Cultura

A luta pelo poder não pode abrir mão do que anda pelo céu: as ondas da chamada "mídia eletrônica", ou seja, das emissoras de rádio e televisão. Sempre concedidas pelo governo, estas emissoras, em sua grande maioria, são exploradas pelo capital. Geram lucros e dominação ideológica. O Partido dos Trabalhadores pode também utilizar as ondas do ar, atacando em duas frentes: defendendo regras democráticas para a concessão de emissoras e apoiando, desde já, as TVs e rádios livres. É hora de entrar no ar

Comecei a escrever este artigo dias após o presidente Sarney presentear o deputado Matheus Iensen com uma TV novinha, fruto da sua fidelidade canina ao mandato presidencial de cinco anos. O fato mais assustador do momento é a rapidez com que o Ministério das Comunicações está ocupando as frequências de rádio e TV pelo país afora e, em particular, os canais de UHF na capital paulista. Destes últimos restam apenas dois canais para as televisões educativas e dois para as televisões privadas.

O PT e as forças realmente democráticas precisam discutir com urgência as questões que envolvem a concessão, o controle e a utilização dos veículos de comunicação eletrônica e suas conseqüências. Este artigo é uma pequena contribuição.

É certo que o conjunto das relações no capitalismo está permeado pela lógica do capital, partindo daí a mercantilização crescente da cultura, dos valores e dos próprios sentimentos.

Os avanços técnico-científicos do final do século XIX atingiram profundamente a área da comunicação, constituindo um poderoso filão para a reprodução do capital, num duplo sentido: criando novos produtos-mercadorias e, por meio destes, erguendo uma poderosa ação ideológica de legitimação do modo capitalista de ser, viver e pensar.

Marconi, ao construir o primeiro transmissor radiofônico (1896), tinha como objetivo a sua comercialização e produção em escala industrial1. O estágio imperialista definiu a velocidade de expansão desse novo produto, o rádio. Já na década de 20, a radiodifusão estava espalhada por todos os continentes e quase todos os países. A comunicação eletrônica, a mais abrangente e poderosa forma até então conhecida de difusão de sinais e mensagens, trouxe consigo desde o início a possibilidade de sua socialização e apropriação pelas classes subalternas.

Quando Enzensberger afirmou desconhecer na técnica eletrônica qualquer contradição essencial entre o emissor e o receptor2, acertou duplamente. Em primeiro lugar, qualquer rádio transistorizado, pela natureza de sua construção, pode ser convertido numa emissora. Em segundo lugar, o reflexo da divisão social do trabalho e do controle classista do poder gera na comunicação dois pólos - os que falam e os que apenas ouvem - que podem ser invertidos e alterados conforme a correlação de forças na sociedade. Quanto mais desenvolvida e complexa for a indústria da comunicação, mais cientistas, técnicos e profissionais serão envolvidos direta ou indiretamente. Além disso, novos aparelhos para difundir e propagar necessitam de outros- tantos para receptar. Ambos são vendidos: os primeiros para os poucos com poder para falar, os últimos para os milhões que devem consumir a fala.

A complexidade e a especialização produzem contraditoriamente a socialização potencial dos processos tecnológicos, seja constituindo uma grande camada de técnicos, trabalhadores dos extratos médios, que passam a dominar o conhecimento técnico-científico, seja com a "niponização"3 dos aparelhos de transmissão ou recepção. O movimento dos rádios-clubes operários na República de Weimar (1918-1923), as rádios mineiras na Bolívia, as rádios populares no México, a Rádio Voz da Argélia Combatente (1954), as rádios e TVs piratas e livres na Europa, a Rádio Venceremos de El Salvador, as últimas incursões da voz robotizada do Solidariedade nas TVs oficiais da Polônia são pequenas amostras da utilização potencial das contradições do sistema.

A ampliação do conhecimento e a vulgarização dos componentes eletrônicos, se por um lado é o terreno para a generalização do lucro, por outro, é o substrato para a corrosão potencial do sistema de maneira imediata, à medida que arma os cidadãos alocados nos receptores com a possibilidade de transmissão.

O Estado intervém pela manutenção do modo capitalista de pensar resolvendo a contradição da possibilidade total de acesso aos meios versus a manutenção do monopólio do discurso e da mensagem, pela legislação restritiva e antidemocrática da comunicação eletrônica. Por meio da lei procura-se impedir a utilização da mídia eletrônica pelas classes despossuídas.

Liberdade de radiodifusão

O movimento das rádios livres e piratas na Europa assumiu uma poderosa vertente liberal, ao exigir que o Estado autorizasse a privatização da comunicação eletrônica. As forças econômicas do sistema procuravam desbloquear a própria ação deste mesmo sistema, em que a reprodução da ordem e do modo capitalista de pensar se contrapunha à liberdade de lucrar.

O monopólio do discurso pode ser mantido de maneira menos totalizante e mais eficiente por parte do Estado, como no caso americano. Lá, o caráter mercantil e de livre iniciativa sempre foi assegurado nas comunicações eletrônicas. Ao liberalizar a comunicação eletrônica, amplia-se o espaço para o capital avançar seus empreendimentos e gerar novas necessidades de consumo; ao mesmo tempo, levanta-se a possibilidade de forças políticas e sociais utilizarem a mídia para propagar uma outra visão de mundo, linguagem e mensagem, criando novas necessidades ideológicas nas massas.

No concreto, não se inventa um mundo novo, transforma-se este. Daí a importância de abrirem, em meio às contradições geradas no sistema, canais de desagregação do próprio. Nesse sentido, a idéia da liberdade de expressão, brado dos ideólogos da burguesia em luta contra o antigo regime, hoje volta-se contra essa mesma burguesia.

Um dos expedientes utilizados para conter a liberdade de expressão, numa sociedade de renovação científica permanente, é torná-la arcaica na forma. Sem dúvida, a forma se distingue do conteúdo, mas pode alterá-lo significativamente. A liberdade de expressão adquire uma forma possível em cada momento do desenvolvimento das forças produtivas.

Falar em liberdade de expressão na época de Montesquieu significava afirmar a liberdade de imprensa. Uma não existiria sem a outra, a partir da invenção da tipografia. Atualmente, a garantia deste princípio continua passando pela não restrição ao uso dos veículos impressos, mas assume nos meios de comunicação eletrônico o seu conteúdo de maior significação, principalmente num país de analfabetos, semi-analfabetos e miserável, tal como o Brasil.

Com o advento das novas tecnologias de comunicação, o exercício da liberdade de expressão passa efetivamente pelo exercício da liberdade de radiodifusão4.

Enquanto as tiragens dos jornais diários dificilmente ultrapassam o limite de um milhão de exemplares, somente o Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão tem uma audiência estimada em 50 milhões de telespectadores5.

Existem no Brasil 159 emissoras de TV, concentradas basicamente em 4 redes, 1799 estações de rádios instaladas, 340 em instalação e 236 com edital aberto, agrupadas em algumas dezenas de redes6. São Paulo e Rio concentram a produção efetiva da programação nacional de TV, possuindo 40% dos produtores e diretores de TV, 70% dos artistas, 45% dos repórteres, embora representem apenas 11% do total de emissoras.7

A possibilidade de falar para milhões está colocada objetivamente pelos meios eletrônicos. No entanto, a multiplicação da fala se concentra em apenas um dos pólos da sociedade. O direito de influir e opinar fica prejudicado, ou melhor, bloqueado, à medida que se impede o acesso do outro pólo à mídia eletrônica. Pela nova Constituição Brasileira ninguém precisa de prévia autorização do Estado para constituir um órgão de imprensa; contudo, o acesso aos meios eletrônicos só é possível mediante concessão estatal.

Constituinte: the day after...

O rádio nasceu livre. As leis surgiram para restringir esta liberdade, em razão direta à popularização de seu uso. As razões de Estado sempre falaram mais alto. Uma mescla de interesses políticos e militares - o controle do uso, a preocupação com a soberania nacional e com a integração territorial - inauguraram os pilares dos sistemas de exploração da radiodifusão.

Basicamente, podemos definir em relação aos sistemas de radiodifusão dois grandes blocos ou formas de organização e operação: o monopólio estatal da exploração; o controle estatal das permissões de uso e privatização da exploração.

Países como a Inglaterra, Itália e França, até meados da década de 70, possuíam todo o sistema de radiodifusão estatizado. Grupos econômicos interessados na utilização comercial do rádio, já no final dos anos 50, constituíram as primeiras emissoras clandestinas sobre navios que, fora das águas territoriais, realizavam transmissões para o continente europeu, alcançando grande popularidade e obtendo bons lucros com anúncios publicitários. Como nesses navios-transmissores se hasteava a bandeira pirata - é o que dizem - as transmissões e as rádios ficaram conhecidas também como "piratas". A luta contra o monopólio estatal da radiodifusão na Europa uniu interesses múltiplos: dos movimentos sociais, alternativos, ecológicos, libertários, das minorias étnicas e do próprio capitalismo.

Já nos Estados Unidos, ao contrário da Europa, para se instalar uma difusora, qualquer pessoa, organização ou empresa pode pedir à Federal Communications Commission (FCC, criada pelo United States Communications Act de 1934) uma frequência de FM, AM ou ondas curtas. Se a frequência não estiver ocupada e não houver oposição à solicitação, a FCC entrega a licença de construção da emissora. Qualquer litígio não é julgado nem decidido pela FCC ou pelo Poder Executivo, mas sim por um juiz especializado em direito da comunicação. A faixa entre 88,1 e 91,9 MHz da FM norte-americana é reservada às estações sem fins lucrativos, podendo apenas veicular anúncios de empresas que prestam apoio financeiro.

O sistema de exploração da comunicação eletrônica no Brasil sempre foi aberto à iniciativa privada e às fundações de direito público; entretanto, a entrega de concessões sempre foi de competência exclusiva do poder executivo. As consequências da concentração do conjunto das decisões nas mãos do presidente da República e, no máximo, de seu ministério, são por demais conhecidas.

A concessão de frequências de rádio e TV é moeda corrente de pagamento da lealdade política aos plantonistas do poder. O clientelismo, o compadrio, a corrupção atingiram a fase eletromagnética. Nos últimos nove anos foram distribuídas 1227 concessões de rádio e TV aos apaniguados dos governos Figueiredo e Sarney. Para conseguir aprovar cinco anos para seu mandato, Sarney distribuiu quase uma centena de novas concessões" aplicando com mestria o lema do Centrão: "é dando que se recebe".

Na realidade, o Código Brasileiro de Telecomunicações8 não define com clareza os critérios para a outorga de concessões, autorizações e permissões de rádio e TV. Afirma que após a abertura do edital para a concessão de freqüência, os concorrentes têm 60 dias para apresentarem prova de: 1) idoneidade moral; 2) demonstração de recursos técnicos e financeiros; 3) indicação dos responsáveis pela orientação intelectual e administrativa do empreendimento. Como podemos notar, os critérios são demasiadamente fluidos e não definidos precisamente. Por outro lado, os recursos técnicos e financeiros exigidos são extremamente aleatórios, em geral buscam especificações que beneficiem exclusivamente o poder econômico. Nas várias concorrências efetuadas, seus participantes preenchiam os requisitos técnico-financeiros. Como escolher o vencedor? Pela sua "orientação intelectual": vence quem for aliado do ministro ou do presidente.

A nova Constituição Brasileira alterou um elemento importante da política de concessões e permissões, uma vez que retira do Executivo o controle do processo. Caberá ao Congresso Nacional aprovar ou não as novas concessões, bem como decidir sobre a renovação das anteriores. Contudo, continua nas mãos do Executivo a iniciativa de propor quem receberá a permissão ou concessão para uma nova emissora de rádio ou TV.

As forças democráticas e populares devem preparar-se para a grande batalha parlamentar que se avizinha à nossa frente. Devemos lutar pela alteração do atual Código Brasileiro de Telecomunicações, para que possamos efetivamente buscar o controle da comunicação eletrônica pela sociedade civil; alterar o Plano Nacional de Telecomunicações; reordenar as potências utilizadas visando à ocupação de mais freqüências no dial; fixar critérios democráticos para as licitações de canais, reduzindo a margem de politicagem; dar prioridade real à concessão de canais para emissoras públicas sob o controle de fundações, associações e sindicatos.

Dificuldades da democratização das comunicações

O meio é a mensagem? A linguagem da Rede Globo é a única empolgante? Existem outras linhas e tipos de programação capazes de encantar milhões de telespectadores?

A tautologia apregoada por Marshall Macluhan, "o meio é a mensagem"9, procura eliminar teoricamente a heterogeneidade da sociedade dividida em interesses antagônicos e a consequente produção de mensagens diversas e contraditórias. Pasteuriza as distinções entre forma e conteúdo das mensagens, entre a linguagem utilizada para a apresentação no veículo e o próprio veículo. Esta concepção esquece que o veículo (meio) somente transporta a mensagem, delimitando se esta chegará ao receptor através de sons, sons e imagens ou apenas imagens. O meio também define a qualidade, a velocidade e o seu alcance; contudo, o meio não define a mensagem. A luta pela democratização da comunicação eletrônica é uma luta entre mensagens, entre projetos e visões diferentes em busca do espaço social.

Enquanto a democratização da comunicação for entendida como assunto relativo a uma ou outra categoria profissional, dificilmente ela se efetivará minimamente. Estão em jogo interesses vitais para a reprodução do modo capitalista de pensar. São, ao mesmo tempo, milhões de dólares despendidos em publicidade na mídia eletrônica, gerando em contrapartida lucros incalculáveis. Basta lembrar que 40% de toda verba publicitária do país é gasta em anúncios na Rede Globo de Televisão.

A luta pela democratização da comunicação eletrônica atualmente passa pela conquista da concessão de canais pelos setores sociais e políticos, até o momento excluídos da possibilidade de falar para milhões. É ilusória a tese liberal da constituição de meios de comunicação imparciais e "isentos de partidarismos". Se cairmos nesta cantilena continuaremos dependendo dos ideólogos e funcionários das elites dominantes para apresentar a mensagem, as linguagens, as idéias dos dominados. Será possível?

Devemos trilhar centralmente dois caminhos, ambos de ocupação de espaços. Primeiro é o legal, sendo inaugurado pela exemplar ação do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo que solicitou ao Ministério das Comunicações a concessão de uma rádio. Esta ação pioneira deve ser multiplicada pelas associações, entidades e pelos diretórios do PT. O segundo passa pelo apoio à desobediência legítima praticada pelas TVs e rádios livres e alternativas, somadas às inúmeras formas de ampliar e massificar a luta pela democratização das comunicações.

Por se tratar de uma luta pela disputa ideológica da sociedade, encontrando-se no terreno da superestrutura, distante da luta pela melhoria das condições de vida, o combate pela democratização da comunicação eletrônica dificilmente se tornará de massas se não for encampado pelos excluídos do sistema, principalmente pelo PT e pela CUT.

Hegemonia cultural e transformação

Ciro Marcondes defende a tese de que o receptor paga com a moeda da audiência o entretenimento, a informação e a emoção produzidas pelo emissor10. Tal idéia arrebenta o simplismo das teorias que sugerem a completa passividade das massas como obra exclusiva da mídia.

Mas qual o real significado disto? Que a ideologia dominante se encontra profundamente arraigada nas massas?

Sim. Entretanto, o capitalismo é um sistema econômico-social fundado em meio a contradições de múltiplas determinações. O próprio sistema cria oposições antagônicas ou não -, fruto da natureza das relações sociais dominantes, que podem ser exploradas pelo pólos em luta. No embate dos antagonismos criam-se concepções globais sobre todas as áreas da vida social. Cada pólo procura transformar sua visão de mundo em verdade universal.

A transformação da sociedade passa pela capacidade do partido de classe hegemonizá-la, tomando suas idéias e concepções universais e verdadeiras para o todo social. Hoje, arrisco a dizer que isso não será possível sem o acesso à mídia eletrônica.

Sérgio Amadeu da Silveira é assessor parlamentar do PT na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e integrante do movimento de Rádios Livres.