "mediação entre a teoria e a prática"LUKÁCS, George. Teoria do Partido Revolucionário, Ed. Brasil Debates, 1987, p.41. , cuja finalidade é a conquista do poder para determinar uma alteração radical nas relações de classe, visando com isso a construção da sociedade socialista.

Esta possibilidade, a construção do socialismo, só será realizada por meio de uma inversão da dominação, o que exige um novo tipo de Estado. O objeto do partido - a revolução socialista - é a própria razão de ser da teoria que "deve basear-se numa elaboração teórica mínima a respeito do processo através do qual seu objeto, o socialismo, pode se constituir".

Se tenho claro que o socialismo será construído por meio de um processo seqüencial de mudanças no interior da ordem burguesa, eu terei um determinado tipo de partido. A visão histórica de que a revolução socialista é uma ruptura, que só poderá se dar contra o desenvolvimento natural da sociedade capitalista, exige uma outra concepção de partido.

O segundo pressuposto é que o partido, como forma superior de organização que se contrapõe à forma ordinária e alienante por meio da qual o capitalismo concentra e organiza os operários e os demais trabalhadores, é a forma históricaGRAMSCI, Antonio. Teoria Política, nº 8, Ed. Brasil Debates, p.123. que possibilita que as massas passem de meras executoras dos atos de trabalho no processo produtivo a organizadoras de uma nova relação entre as classes. E isto só pode se dar por meio da política planejada e pensada como ação específica. De fundamentalmente braços, as massas passam a ser também cérebros, subjetivando o próprio comportamento acima e afora da rotina alienante que lhe reserva a sociedade capitalista.

O partido, portanto, que, consoante o primeiro pressuposto, deve ser construído em função do seu objeto, a revolução socialista, é também um sujeito da atualidade. Atualidade esta que passa a ser pensada na história. Não mais uma atualidade que apenas reproduz as formas alienadas de convívio e atividade que a rotina impõe; mas uma atualidade que se propõe a expressar um nível de consciência futura, que já se manifesta de maneira germinar nas suas relações internas e nas relações do próprio partido com o movimento de massas. Por isso, o partido intervém, igualmente, em outras esferas por meio das quais se realiza a hegemonia burguesa, com uma política cultural, com a luta por uma nova ética e uma nova moral, opostas às estratificações ideológicas da dominação burguesa, tensionando a consciência das massas contra a globalidade dos valores do capitalismo. Sem a intervenção nesta esfera, no tipo de sociedade em que vivemos o partido será absorvido como partido integrado à ordem, por mais radical que ele se presuma.

O terceiro pressuposto é geral: parte da afirmação de que há uma crise no marxismo. E que esta se expressa na contradição flagrante entre as suas propostas teóricas e a sua realidade histórico-concreta, através da qual, com o porte de filosofia oficial, o marxismo transforma-se numa normatividade apologética do socialismo real, com toda a sua perversão burocrática. Esta crise, que também é uma crise da teoria leninista do partido de vanguarda formulada pelo stalinismo é fundamental para ser pensada, de forma encadeada e integrada com o primeiro pressuposto: a luta pela revolução socialista com as suas particularidades, num país específico, num momento de desprestígio do socialismo e do comunismo, carente de uma crítica filosófica radical do marxismo soviético, que é urna deformação positivista da dialética marxistaGENRO FILHO, Adelmo. Filosofia e Praxis Revolucionária – Marx, Engels, Bloch, Korch, Ed. Brasil Debates, 1988, p.9..

Com base nestes pressupostos, o partido socialista a ser construído não o será apenas na esteira de todas as experiências anteriores, mas deverá ser uma ruptura que conserva e supera todas essas experiências, à medida que a dominação burguesa é cada vez mais complexa e o seu objeto - o socialismo - é cada vez mais difícil e as consciências são cada vez mais manipuladas. O partido de novo tipo deve responder a esta nova situação histórica.

A evolução do debate

Nos primórdios do Partido dos Trabalhadores há, ao mesmo tempo, uma recusa e uma crítica do sindicalismo como arma fundamental de luta contra o capital, porque é, no início, uma ideologia do sindicalismo que quer se expressar como universalidade, por meio da política partidária. E há também a afirmação do espírito sindicalista, em oposição à universalidade da política, pois na gênese do PT expressa-se um repúdio velado, mas enérgico, a uma teoria que rompa com os particularismos do movimento sindical e se apresente como um projeto global da sociedade. Ainda hoje permanecemos no socialismo do dia-a-dia, sem um projeto que tenha abrangência e responda às próprias questões colocadas pela modernidade, embora estejamos começando a debater essas questões a partir da própria polêmica sobre a concepção de partido.

O novo movimento interno do PT, de compreender a necessidade de ter uma teoria, passou a qualificar minimamente o debate sobre as correntes de opinião e as organizações que o compõe. A maioria da base, sensível aos argumentos que dividiam o PT entre os petistas puros e os infiltrados, tornou-se mais exigente e passou a compreender que a questão é complexa e que da sua solução podem depender os destinos da revolução no país.

Em todas as oposições que pretendem pensar com honestidade, e sobretudo com humildade, a questão da revolução no Brasil, transita a convicção de que é preciso forjar uma estratégia da revolução e que esta estratégia implica em pensar o PT como partido estratégico - um partido de novo tipo para uma revolução original num período histórico novo.

Uma das discussões que iniciaram o processo de qualificação do debate, ainda que de maneira débil, foi aquela que versou sobre a construção de um partido de massas ou de um partido de vanguarda. Na verdade, ali, o que se interrogava era a necessidade de uma vanguarda, pois nenhuma corrente expressiva defendeu que o PT fosse um partido de vanguarda, na acepção lenineana anterior a 1905, que se referia concretamente a um partido de quadros. E isso ocorreu porque na revolução européia, Rosa Luxemburgo e Lenin respondiam a questões absolutamente diversas, na Alemanha e na Rússia, respectivamente... Rosa supervalorizava a espontaneidade porque se enfrentava com o burocratismo e conservadorismo do sindicalismo alemão, que enquadrava a iniciativa das massas no oportunismo parlamentar: Lenin torcia o bastão na defesa da organicidade e na qualificação dos quadros, porque brigava contra o liberalismo organizativo de um "conglomerado informe de organizações locais", que impossibilitava uma intervenção orgânica do proletariado na revolução democrática que estava em curso na RússiaHOBSBAWM, Eric. História do Marxismo. Vol 6, Ed. Paz e Terra, 1985. P. 30 e seguintes. .

Partido de massas x partido de vanguarda

A polaridade absoluta entre partido de massas e partido de vanguarda do ponto de vista do leninismo é falsa. Em primeiro lugar, porque não existe uma teoria integral de Lenin a respeito do partido revolucionário socialista. O que existe são alguns princípios teóricos que podem ser extraídos da sua praxis político-organizativa. Esta praxis contrapõe-se a uma divisão esquemática entre as suas opções. Os textos de Lenin sobre o partido, reservados alguns princípios fundamentais - como a necessidade permanente de profissionais (mas não só de profissionais), a necessidade de manter o trabalho conspirativo (mas não só o trabalho conspirativo) e o centralismo democrático (mas com estímulo às iniciativas individuais) apresentam propostas diferentes em função da conjuntura histórica e da correlação de forças entre as classes. Estes textos são de 1905:

 "Com maior amplitude e audácia, com maior audácia e amplitude, mais uma vez com a maior audácia, sem ter medo de fazê-lo (...) abandonem todos os velhos hábitos de imobilidade, de respeito à hierarquia (...) concedam a todo subcomitê o direito de redigir e publicar manifestos, sem multas delongas É preciso unir e pôr para trabalhar, com extraordinária rapidez, todos os elementos que possuam iniciativa revolucionária (...)". "Devemos saber adaptarmos a uma dimensão totalmente nova do movimento (...). É preciso aumentar substancialmente os efetivos de todas as possíveis organizações do partido ou próximas do partido, para caminhar, de qualquer modo, pari passu com a torrente de energia revolucionária do povo, que cresceu cem vezes (...). Devemos criar, sem perder um só instante, centenas de novas organizações".

Os termos formalmente opostos são na verdade partido de massas x partido (só) de quadros, não partido de vanguarda x partido de massas. Lenin salientou inúmeras vezes que as teses do Que fazer? eram específicas para responder a uma situação concreta e não uma teoria geral do partido revolucionário. O partido de quadros só se justifica de maneira pura em épocas de rigorosa clandestinidade e violenta repressão do Estado burguês. Um partido de massas pode ser de vanguarda e para sê-lo precisa contar com milhares de quadros.

O Partido dos Trabalhadores, que hoje já é vanguarda na luta contra a transição conservadora e nas lutas anticapitalistas - mas que carece de definições estratégicas -, dependendo da sua evolução programática e ideológica, poderá ser um partido socialista de vanguarda, ou seja, colocar-se à frente do movimento socialista, para dirigi-lo e orientá-lo. Para isso precisa uma maior homogeneidade ideológica, uma definição programática e uma estrutura organizativa que, mantendo a democracia, incida de forma mais abrangente sobre o cotidiano político de sua militância organizada. E também expresse a pretensão jacobina de constituir uma política de proteção e de autodefesa dos direitos democráticos das massas, sob pena de limitar-se aos enfrentamentos na esfera política das instituições da ordem, sendo inexoravelmente sugado por ela.

Traços estratégicos para uma concepção de partido

À medida que o PT reconhece a existência - fora de seu corpus orgânico de outras organizações socialistas, parece evidente que não só o Estado socialista que ele defende deverá garantir a pluralidade de partidos democrático-revolucionários, operários e socialistas, como também deverá afirmar suas diferenças com os demais projetos socialistas - quanto ao conceito de democracia socialista, bem como quanto ao tipo de Estado a ser construído e também sobre a própria organização da produção.

A integração completa da formação social brasileira no sistema imperialista-monopolista - sua associação e sua independência - constituíram nossa sociedade com pólos de alto grau de desenvolvimento capitalista, conjugados a regiões de capitalismo atrasado. Nosso processo histórico possibilitou a criação de um Estado tutelado pelo militarismo que cumulou duas características importantes, além de outras que aqui não vêm ao caso. A primeira delas é a disponibilidade aberta (sem maiores mediações jurídicas com o interesse público) em relação aos interesses gerais das classes dominantes, o que faz as instituições do Estado funcionarem, à semelhança dos partidos burgueses, como um mercado persa de corrupção e de venalidade. Isso proporciona a aversão das massas ao Estado, identificando-o como instrumento de negociatas e roubalheiras. A segunda característica atual e contraditória deste Estado é a sua complexidade e modernidade, a sua ligação estreita com os aparatos privados da burguesia, a utilização aberta dos meios de comunicação de massa, altamente modernizados, para fazer fluir a hegemonia burguesa sobre as amplas massas populares, a partir de iniciativas do próprio Estado.

É evidente que o pólo que vai decidir os destinos da revolução brasileira é o pólo capitalista altamente desenvolvido, por meio de lutas que se processam na sociedade civil e nos aparatos do próprio Estado burguês. Se estiver correta, tal afirmativa obriga a concluir que os agentes fundamentais de uma mudança revolucionária são o proletariado urbano e as amplas massas de trabalhadores urbanos braçais e intelectuais e das modernas empresas rurais. Esta mudança deverá passar por uma fase longa de acumulação política, de disputa pela hegemonia na sociedade civil e nas instituições do Estado, com a construção de uma cultura política e de uma ideologia socialista em bolsões altamente organizados daqueles setores revolucionários, em direção a uma ruptura com o Estado burguês.

Entendo que sem uma estratégia que leve em conta este eixo moderno e desenvolvido da economia, o socialismo no Brasil é mera ilusão. E esta ilusão poderá gerar seu subproduto na própria qualidade política e orgânica do Partido dos Trabalhadores, esgotando sua luta abstrata pelo socialismo e integrando-o à ordem, por meio do velho realismo de quem luta por reformas como um fim em si mesmo. Esta possibilidade já está posta, no plano ideológico, pelas concessões que o partido tem feito no seu relacionamento com parcelas da burguesia e que devem ser corrigidas imediatamente.

Quero deixar bem claro que não sou da opinião que empresários não podem entrar no partido. O que entendo ser equivocado no terreno dos princípios, porém, é tratar frações da burguesia como aliadas ou amigas do partido, adoçando seu socialismo na medida das exigências deste relacionamentoFolha de S. Paulo, reportagem, dia 19/06/88.. Quanto aos empresários que entrarem no PT, devem fazê-lo na exata medida que, como indivíduos, assumirem o programa e a política do partido.

Bases para o nosso projeto

O sujeito orgânico a ser formado, o partido, deve responder portanto às exigências de uma longa disputa pela hegemonia, num país que possui um Estado moderno militarizado, expressão dos interesses de uma burguesia altamente reacionária, que dispõe de modernos meios de manipulação da consciência das massas, e que é hoje aparelhado, sem maiores mediações jurídicas, pelos interesses dos grandes monopólios.

Este sujeito político (o partido), em conseqüência, além da disputa política permanente, só terá possibilidade de formar uma base de massas desprendida da hegemonia burguesa se fizer da luta ideológica antiburguesa, em todos os planos (político, cultural, ético, filosófico), um momento determinante da sua história, disputando nas instituições do Estado e da esfera da sociedade civil com respostas dentro e fora da ordem. A tradição teórica a ser apropriada por nós, para conservá-la e superá-la, é a de Rosa, Lenin, Gramsci, Lukács e Bloch.

Para quem entende as complexidades e as dificuldades da etapa em que nos encontramos, suponho que são os seguintes os eixos de uma política de construção partidária:

a) Aprofundar as definições programáticas do partido, buscando caracterizar as linhas - mestras do tipo de Estado que defendemos, que seja o viabilizador de uma nova experiência socialista para a humanidade, no rastro das lições e na superação, das experiências abertas pela revolução bolchevique. Para isso é preciso entender que a definição do PT como partido marxista-leninista seria hoje meramente formal e inadequada, tendo em vista, de uma parte, o significado histórico adquirido por esta expressão perante os olhos das massas e, de outra parte, porque o conteúdo filosófico da mesma foi objetivamente preenchido pela vulgaridade doutrinária do stalinismo.

b) Forjar um partido com uma relação interna democrática, que reconheça o direito de tendência, regulamentando-o por meio de normação dos deveres e direitos dos militantes individualmente, recusando-se à burocracia policialesca dos registros que evidentemente tenderão a estratificar suas tendências internas. Um partido que não recuse, ao contrário, proceda à centralização da política nas suas questões essenciais, mas de tal forma que permita e estimule que todas as correntes e organizações produzam e divulguem a mais ampla, polemizante e diversa literatura científica, política, filosófica, inclusive criando condições para que a mesma seja reconhecida e legitimada como necessária para o movimento. Um partido que revogue a atual regulamentação de tendências, que expressam um viés burocrático, centralizador em termos administrativos, além de ser ilusório e desigual, tendo em vista que essa regulamentação só poderá atingir as estruturas que se reconhecem como existentes, não atingindo nem podendo atingir as organizações que se estruturam ou se estruturaram secretamente. Para isso é preciso partir do princípio que a questão das organizações só será resolvida processualmente, à medida que o partido definir melhor a sua visão programática do socialismo (ou eventualmente de uma nova forma social democrática que se tome hegemônica) e as suas concepções estratégicas, relacionadas com a questão do poder.

c) Superar as decisões do 5º Encontro que são extremamente simplificadoras, internamente contraditórias e abrangentes, pois são capazes de satisfazer meio mundo sem armar coerentemente ninguém. Decisões cujo etapismo nos leva a uma tática rebaixada, que não responde às condições de luta de classes no Brasil. O conteúdo hegemônico das decisões do 5º Encontro foi um dos fatores teóricos que não estimularam o partido a iniciar a criação das condições para aprofundar o seu processo de credenciamento como uma referência socialista moderna, contraposta às formas tradicionais pelas quais a burguesia faz a sua política.

Tarso Genro é vice-presidente do PT/RS e Membro do Diretório, é candidato a vice-prefeito de Porto Alegre.