Lélia foi uma entre as milhares de pessoas que, com sua dignidade humana ferida, produziram a virada
Lélia foi uma entre as milhares de pessoas que, com sua dignidade humana ferida, produziram a virada
Naquela quarta-feira à noite, 9 de novembro, Alipio Freire não pôde comparecer à segunda sessão desta entrevista. Organizador da vigília de várias entidades para acompanhar os desdobramentos do massacre dos trabalhadores em Volta Redonda, ocorrido horas antes, ele não teve como afastar-se do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, onde se instalara logo no início da tarde. Coube a mim conduzir o depoimento de Lélia Abramo, que se estendeu das 20h00 às 23h00. Fomos interrompidos umas poucas vezes, pois estávamos na sede regional do PT, na rua dos Franceses, onde a privacidade é impossível. Seria, de todo modo, indesejável. Vimos Luiza Erundina lamentar a intervenção militar na usina de Volta Redonda, durante seu horário de propaganda eleitoral pela TV. Pouco depois, José Américo, da Executiva Estadual, entrou na sala para nos passar as últimas notícias sobre o número de mortos. "Entre três e cinco, um deles a golpes de baioneta", ele informou. Embora ultrajados com a tragédia, conseguimos concluir nosso trabalho de gravação e, ao final, quando me dispus a acompanhar Lélia Abramo até seu apartamento na rua Avanhandava, no centro de São Paulo, ela sugeriu que fôssemos antes até o Sindicato dos Jornalistas.
Devo confessar minha surpresa diante da disposição física da militante que, no próximo dia 8 de fevereiro, completará 78 anos de idade. Só sairíamos do sindicato depois de uma da manhã. Lélia participou ativamente dos debates em curso, defendeu propostas, ouviu os companheiros. Minha surpresa era bobagem, logo percebi, pois a quinta filha do casal Vincenzo e Yole Afra Abramo agiu como agia sempre. Trotskista como seu irmão mais velho Fúlvio, Lélia tem parte com a coragem. Como seu avô materno Bortolo, anarquista, cultiva um profundo senso de justiça, capaz de dar coerência a uma vida. Como o pai, é uma humanista.
Mas talvez o traço dominante da personalidade de Lélia Abramo não esteja refletido no terreno da política. Talvez pertença aos domínios da arte. A exemplo de sua mãe e do irmão Lívio, ela é dona de sensibilidade, vocação e talento artístico. Tinha quase 50 anos quando realizou o sonho mais acalentado: ser atriz profissional. Estreou em 1958, na peça Eles não usam black-tie. Ganhou todos os prêmios daquele ano. Exatos vinte anos depois ela assumiria a Presidência do Sindicato dos Artistas de São Paulo. Sua atuação no cargo, ao longo de 4 anos, foi histórica, para o bem e para o mal. Para o bem: seu papel junto às greves dos metalúrgicos de São Bernardo e no nascimento do PT, sua combatividade à frente de uma categoria até então desorganizada, tudo isso a credencia como um dos vultos do último período político. Para o mal: as emissoras de TV não mais a contratam. O mercado de trabalho tornou-se muito mais inóspito. Hoje, quando completa 30 anos de carreira artística, Lélia Abramo dá aulas a um grupo de teatro comunitário na periferia, num programa patrocinado pela Secretaria de Estado da Cultura. Foi jurada do Prêmio Shell de Teatro e do Prêmio Lei Sarney do ano passado. Fora isso, milita de muitas formas. Seja na promoção, em seu apartamento, das primeiras reuniões que discutiram a questão cultural no Partido dos Trabalhadores, em 1980, com Roberto Schwarz, Antonio Candido, Bete Mendes e Maurício Segall, seja comparecendo, às onze horas da noite, a uma vigília cívica no Sindicato dos Jornalistas. Seja acompanhando a candidata Luiza Erundina para todo lado, seja expressando seu repúdio como cidadã ao massacre dos trabalhadores de Volta Redonda.
Do fundo daquele repúdio, emergia a força de uma militante de coragem testada. Mas emergia também uma força ainda mais intensa, mais caudalosa e implacável. A cada entidade que aderia à vigília, fazia-se sentir a capacidade da sociedade brasileira de escandalizar-se com os selvagens recursos da dominação e de solidarizar-se com os oprimidos. Naquela noite, muita coisa estava virando dentro deste país. Lélia foi uma entre as milhares de pessoas que, com sua dignidade humana ferida, produziram a virada. Ela não era estrela naquela quarta-feira. A sua vida, um trajeto irregular, acidentado, com dias de brilho fulgurante e noites de absoluto anonimato, constitui um todo coerente e, simultaneamente, apaixonado. É uma vida desigual, por certo. Mas harmonicamente combinada dentro da luta permanente.
Lélia, na década de 1930 você pertenceu à Liga Comunista Internacionalista, liderada por Mário Pedrosa. Era uma organização trotskista, pois não?
É, bolchevique e leninista. Eu e vários outros militávamos, mas não éramos elementos filiados à organização. A organização só filiava após um período de militância, depois de você provar que realmente tinha decidido lutar contra o Estado capitalista, dando provas dessa postura ideológica e política na prática. E isso você só pode demonstrar na ação, você não pode demonstrar em palavras. Naquele tempo não era bem como hoje, quando as coisas são muito mais diluídas.
Parece que no dia 7 de outubro de 1934, no dia da Frente Única Antifascista, quando militantes socialistas, anarquistas, comunistas e trotskistas colocaram 6 mil integralistas para correr, numa batalha campal na praça da Sé, você foi uma das que transportou as armas...
Eu não. A mim entregaram uma arma, mas não fui eu quem carregou. Foi uma coisa tão terrível, tão impressionante, que certos detalhes eu nem percebi direito. Na noite anterior, houve uma reunião entre a cúpula do Partido Comunista, os anarquistas, os socialistas e a organização trotskista. Eu estava no Sindicato dos Comerciários, ali na Praça da Sé, de cuja direção participava, mas não sabia da reunião. Na frente tinha o Sindicato dos Bancários. Muitas vezes eu ficava aqui na assembléia dos comerciários, descia a escada, atravessava a rua, e ia lá. Porque eu também trabalhei em um banco. Então eu era bancária e comerciária. Nós éramos elementos de base, não estávamos a par dos movimentos das cúpulas. Nós só recebíamos ordens. Naquele tempo era muito diferente de hoje. Havia um escalonamento hierárquico, que era necessário pois a perseguição era feroz, e se os partidos clandestinos não tivessem a organização férrea teriam sido dizimados, como nos anos 60 e 70, em que ocorreu uma mortandade. Os grandes líderes morreram assassinados da maneira mais bárbara e, sobretudo, da maneira mais lamentável possível, porque deveriam ter sido resguardados. O chefe você não expõe. Isso é contra a teoria da luta clandestina. Bem, mas nessa noite anterior...
Só uma coisa: você está dizendo que o chefe não se expõe. Mas naquela época os chefes da organização trotskista eram o Fúlvio e o Mário Pedrosa, que se expuseram escandalosamente.
Sim, mas estes eram obrigados. Eles eram os elementos atuantes.
Mário Pedrosa até foi ferido...
Foi. Recebeu um tiro. Mas, nessa noite anterior, nós recebemos a ordem, cada um da sua respectiva organização e depois da Frente Antifascista: estar no dia seguinte, às tantas horas, na praça. E recebemos as ordens daqueles que organizavam a distribuição dos elementos, porque cada partido distribuíra seus filiados em determinadas zonas nas proximidades da Praça da Sé. Aquelas ruas adjacentes à praça, todas elas eram ocupadas por membros dos vários partidos. Eram artistas, comunistas, trotskistas, socialistas, anarquistas... Eu estava com meus colegas trotskistas, bem perto da escadaria da catedral, onde estavam concentrados os integralistas. E nossos dirigentes disseram: "Quando vocês receberem ordens, atirem". É claro que não eram militares que estavam dirigindo a ofensiva [risos], eram militantes comunistas. Não sei se entendiam de estratégia de guerra, mas havia um esboço de estratégia. Eu sei que a ordem era deixar passar as crianças, aqueles menininhos todos fardados. Os integralistas fizeram de propósito, levaram as crianças e as mulheres fardadas. E a ordem era deixar passar as crianças, as mulheres e depois avançar. E foi isso que nós fizemos. Foi terrível, foi um tiroteio feio, pois alguns reagiram. A cavalaria estava ali. Não sei que partido eles tomaram, isso não ficou bem claro, sei que tinha muita fumaça, muita correria, muito grito. Os tiros passaram por cima da gente.
Você nem atirou?
Não. Mas o tiroteio foi bem grande. Como é que eu ia pensar? Eu nem pensei. Eu seria incapaz de dar um tiro, teria morrido, isso sim. Para isso a gente estava lá. Mas para dar um tiro... eu não.
Vivendo histórias assim, dos socialistas em batalha corporal contra os integralistas, luta de classes a céu aberto, você deveria ter uma formação política bastante sólida...
A minha formação foi a seguinte: meu pai era um grande humanista, era um intelectual, um homem puro. Por exemplo, quando eu era menina, adolescente, na minha casa havia seis ou sete empregados, que ele tratava com muita generosidade, tudo muito igual. Ele era um homem inteligente, culto. Falava quatro línguas. Tinha muitos livros em casa. Foi na biblioteca de papai que a gente começou a ler, e a ler tudo. Com 15 anos eu já lia Dostoievski, lia Flaubert, Balzac, Anatole France. Com 17 anos já tinha lido grande parte da literatura inglesa, francesa, russa. Brasileira é que eu não lia nada. Essa é a grande falha, porque nós tivemos uma educação puramente européia, ao contrário de todos os italianos daqui, da maioria absoluta, que eram todos de extração humilde, sem cultura.
Então você não lia literatura brasileira. Em que línguas você lia?
Lia em italiano. Nós líamos em italiano, em espanhol, em francês. Por que, eu não sei. Eu me lembro de que, muito menina ainda, eu já lia francês. Não sei como aconteceu isso, não tenho idéia, nem lembro, só depois eu entrei num colégio francês... Não estudei no Dante Alighieri como eu queria, mas minha mãe não quis. Minha mãe pôs os filhos, o Fúlvio, o Lívio, o Athos, no Instituto Médio Dante Alighieri, que era o maior colégio da América Latina naquele tempo. Eles estudavam o dia inteiro, almoçavam e voltavam ao estudo. E lá se ensinava o grego, o latim. O italiano era língua obrigatória. Todas as matérias eram em italiano, porque aquilo lá era um território italiano e eles estudavam o português como uma língua estrangeira, como o francês e o inglês. E tinham uma opção para o espanhol ou alemão.
Só os homens freqüentavam este colégio?
Não, homens e mulheres. Era um colégio misto.
Mas você não foi para lá...
Não. Minha mãe não me pôs no Dante Alighieri, para minha consternação e indignação, pois eu queria ir para lá.
Para onde, afinal de contas, você acabou indo?
Eu fui aprender a ler numa escolinha particular e depois fui para um colégio de freiras, francês.
Sua mãe também era italiana?
Era italiana. Era filha de um anarquista. Meu avô, Bortolo Scarmagnan, era muito interessante. Era anarquista e a família era contra. Achava que ele era perigoso [risos]. Quando na Itália, depois da Unificação, começou aquele período difícil, de miséria, que não tinha trabalho e tinha muita perseguição contra a esquerda, sobretudo aos socialistas e aos anarquistas, meu avô veio embora. Ele era casado, já tinha filhos, e assim minha mãe chegou aqui no dia da Proclamação da República, no dia 15 de novembro. Vai fazer um século. Nesse dia eles não puderam descer do navio; os navios estrangeiros ficaram ao largo. Depois desceram, naturalmente, e meu avô se instalou em São Paulo. Vovô era bastante danado. Dizia, "Ah! eu não enxergo direito, leia, leia para mim", e fazia a gente ler. Então eu lia Kropotkin com 11, 12 anos. É claro que a gente não entendia direito, mas aquilo deve ter ficado na nossa cabeça, claro. Meu avô nunca falou em português, jamais. Ele falava em vêneto ou italiano. Os discursos dele eram em italiano. E todo mundo entendia. São Paulo tinha 700 mil habitantes, 450 mil eram italianos. Essa cidade era tipicamente italiana e era absolutamente civilizada. Era uma bela cidade. Não existe mais a cidade em que eu nasci, em que vivi a minha infância, adolescência. Não existe mais, não tem mais nada.
Sua consciência social começou a se formar desde então?
Eu perguntava por que existia gente pobre e gente rica. Tinha uns 6 ou 7 anos quando comecei a indagar isso para os mais velhos, e cada um me dava uma resposta. Mas acho que eu nunca me satisfiz com as respostas. A resposta eu mesma procurei.
Que resposta, por exemplo?
Quando, por exemplo, eu descobri que havia prostituição. Mesmo criança, a gente percebe certas coisas. Então, eu me perguntava: por que existe a prostituta? Eu tinha 8 ou 9 anos. Além disso, havia a influência do meu pai, que odiava a burguesia. Era isso. Eu acho que a nossa guinada à esquerda se deve muito mais a isso do que à influência do meu avô materno, que era anarquista. Não acredito muito na influência do meu avô, acho que foi muito pouca. Ao contrário do que os meus irmãos pensam, eu não penso assim.
Você aceitou bem o fato de não ir, como os homens, estudar no Dante Alighieri? Não te pareceu injusto?
Eu compreendi. Porque a minha mãe achava que o colégio francês, e nisso ela tinha razão, preparava mais as moças, compreende? Para a sociedade, para a vida. Nos ensinava os bordados mais belos. Eu sei fazer tudo: rendas, bordados... [risos]. Eu aprendi tudo. Como se serve um chá. Minha mãe achava que era melhor para as filhas aprender tudo isso. Minha mãe era louca por arte. Ela foi uma mulher que com 70 anos começou a pintar. Coisas bonitas!
Você começa a trabalhar, a ter uma profissão, com que idade?
Bom, só depois dos 21 anos. Depois que meu pai perdeu a última fábrica dele, que era uma serraria. Ele podia também ter ficado muito rico, porque era uma empresa no Paraná e lá havia muita madeira, mas ele acabou se atritando com o sócio. Não sei o que aconteceu. Perdeu tudo. E aí, realmente, desanimou. Foi nesse momento que eu me tornei realmente socialista. Porque eu fui trabalhar no escritório de uma fábrica de passamanarias. E acontece que eu fui cuidar das tabelas de produção...
Você fazia a conta exata da mais-valia?
Isso mesmo! Então fazia o cálculo do terreno, o cálculo da construção, o cálculo da instalação da fábrica, da compra da maquinaria, o cálculo da folha de pagamento dos operários, tudo entrava naquele cálculo. Aí eu compreendi o mecanismo da sociedade capitalista.
E aí você entendeu?
Aí eu entendi. Os operários ganhavam uma miséria. Os proprietários eram riquíssimos. Meu Deus, os operários viviam tão mal, comiam naquelas marmitas. Aí, na hora do almoço, passei a ficar com eles. Passei a falar das injustiças da sociedade burguesa, capitalista. Fazia propaganda.
Você ficou muito tempo nessa empresa?
Fiquei pouco, porque com minhas conversas fui despedida. O chefe, o dono, me chamou e disse: "Dona Lélia, eu estou muito decepcionado com a senhora, a senhora não pode ficar aqui, a senhora está fazendo propaganda comunista." Eu disse: "Por que o senhor paga mal os operários? O senhor é tão rico." A nossa conversa foi boa, foi amigável, mas ele me mandou embora. Nessa altura eu já participava da diretoria do Sindicato dos Comerciários, a convite de um amigo meu.
Quem era esse seu amigo?
Eu não me lembro mais. Ih, depois ele virou espírita, eu o perdi de vista. Era absolutamente apolítico. Naquela época estava se formando o sindicato. O Sindicato dos Comerciários começou conosco, com pouca gente, naturalmente. Nós saíamos à rua, éramos fiscais também. Nós tínhamos o direito de fechar as lojas da cidade, todas, porque nenhuma obedecia horário. O Getúlio [Vargas] acabara de instituir a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Pela lei as lojas deviam fechar às 18 horas, mas ficavam abertas até as 22 horas. Nós, do sindicato, saíamos à noite nas ruas Direita e São Bento, e fechávamos as lojas.
Você fazia isso muitas vezes?
Fizemos até o comércio obedecer a lei. Tanto é verdade que esse sindicato, que começou com 200, 300 ou 400 sócios, foi para 12 mil ou 14 mil sócios, em pouco tempo.
Você começou a trabalhar e continuou a morar com seus pais?
Aqui no Brasil. Sempre morei com meus pais. Eu tinha me apaixonado por um dos chefes do Partido Comunista. Mas nós não pudemos nos casar. O PC não deixou... deram a ordem para ele: "Diga a ela que você só casa se ela entrar no Partido." E eu não ia aceitar. Depois veio a Intentona e ele sumiu.
Mas você vai para a Itália ainda jovem. Por quê?
Foi em 1938. Fui para me tratar de fortes enxaquecas que tinha e que os médicos aqui já não conseguiam resolver. O médico da nossa família dizia: "A Lélia vai morrer." Meu cunhado era tenente-coronel do Exército italiano e foi convocado para voltar à Itália, designado comandante de uma guarnição na fronteira com a Iugoslávia. Eu e minha irmã Beatriz fomos morar numa cidadezinha muito pequena, de 4 mil habitantes. E meu cunhado tinha dito: "Olha, Lélia, eu te levo para a Itália para você se tratar, mas tome cuidado que eu não posso ser comprometido." Eu disse: "Eu não vou te comprometer." Mas é claro que fui lá fazer minha sondagem, procurava saber. O que eu constatei na Itália é que o povo italiano, na sua grande maioria, não era fascista. Isso eu fui constatar depois de alguns anos que estava lá. Mas para ter um emprego era preciso pertencer ao partido. O povo italiano pertencia ao partido porque só assim conseguiria um emprego. Mas havia uma rede antifascista subterrânea que circulava pela Itália inteira e era organizada. Eu já tinha sofrido uma cirurgia e tive de ficar, para fazer uma segunda operação. Aí estourou a guerra. Foi quando eu pedi a repatriação. Porque logo foram interrompidas as relações entre Itália e Brasil. Pedi a repatriação em Roma, e a embaixada brasileira negou. Fui ao consulado de Gorizia, fui a Trento, a Milão, a Gênova, a Nápoles. Nenhum consulado quis me repatriar porque eu era filha de italianos e os diplomatas brasileiros diziam que eu era italiana. Segundo um acordo entre Getúlio e a Itália, todo filho de italiano nascido no Brasil era italiano na Itália.
O que você fez então?
Fui para Roma, procurar emprego. Consegui um. Disputei com umas 60 candidatas e quando foi a minha vez de ser entrevistada, à parte o fato de que eu era a mais bonitinha de todas, fui fazer o exame junto ao chefe do escritório. Eu estou contando este detalhe para você ver o que era a Itália. Fiz o teste e perguntei a ele: "É necessário pertencer ao partido para ter emprego?" Ele disse: "É claro, a senhora não pertence ao partido?" Respondi: "Não, eu sou brasileira." E ele disse: "Mas isso não quer dizer nada. A senhora é filha de italianos, então a senhora é italiana. A senhora tem que pertencer ao partido." Aí eu me levantei e disse: "Bom, então desisto do emprego, porque eu sou antifascista" [risos]. Então, eu cometi essa gafe, meu Deus. Aí ele olhou para mim, deu uma risadinha e disse: "A senhora é antifascista; bem, a senhora pode voltar para casa que depois lhe darei uma resposta." Quando cheguei em casa, minha irmã disse: "Agora você nunca mais consegue emprego, esse camarada não vai chamar você." Daí a uns dias ele me chamou. Depois, mais tarde, eu soube: ele fazia parte daquela rede de pessoas que faziam tudo contra o fascismo. Eles se chamavam de La Caserna. Esse é apenas um detalhe que estou contando.
Um detalhe muito importante...
Logo depois as autoridades diplomáticas brasileiras foram chamadas de volta ao Brasil, porque o país já tinha declarado guerra à Itália. Aí a questão ficou muito grave. Voltei para a embaixada, para pedir minha repatriação. Negaram. O embaixador do Brasil, que estava no Grande Hotel em Roma, disse: "Ah, minha filha, para nós você é italiana, portanto você fica aqui. Isso vai acabar logo." Eu disse a ele: "Não, Vossa Excelência sabe muito bem que isso vai durar anos, e eu vou sofrer muitas coisas. E o responsável é o senhor, que está me impedindo de voltar para minha terra." Ele deu uma risadinha, se despediu, e ficou por isso mesmo. Aí depois de uns dias...
Quem era esse embaixador?
Não me lembro do nome dele. Depois de uns dias, recebi ordem de expulsão de Roma. Peguei essa ordem de expulsão e fui até o chefe de polícia da seção estrangeira: "Olha aqui, eu recebi essa ordem de expulsão. O que é que eu faço? Eu sou brasileira, não sou italiana, o que é que eu sou?" Ele disse: "A senhora tem de ir embora, porque a senhora é cidadã inimiga. E tem nome judeu, ainda por cima. Se os alemães entrarem em Roma, a senhora vai ser mandada para a Alemanha". Respondi que não tinha como e nem para onde fugir, ao que ele me apareceu com uma alternativa: "Escreve uma carta dizendo que a senhora admira Mussolini, que a senhora tem orgulho de ser italiana e fascista." Foi o momento crucial da minha vida. Eu disse: "Não, isso eu não faço." O policial disse: "A senhora sabe que está diante do chefe de polícia fascista?" Eu disse: "Sei. Você pode mandar me fuzilar agora. Eu sou antifascista e jamais vou escrever essa carta para o senhor." Ele deu uma risadinha e disse: "Então a senhora faz um favor, a senhora escreve uma carta dizendo que tem orgulho de ser italiana." "Bem", disse eu, "isso eu tenho mesmo". E assinei a carta. Mas, depois eu soube, ele não iria me fuzilar. Isso ele faria se fosse fascista, mas ele também era da Caserna. Era o chefe de polícia e era um antifascista. Isso constatei mais tarde, quando, após a guerra, tive de me apresentar no Departamento de Estrangeiros da Polícia e ele continuava lá, no mesmo posto. Quer dizer, o fascismo tinha caído, não ele. Ele era antifascista e por isso me salvou. Eu não conto isso para quase ninguém porque ninguém acredita. Uma vez eu contei isso na Globo para uns colegas, numa hora de intervalo da novela, e um colega me disse: "Mentira, você não teria coragem de fazer isso. Nem se você jurar eu acredito." Mas foi assim. É claro que durante a guerra a vida não tem nenhum valor. Nós estávamos debaixo de "metralhamento" todo dia. Os americanos metralhavam o povo romano todo dia. Roma sofreu 33 bombardeios menores e dois grandes bombardeios. É mentira que os americanos não bombardeavam. Eles bombardearam e destruíram muita coisa em Roma.
E depois da carta, o que é que aconteceu com você na Itália?
Depois da carta, continuei morando em Roma e continuei trabalhando. Eu trabalhava numa produtora de cinema: Artisti Associati. Porque essa idéia de ser atriz sempre me atormentou, a vida inteira. Queria ser atriz, e queria ser militante, queria ser médica. Mas o que eu queria mesmo era ser atriz. Eu era muito magra, embora fosse bonitinha. Quando pedia para o diretor para que me experimentasse, só num teste, ele dizia: "Você precisa engordar." Eu respondia: "Mas como é que eu engordo se nós estamos numa guerra?" Eu pesava 54 quilos, e ele afirmava: "Nós, os italianos, gostamos de gordinhas."
E você fazia o que na produtora?
Eu era correspondente da firma, da seção de distribuição dos filmes.
Era aquele emprego que o cara te deu?
É, daquele chefe de escritório, que também era antifascista.
Era o Remo, não era? Vocês depois ficaram juntos, não?
Sim, era o Remo Cipriani. Ficamos juntos cinco anos, mas não nos casamos.
E quando é que você volta ao Brasil?
Em 1950. Minha irmã se separou do marido e aí eu tive de voltar, porque ela era doente, meu pai tinha falecido também, e eu precisei voltar. Meus irmãos insistiram para que eu voltasse.
Você e sua irmã?
É. Eu e minha irmã. Ah! Tem uma coisa que eu esqueci de falar. Lembra daquele moço com quem não pude casar? No dia em que voltei recebi um recado dele. No dia seguinte nos encontramos e, naturalmente, reatamos o elo perdido.
E o Remo ficou?
Ficou. Eu já tinha me separado dele nessa altura das coisas.
E vocês voltaram a se ver?
Não. Só voltei a falar com ele em 1973, quando visitei Roma, depois de 23 anos. Fiquei em Roma quase dois meses. Fiquei um mês entre Paris, Espanha e Bélgica, e depois fiquei dois meses e meio em Roma. No último dia, em Roma, telefonei para ele.
E vocês só se falaram pelo telefone?
É. Só pelo telefone.
E você não quis mais vê-lo?
Não. Não quis. Porque foi bobagem a gente ter rompido. Não foi por minha causa... Mas o que me agradou muito nessa conversa que tivemos depois de 23 anos é que Remo se mantinha trotskista [risos].