Política

No calor das últimas decisões do Congresso Constituinte, entre o desfecho dos trabalhos em Brasília e as primeiras mobilizações de sua campanha para prefeito de Porto Alegre, o presidente do PT lança elementos para uma avaliação da atuação dos dezesseis deputados petistas na feitura da nova Constituição Brasileira

Escrevo este artigo enquanto o Congresso Constituinte encaminha-se para a conclusão de seus trabalhos. Os 245 artigos das Disposições Permanentes e os 76 artigos das Disposições Transitórias, aprovados no primeiro turno, passam pela votação em segundo e último turno. Neste momento, dentro e fora do Congresso, movimentam-se forças com maior ou menor preocupação em que o texto constitucional fique pronto para ser homologado ainda em setembro.

Nesta altra do campeonato, uma avaliação do processo constituinte não pode levar em conta apenas o resultado formal dos trabalhos – o texto constitucional. Mesmo porque a Constituição que está sendo construída não é resultado do trabalho exclusivo e isolado do Congresso Constituinte.

Por outro lado, o desconhecimento sobre o que se vem aprovando e deixando de aprovar no texto constitucional tem sido usado politicamente para sustentar posições no debate interno do Partido dos Trabalhadores e do movimento sindical cutista. Desconhecimento este fruto da manipulação de informação realizada tanto pelo Jornal da Constituinte como pelo governo e pelos meios de comunicação de massa.

Bandeiras democráticas e lutas populares

O processo constituinte começou a se esboçar na campanha das Diretas Já. No PT, lembro-me bem, no início dos anos 80, tínhamos dúvidas se a bandeira da Constituinte devia fazer parte das demandas prioritárias da classe trabalhadora, para fazer frente à ditadura militar e à necessidade de avanços nas conquistas políticas e democráticas do povo em geral.

Não seria uma bandeira democrático-burguesa, mais uma das muitas que nossos inimigos de classe levantavam para envolver os trabalhadores, seus movimentos e suas lideranças em ações que as desviariam de suas tarefas revolucionárias?

Até que se compreendesse que era possível encaminhar junto com as lutas específicas do povo, demarcadoras de sua autonomia de classe, as bandeiras democráticas como a Constituinte, demorou algum tempo; gastou-se muito papel, discurso e reuniões. A luta por uma "Constituinte exclusiva, livre, soberana e convocada por um governo popular e democrático" – formulação de companheiros na esquerda, ansiosos por se distinguirem de seus parceiros no campo popular – desaguou num Congresso Constituinte convocado por um governo que havia sepultado as eleições diretas na cova do Colégio Eleitoral.

O discurso do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e de seus aliados na Nova República já era outro: o Congresso Constituinte – a exclusividade e a soberania da Assembléia tendo sido mandadas pras cucuias – era propagandeado como a vara de condão que resolveria todos os dramas da estrutura política, econômica e social herdada da ditadura militar.

No entanto, o golpe branco do Colégio Eleitoral não fora suficiente para represar as demandas populares. Os movimentos sociais, as greves de diferentes categorias, o conflito aberto no campo, entre latifundiários e trabalhadores sem-terra, colocaram o governo da Nova República diante de um dilema: ou acelerava a transição ou encontrava formas de conter as pressões e demandas populares, sem recorrer aos instrumentos da repressão aberta como nos tempos da ditadura.

As eleições se aproximavam: eleger-se-iam: governadores, deputados estaduais e deputados federais constituintes. A crise era profunda, o desgaste do governo enorme. Isso poderia refletir-se num Congresso de maioria antigovernista.

O Plano Cruzado foi planejado para alterar esse quadro, tornando-se o cabo eleitoral mais caro que o povo brasileiro já sustentou em episódios eleitorais. Com base nele, o governo e o conjunto de forças e setores da classe dominante que o sustentaram fizeram maioria nos executivos estaduais e no Congresso Constituinte. O PMDB elegeu 22 governadores e 305 constituintes. O PFL (Partido da Frente Liberal), seu aliado no apoio e sustentação política do governo Sarney, elegeu mais de 120 parlamentares. A Nova República fez, portanto, mais de 2/3 do Congresso Constituinte.

Nós do PT, depois de um razoável debate no partido, formulamos um anteprojeto de Constituição que buscava radicalizar a democracia em nosso país, mas sem vender a ilusão de que, mesmo se a sua defesa pelos nossos dezesseis constituintes fosse tão convincente a ponto de fazê-lo ser aprovado na íntegra, estaríamos instaurando o socialismo via Constituição e Parlamento.

Nossa atuação na Constituinte

De fevereiro de 1987 até esta data, direta ou indiretamente relacionadas com a feitura da Constituição, muitas lutas travadas dentro e fora do Congresso Constituinte definiram o texto que está aí, quase pronto.

Dentro do Congresso, o PT buscou alianças pontuais, em torno de propostas do interesse dos trabalhadores e dos que estão comprometidos com a radicalização do processo democrático. Encontramos aliados frequentes entre os Partidos Comunistas, o PDT (Partido Democrático Trabalhista), o MUP (Movimento de Unidade Popular) – antiga esquerda do PMDB, hoje quase todos no PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), o PSB (Partido Socialista Brasileiro) e alguns liberais e democratas independentes.

Sem pretensão de impor nossa hegemonia junto às forças de esquerda atuantes dentro do Congresso Constituinte, não raro fomos referência para elas nas lutas em favor de avanços sociais e democráticos no texto constitucional. A articulação do Centrão – um agrupamento de direita formado dentro da Constituinte, com maioria de parlamentares do PMDB, PFL, PDS (Partido Democrático Social), PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), PDC (Partido Democrata Cristão) e PL (Partido Liberal) – foi em grande parte uma reação à forma articulada como as forças de esquerda, destacadamente o PT, agiam dentro e fora do Congresso Constituinte.

Levamos também uma proposta de Regimento Interno para o funcionamento democrático da Constituinte. Essa proposta balizou debates, mas, é claro, acabou sendo bombardeada pela maioria, na hora de definir as regras do jogo para os trabalhos do Congresso. Vale lembrar que logo mais adiante, com o jogo em pleno andamento, o Centrão conseguiu alterar o Regimento aprovado na tentativa de imobilizar os setores progressistas.

No entanto, nem o Regimento Interno, nem os formalismos do relacionamento parlamentar, como a gravata, o "Vossa Excelência", as inscrições etc. (instrumentos da instituição que visam colocar em situação de igualdade todos os parlamentares) conseguiram impedir que o PT, pela atuação de sua bancada, marcasse a sua diferença de classe sem arrogância ou petulância, mas com serena firmeza e paciente determinação. Em muitas questões fomos minoria, assumindo por conta e risco uma posição diferenciada das demais forças de esquerda, como no caso da estrutura sindical. Defendemos a liberdade e autonomia sindical, traduzidas no fim da unicidade imposta por lei que substitui a unidade conquistada na luta; combatemos a estrutura confederativa, que mantém a verticalidade do sindicalismo brasileiro, e defendemos o fim da contribuição sindical que aí está (Imposto Sindical), que financia o peleguismo e a corrupção.

Em várias ocasiões foi a postura firme, intransigente e radical da bancada petista que garantiu a aprovação de propostas que a centro-direta queria ver alteradas no processo de negociação. É o caso da jornada de seis horas para os turnos de revezamento e do direito de greve. Em muitas outras proposições e emendas de nossa autoria, discutidas na bancada e com o movimento social, articuladas e enriquecidas com as contribuições das demais forças progressistas atuantes no Congresso, firmamos posições conjuntas para ganhar ou perder.

Sim ou não ao texto final

Os sindicatos, o movimento social, as entidades da sociedade civil encontraram no nosso partido e na sua expressão parlamentar, a sua bancada de 16 constituintes, canal para encaminhamento de suas pressões, demandas e propostas e, também, condutor e estimulador de sua mobilização e organização.

As emendas de iniciativa popular, sustentadas por 13 milhões de assinaturas, foram em larga medida fruto do trabalho de nossos militantes de base, em sintonia com as lideranças dos movimentos.

O processo constituinte desencadeou mobilizações em diferentes categorias de trabalhadores (organizados ou não) em setores sociais até então indiferentes ou submissos à política dos outros, em movimentos incipientes ou já amadurecidos por outras refregas. Mobilizações que os fizeram crescer e fortalecer-se.

Tudo isso está por ser apreciado e analisado, para que tenhamos clareza das forças que desencadeamos no processo, da qualidade da nossa intervenção, não apenas no interior do Congresso Constituinte mas fundamentalmente fora dele, organizando e elevando o grau de consciência das massas populares – para que elas não sejam mais objeto de políticas traçadas sem a sua participação e impostas à sua revelia, baseadas na sua suposta indiferença ou omissão.

A Constituição que está por ser concluída significará, como não podia deixar de ser, um avanço em relação às constituições anteriores da história de nosso país. Mas estará muito aquém das aspirações e necessidades da maioria do povo brasileiro. Ela avança quanto aos direitos individuais e coletivos; avança também quanto aos direitos sociais, coloca o Estado e o governo sob um controle maior da sociedade organizada; amplia os espaços democráticos e de participação direta do povo na defesa de seus direitos, na elaboração das leis e na fiscalização de políticas. Mas é inegável que a Constituição de 1988 é um texto comprometido com uma determinada conjuntura e resultado da Constituinte de maioria conservadora.

Nosso partido tem muito a ver com os modestos mas significativos avanços contidos nesse texto; mesmo porque a CUT (Central Única dos Trabalhadores), os sindicatos, os trabalhadores rurais sem terra, as entidades democráticas fizeram fluir por nosso intermédio suas propostas, reivindicações e demandas.

Por isso a postura de nosso partido a respeito do texto constitucional definitivo não pode ser um ato isolado e elitista, apenas para firmar posição e nos diferenciar das outras forças – como se já não nos tivéssemos diferenciado no processo e precisássemos fazê-lo num ato final de auto-absolvição.

A questão de o PT assinar ou não o texto constitucional está em discussão no partido. Para mim, a assinatura é um ato formal, e não de mérito, que pode ser feito, independentemente do sim ou não que venhamos a dar à globalidade do texto definitivo. Gostaria de ressaltar, entretanto, que, a continuarem os resultados de votação até agora obtidos no segundo turno, meu voto é pelo sim. Não entendo isto como uma capitulação à institucionalidade da sociedade capitalista, mas como uma caminhada, em que acumulamos forças para lutas maiores, de médio e longo prazo, que temos pela frente.

Contra nossa vontade e nossa luta, a transição conservadora não terminará com o final do trabalho da constituinte, mas com as eleições presidenciais em 1989! Os trabalhadores, com nossa proposta e nosso partido, chegaremos pelo voto a inúmeros governos, mas só construiremos o poder popular com nossa luta organizada e nossa determinação. A Constituição não congela nossas lutas, pelo contrário, possibilita que elas sejam travadas com mais vigor e num espaço democrático mais ampliado.

Olívio Dutra é presidente nacional do PT e deputado constituinte.