Nacional

Não. Não é um passe de mágica. Os conselhos populares são viáveis. Agora, com a perspectiva das eleições de 1988, é urgente aperfeiçoar a proposta dos Conselhos Populares para a administração municipal petista. Com base na experiência do PT em quatro prefeituras, já existem acúmulos práticos importantes para esta discussão. Vamos a ela!

No PT, desde 1982 pelo menos, muito se tem falado dos conselhos populares. Todo petista afirma e reafirma que "governaremos com a participação popular, através dos conselhos". Por trás dessa palavra-chave, verdadeira varinha mágica que parece nos abrir as portas de várias prefeituras, muitas concepções e confusões estão escondidas.

Para complicar mais ainda, alguns governos peemedebistas criaram os Conselhos da Mulher, do Negro, do Meio Ambiente e tantos outros. "Destes a gente não participa, porque são atrelados", diz o senso comum petista. "Mas quando chegarmos ao governo, haverá a verdadeira participação popular", complementa-se. Embriões de duplo poder, entidades representativas da população, organismo para-partidários, órgãos atrelados ao poder burguês - afinal, o que seriam esses benditos (ou malditos) conselhos?

Estivemos (ou estamos) no governo municipal de quatro municípios. Além destes, outras administrações populares existem no Brasil. Ao que tudo indica, a partir de 1º de janeiro de 1989 o PT administrará uma quantidade muito maior de municípios. Urge portanto que se avance nessa discussão. Mas é imprescindível também - até para o avanço da mesma - que se conheçam e se discutam as experiências concretas de participação popular já realizadas. Afinal, teoria não se elabora abstratamente...

Socializar minimamente essas experiências e extrair delas alguns ensinamentos é o objetivo deste artigo. Tomo como ponto de partida da discussão o acúmulo expresso no artigo de Celso Daniel, "A Participação Popular", publicado no nº 2 de Teoria e Debate, que representa um grande avanço nessa discussão e com o qual estou inteiramente de acordo. Vejamos a experiência dessas quatro administrações.

Fortaleza

Em Fortaleza, depois de três anos de governo popular, não existem conselhos ou qualquer outro canal regular de participação da população na definição dos rumos da Prefeitura.

A concepção predominante na equipe de governo de Maria Luiza Fontenelle (eleita pelo PT e, hoje, parte no PSB e parte no PH) é a de que, como a prefeitura é um órgão do aparelho de Estado, não cabe a ela organizar conselhos populares, pois isso seria atrelar o movimento popular ao Estado burguês. Ainda segundo essa visão, os conselhos são importantes, mas devem ser criados de forma autônoma, pelo movimento popular e pelo partido. Quando isso se der, a prefeitura dialogará com os mesmos, como o faz com outras entidades representativas.

Vale salientar que o movimento popular em Fortaleza é bastante fraco. A vitória eleitoral de 85 deveu-se muito mais a um profundo saco-cheio da população em relação à política tradicional dos coronéis e a uma campanha muito bem-feita política e tecnicamente, do que a um acúmulo anterior de lutas e organização popular. As entidades de bairro em geral são pelegas e atreladas a vereadores e deputados. Assim, como o movimento popular e o PT, pelas suas debilidades, não têm condições de criar de forma autônoma seus conselhos, e como a prefeitura não toma iniciativas de impulsionar esse processo, o que se constata em Fortaleza é que não se deu nenhum avanço importante no sentido da participação popular junto à administração municipal. Salvo algumas experiências localizadas em alguns órgãos, a prefeita limita-se a estar presente nos bairros, receber comissões e entidades, participar de assembléias etc. Tudo isso evidentemente é importante, mas daí à democratização das decisões vai uma longa distância!

Vila Velha

Em Vila Velha, o Conselho Comunitário existe desde 1984. Foi criado por um Projeto de Lei enviado à Câmara (e aprovado) pelo então prefeito peemedebista Vasco Alves (hoje deputado federal do PSDB). Por meio dessa lei, o Conselho Comunitário participa na definição dos investimentos públicos e do reajuste anual do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano). Na época de sua criação, houve uma importante polêmica dentro do PT. Alguns companheiros defendiam que não deveríamos participar dele, pois era um órgão atrelado à Prefeitura e criado de cima para baixo; outros defendiam nossa participação, argumentando que o Conselho era amplo e representativo.

Com a prevalência dessa segunda posição, o atual prefeito Magno Pires, do PT, tornou-se inclusive secretário-geral do Conselho. Sua atuação como tal favoreceu bastante a própria campanha eleitoral em 1987. O PT sempre participou portanto como uma força importante do Conselho Comunitário, ao lado de outras, como o PSB, o PCB, setores da Igreja e outros setores apartidários.

Aqui temos então um caso ímpar: a existência do Conselho precede a administração petista e nossa participação no mesmo é elemento impulsionador da vitória eleitoral em coligação com o PSB.

Vila Velha tem cerca de 60 bairros, 50 deles com associações de moradores relativamente representativas. O Conselho Comunitário é constituído com base nessas associações: cada uma delas elege, para um mandato de dois anos, dois representantes para o mesmo. É portanto uma espécie de federação de associações de bairro.

A política petista tem sido a de se apoiar no Conselho já existente e de ampliar o espaço de sua atuação. Assim, por exemplo, uma das principais medidas tomadas pela administração PT/PSB foi a de abrir uma auditoria nas contas da Prefeitura e, ao mesmo tempo, criar um Conselho Municipal de Acompanhamento da Auditoria, composto por membros do Conselho Comunitário, da Associação Comercial, da Associação dos Servidores Públicos e da Câmara Municipal.

Janduís

Janduís é um pequeno município localizado no sertão do Rio Grande do Norte. Por trás da legenda do PMDB ali se encontra uma administração popular. O diretório local do PT foi formado recentemente, a partir de membros da equipe de governo e do Conselho Comunitário.

Em Janduís o Conselho Comunitário é uma entidade civil. Dos cerca de 10 mil habitantes do município, aproximadamente 6 mil são associados à entidade. O Conselho elege uma diretoria executiva composta por sete membros. A administração popular de Janduís abre espaços e transfere funções para esta diretoria executiva, a qual responde perante o conjunto dos associados. Assim, por exemplo, a contratação de certos servidores públicos (como agentes de saúde e professores) passa pela aprovação do Conselho, bem como a distribuição das verbas de serviço social. A Prefeitura compromete-se a encaminhar as deliberações do Conselho Comunitário.

Diadema

O PT venceu as eleições para a Prefeitura de Diadema em 1982, apoiado basicamente na força e no prestígio do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. O movimento de bairros de Diadema não tinha maior tradição de luta e a maioria das entidades existentes era pelega. As divergências políticas entre o diretório local do PT e a administração municipal beiravam o antagonismo. Como constituir conselhos populares nesse quadro?

Em Diadema, a administração Gilson Menezes, com todo o peso da máquina da Prefeitura, jogou um papel fundamental na constituição dos conselhos. Em articulação com os movimentos populares, que ganharam novo vigor a partir da vitória petista, a prefeitura impulsionou a formação dos Conselhos de Orçamento, Transportes e Saúde. O Conselho Popular de Orçamento é constituído por 170 membros (dez para cada um dos dezessete bairros em que foi dividida a cidade). O Conselho Popular de Saúde é constituído por 56 membros (52 eleitos pela população, um representante da CUT, um do Centro de Saúde do Estado, um da Câmara Municipal e um da Prefeitura). O Conselho Popular de Transportes é constituído por quatorze membros (onze nos bairros, um representante do Sindicato dos Condutores de Veículos do ABC, um da Câmara Municipal e um da Prefeitura).

Como se vê, o princípio básico adotado foi o da eleição direta dos conselheiros nos bairros. Qualquer morador do bairro pode votar e ser votado. Os conselhos em Diadema cumprem funções deliberativas em sua área de atuação e de fiscalização.

Assim, vemos que em quatro administrações populares temos quatro experiências distintas de participação. E outras surgiriam se nos alongássemos nas descrições. Pode-se extrair delas algo em comum?

Conselhos: organismos de quem?

Os conselhos populares devem ser essencialmente canais democráticos de representação da população no município. Isso significa que eles não são nem órgãos de governo nem partidários.

É necessário portanto introduzirmos uma clara diferenciação entre nossa proposta e os conselhos existentes hoje no governo do PMDB. Estes são instrumentos de governo, à medida que os conselheiros são nomeados, como qualquer outro secretário, pelo chefe do Executivo, e visam ser um braço auxiliar deste para levar uma política de governo numa área específica.

Uma administração petista poderá criar secretarias especiais ou comissões para assuntos específicos (mulheres, negros, meio ambiente etc.). Não deveremos chamá-los de conselhos, para evitar maiores confusões.

Será aconselhável inclusive que o prefeito petista e o Diretório local, ao escolherem o secretariado como um todo, consultem as entidades representativas das diversas áreas, onde existirem. Porém, nesse caso, trata-se apenas de uma consulta, com caráter indicativo, pois à medida que são órgãos de governo, a responsabilidade pela indicação de seus titulares é do chefe do Executivo e do partido. Com relação aos conselhos populares, trata-se de um processo completamente distinto, pois sua natureza é outra. Como representantes da população, os conselheiros devem ser eleitos por ela, sem haver no processo nenhuma interferência da Prefeitura.

Os conselhos não são também órgãos partidários. Eles não podem se confundir com a estrutura de núcleos. Dos conselhos podem fazer parte todos os habitantes do município, independentemente de sua posição social e de sua preferência partidária. Isto implica que, num conselho impulsionado por uma administração petista, o PT poderá inclusive estar em minoria. É importante lembrarmos sempre, num país e numa esquerda com tradições tão autoritárias, que caso se queira construir instrumentos efetivamente amplos e democráticos, eles trazem em si o risco de perdermos a disputa.

Por outro lado, é importante recordarmos que no Brasil os partidos tradicionais são meros apêndices do Executivo, controlados pelo chefe deste. As prefeituras são sempre máquinas maiores e com mais poderes que o diretório partidário local. Isto traz para nós um grave problema. Este risco se agrava pelo fato de que, para levar a cabo de forma eficaz um programa de governo, arcando em geral com uma herança de máquinas administrativas endividadas e corrompidas e contando com a férrea oposição das classes dominantes locais e dos governos estadual e federal, será necessário que a administração municipal conte com bons quadros políticos e técnicos. Estes fatores geram uma tendência ao esvaziamento do diretório local e à transferência do seu papel de direção política para a prefeitura. É fundamental para nós evitar esse risco. O diretório local deve continuar se mantendo com uma vida autônoma em relação à prefeitura, dando sustentação e direção política à mesma é certo, mas também levando no município as lutas gerais do programa partidário e inclusive disputando com as outras forças políticas existentes a hegemonia nos espaços de participação popular que a Prefeitura irá abrir. Não cabe a esta determinar quem participa dos conselhos. Cabe ao partido disputar as eleições e preencher esses espaços.

A receita é não ter receita

O nosso objetivo em relação aos conselhos é que eles sejam os mais amplos e representativos. Para alcançá-lo, poderão se revestir em cada lugar de uma forma diferente, mais adequada à realidade local. Poderemos ter um único conselho ou vários, por área específica (saúde, educação, transportes, segurança etc.). Poderemos ter conselhos formados a partir de representantes de entidades, como em Vila Velha ou Janduís. Essa forma, porém, pressupõe que existam no município entidades de massa representativas e abrangentes. No atual estágio de organização do movimento popular no Brasil, raros são os municípios que se encontram nessa situação.

Assim podemos, na maioria dos casos, trabalhar com a hipótese da eleição direta dos conselheiros pela população, como em Diadema. Este processo supõe no entanto toda uma fase anterior de discussão e esclarecimento, a fim de que a eleição dos conselheiros tenha um mínimo de representatividade. Nesses casos pode ser que a formação do conselho não se dê logo após a posse do prefeito petista. Haverá todo um período de maturação, que poderá levar anos até, em que a Prefeitura e o partido jogarão grande peso na disseminação da idéia, na discussão dos critérios de funcionamento e eleição etc.

Aqui cabe voltar à discussão da experiência de Fortaleza. Do ponto de vista do nível de organização do movimento popular no Brasil, podemos dizer que Vila Velha é exceção e Fortaleza é regra. Portanto, se a administração municipal não impulsionar, tomar medidas, abrir espaços de forma decisiva, o movimento popular não irá de uma forma geral criar espontaneamente os seus conselhos. Chegaremos ao fim de um mandato de quatro anos sem que aquele período tenha representado um salto de qualidade do ponto de vista de participação e organização. Na busca de algo puro, criado a partir das bases, sucumbiremos ao imobilismo.

Se a prefeitura deve ter um papel chave no processo de constituição dos conselhos, cabe responder a uma questão: não estaríamos assim efetivamente atrelando o movimento ao Estado?

Esta questão não é nova no pensamento político da esquerda brasileira. Na década de 70, muitos companheiros condenavam a tática de trabalhar dentro do sindicato oficial com esse mesmo argumento. Contrapunham a essa, a tática de criação de sindicatos paralelos livres, a partir da base. As greves do ABC e o posterior surgimento do PT e da CUT (Central Única dos Trabalhadores) mostraram com clareza quem defendia a posição mais adequada. Outros questionavam a participação no parlamento, pois estaríamos também canalizando o movimento para um órgão de dominação burguesa. Embora o parlamento no Brasil não tenha mudado de caráter, hoje praticamente nenhum setor nega a validade e a importância da participação no mesmo; muitos ex-votos nulistas são hoje candidatos e parlamentares. Alguns, porém, que se utilizam corretamente do mandato legislativo para fazer avançar a luta dos trabalhadores, contraditoriamente negam a perspectiva de se utilizar do mandato ao nível do executivo no mesmo sentido!

A questão que devemos discutir não é portanto esta, já superada pela experiência recente de luta dos trabalhadores e do PT no país.

Mas sim a de como evitar que o conselho se transforme num mero órgão de propaganda da prefeitura ou homologatório em relação às decisões do prefeito. Em São Paulo, no período 1976/1982, a experiência de uma prefeitura emedebista ilustra bem esse problema.

Em Osasco, formado o Conselho Popular com certo grau de representatividade, ele se apelegou à medida em que o prefeito começou a contratar como funcionários da prefeitura os elementos mais destacados do mesmo. Em pouco tempo essas pessoas deixaram de ser representantes da população junto à prefeitura e passaram a ser representantes da prefeitura junto à população.

Os conselheiros devem responder portanto somente junto aos setores que os elegeram, direta ou indiretamente, e não podem manter qualquer vínculo empregatício com a prefeitura. Em alguns casos, pode ser importante que, para manter o seu próprio funcionamento e poder cumprir com suas tarefas, o conselho receba uma verba da prefeitura. Porém, a administração dessa verba e a definição de eventuais profissionalizações de funcionários ou membros do conselho deve ser feita de forma autônoma por este, sob pena de ele perder suas características essenciais.

Conselhos: para quê?

Qual o papel enfim que representam os conselhos? Qual sua importância dentro da política do PT?

Alguns companheiros consideram os conselhos como embriões de órgãos de duplo poder. Uma situação de duplo poder significa um certo equilíbrio instável de forças numa sociedade na qual existem dois poderes em conflito, ambos com sua força política e militar. Evidentemente uma situação desse tipo não pode durar muito tempo e exige, para sua solução, que um dos lados elimine o seu concorrente, afirmando-se como efetivo poder. Obviamente a situação atual está muito longe de caracterizar-se como tal. Nesse sentido, afirmar que os conselhos populares serão organismos de duplo poder não nos esclarece nada sobre o seu papel atual. E em segundo lugar, o desenvolvimento de situações de duplo poder pode se manifestar de formas novas, imprevistas, criadas no processo de luta de classes num contexto determinado. Assim, a não ser que queiramos entrar no campo da futurologia, esta discussão só serve para confundir.

Concretamente, os conselhos hoje são espaços democráticos de atuação que a prefeitura abre no sentido de que haja participação da população, de forma crescente, na definição de tudo aquilo que lhe diz respeito. Isto implica, da parte do prefeito, uma disposição de abrir mão de uma parcela dos poderes que lhe são atribuídos constitucionalmente. O mesmo se dá em relação à Câmara Municipal. Mas ninguém concebe nem propõe hoje uma situação em que a existência e o fortalecimento do conselho popular implique na supressão da Prefeitura ou da Câmara. Trata-se de introduzir um novo elemento, mais amplo e democrático, na esfera da divisão de poderes ao nível local, da mesma forma que já existe uma divisão de atribuições entre o Legislativo e o Executivo. E seria ridículo afirmar que a Câmara é um poder paralelo em relação à prefeitura! Certamente a introdução desse terceiro elemento - os conselhos populares - provoca tensões, produz disputas e conflitos, que entretanto se dão dentro de um quadro global que é de complementariedade e não de exclusão.

A grande importância estratégica que o florescimento dos conselhos traz é a de abrir espaços para que as decisões sobre a vida do município passem pela discussão e pelo controle da população. Esse é um importante elemento de cultura socialista. Mais importante ainda num país como o nosso, dotado de uma cultura excludente, em que política para muitos é entendida como coisa das elites e com a qual a população não tem nada a ver.

Avançar nesse rumo é decisivo para quem, como o PT, quer construir uma sociedade socialista e democrática.

Fora disso, qualquer interpretação mais ousada não fugirá da tradição de setores da esquerda brasileira de construir brilhantes estratégias que se esboroam ao primeiro contato com a realidade. E o PT veio para superar essa tradição.

Ricardo de Azevedo é membro da Executiva Estadual do PT-SP e do Conselho de Redação de Teoria e Debate.