Internacional

O escritor e diretor da Campanha Palestina pede o fim de toda a ajuda ao Estado de Israel e acusa: "A liderança sionista colaborou com os piores perseguidores dos judeus durante o século XIX e o século XX, incluindo os nazistas"

Ralph Schoenman foi diretor-executivo da Fundação pela Paz Bertrand Russel, papel por meio do qual conduziu negociações com inúmeros chefes de Estado. Com seu trabalho assegurou a libertação de prisioneiros políticos em muitos países e fundou o Tribunal Internacional dos Crimes de Guerra dos Estados Unidos na Indochina, organização da qual foi secretário-geral. Velho militante na vida política, fundou o Comitê dos 100, que organizou a desobediência civil massiva contra as armas nucleares e as bases americanas na Grã-Bretanha. Foi também fundador e diretor da Campanha de Solidariedade ao Vietnã e diretor do Comitê "Quem Matou Kennedy?".

Tem sido líder do Comitê por Liberdade Artística e Intelectual no Irã e co-diretor do Comitê em Defesa dos Povos Palestino e Libanês e do Movimento de Solidariedade de Trabalhadores e Artistas Americanos. Atualmente é diretor executivo da Campanha Palestina, que clama pelo fim de toda ajuda a Israel e por uma Palestina laica e democrática.

Em seu livro The Hidden History of Zionism (A História Oculta do Sionismo), você descreve quatro mitos sobre a história do sionismo. Nós gostaríamos que você explicasse um pouco seu livro.
O meu trabalho na Fundação Bertrand Russel foi importante por me dar a chance de documentar fatos da formação do Estado sionista de Israel. Em cursos e palestras que proferi em mais de uma centena de universidades americanas e européias, pude constatar que as pessoas não sabiam, não tinham conhecimento da história do movimento sionista, dos seus objetivos e de vários fatos. Nessas ocasiões deparei-me com concepções equivocadas sobre a natureza do Estado de Israel e foi isso que impulsionou o meu trabalho de escrever o livro, The Hidden History of Zionism, no qual eu abordo o que chamo de os quatro mitos que têm moldado a consciência nos Estados Unidos e na Europa sobre o sionismo e o Estado de Israel.

Quais são esses quatro mitos?
O primeiro mito é o da "terra sem povo para um povo sem terra". Os primeiros teóricos sionistas, como Theodor Herzl e outros, apresentaram para o mundo a Palestina como uma terra vazia, visitada ocasionalmente por beduínos nômades; simplesmente, uma terra vazia, esperando para ser tomada, ocupada. E os judeus eram um povo sem terra, que se originaram historicamente na Palestina; portanto, os judeus deveriam ocupar essa terra. Desde o começo, os primeiros núcleos de colonos, promovidos pelo movimento sionista, foram caracterizados pela remoção, pela expulsão armada da população palestina nativa do local onde essa população vivia e onde essa população trabalhava.

Quais os outros três mitos?
Segundo mito que o livro pretende discutir é o mito da democracia israelense. A propaganda sionista, desde o início da formação do Estado de Israel, tem insistido em caracterizar Israel como um Estado democrático no estilo ocidental, cercado por países árabes feudais, atrasados e autoritários. Apresentam então Israel como um bastião dos direitos democráticos no Oriente Médio. Nada poderia estar mais longe da verdade. Entre a divisão da Palestina e a formação do Estado de Israel, num período de seis meses, brigadas armadas israelenses ocuparam 75% da terra palestina e expulsaram mais de 800 mil palestinos, de um total de 950 mil. Eles os expulsaram por meio de sucessivos massacres. Várias cidades foram arrasadas, forçando assim a população palestina a refugiar-se nos países vizinhos, em campos de concentração e de refugiados. Naquele tempo, no período da formação do Estado de Israel, havia 475 cidades e vilas palestinas, que caíram sob o controle israelita. Dessas 475 cidades e vilas, 385 foram simplesmente arrasadas, deixadas em escombros, no chão, apagadas do mapa. Nas 90 cidades e vilas remanescentes, os judeus confiscaram toda a terra, sem nenhuma indenização. Hoje, o Estado de Israel e seus organismos governamentais, tais como o da Organização da Terra, controlam cerca de 95% da terra palestina. Pela legislação existente em Israel, é necessário provar, por critérios religiosos ortodoxos judeus, a ascendência judaica por linhagem materna até a quarta geração, para poder possuir terra, trabalhar na terra ou mesmo sublocar terra. Como eu digo sempre, nas palestras em que apresento meus pontos de vista, em qualquer país do mundo (seja Brasil, EUA, onde for), se fosse necessário preencher requisitos parecidos com esses, ninguém duvidaria do caráter racista de tal Estado; seria notória a existência de um regime fascista.

A Suprema Corte em Israel tem ratificado que Israel é o Estado do povo judeu e que, para participar da vida política israelense, organizar um partido político, por exemplo, ou ter uma organização política, ou mesmo um clube público, é necessário afirmar que se aceita o caráter exclusivamente judeu do Estado de Israel. É um Estado colonial racista, no qual os direitos são limitados à população colonizadora, na base de critérios raciais. O terceiro mito do qual falo em meu livro é aquele criado para justificativa da política de Israel, que se diz baseada em critérios de segurança nacional. A verdade é que Israel é a quarta potência militar do mundo. Desde 1948, os EUA deram a Israel US$ 92 bilhões em ajuda direta. A magnitude dessa soma pode ser avaliada quando observamos que a população israelense variou entre 2 a 3 milhões nesse período. Se o governo americano dá algum dinheiro para países como Taiwan, Brasil, Argentina, e a aplicação desse dinheiro tiver alguma relação com fins militares, a condição é que as compras desse material têm que ser feitas dos EUA. Mas há uma exceção: as compras de material bélico podem ser feitas também de Israel. Israel é tratado pelos EUA como parte de seu território, em todos os assuntos comerciais. O que motivaria uma potência imperialista a subsidiar tanto um Estado colonial? A verdade é que Israel não pode mesmo existir sem a ajuda americana, sem os US$ 10 bilhões anuais. Israel é, portanto, a extensão do imperialismo na região do Oriente Médio. Israel é o instrumento por meio do qual a revolução árabe é mantida sob controle. É, portanto, o instrumento através do qual as ricas reservas do Oriente Médio são mantidas sob o controle do imperialismo americano. É também um meio pelo qual os regimes sanguinários dos países árabes são mantidos no governo, graças ao clima de tensão gerado por uma possível invasão israelense. O quarto mito a que me refiro no livro, que tem influenciado a opinião pública mundial, refere-se à origem do sionismo, à origem do Estado de Israel. O sionismo tem sido apresentado como o legado moral do holocausto, das vítimas do holocausto. O movimento sionista tem como que se "alimentado" da mortandade coletiva dos 6 milhões de vítimas da exterminação nazista na Europa. Esta é uma terrível e selvagem ironia. A verdade é bem o oposto disso. A liderança sionista colaborou com os piores perseguidores dos judeus durante os séculos XIX e XX, incluindo os nazistas. Quando alguém tenta explicar isso para as pessoas, elas geralmente ficam chocadas, e perguntam: o que poderia motivar tal colaboração? Os judeus foram perseguidos e oprimidos por séculos na Europa e, como todo povo oprimido, foram empurrados, impelidos a desafiar o establishment, o status quo. Os judeus eram críticos, eram dissidentes. Eles foram impelidos a questionar a ordem que os perseguia. Então, o melhor das mentes da inteligência judia foi impelido para movimentos que lutavam por mudanças sociais, ameaçando os governos estabelecidos. Os sionistas exploraram esse fato a ponto de dizer para vários governos reacionários, como o dos mares na Rússia, que o movimento sionista iria ajudá-los a remover esses judeus de seus países. O movimento sionista fez o mesmo apelo ao kaiser na Alemanha, obtendo dele dinheiro e armas. Eles se reivindicavam como a melhor garantia dos interesses imperialistas no Oriente Médio, inclusive para os fascistas e os nazistas.

Como se deu essa colaboração dos sionistas com os nazistas?
Em 1941, o partido político de Itzhak Shamir (conhecido hoje como Likud) concluiu um pacto militar com o 3º Reich alemão. O acordo consistia em lutar ao lado dos nazistas e fundar um Estado autoritário colonial, sob a direção do 3º Reich. Outro aspecto da colaboração entre os sionistas e governos e Estados perseguidores dos judeus é o fato de que o movimento sionista lutou ativamente para mudar as leis de imigração nos EUA, na Inglaterra e em outros países, tornando mais difícil a emigração de judeus perseguidos na Europa para esses países. Os sionistas sabiam que, podendo, os judeus perseguidos na Europa tentariam emigrar para os EUA, a Grã- Bretanha, o Canadá. Eles não eram sionistas, não tinham interesse em emigrar para uma terra remota como a Palestina. Em 1944, o movimento sionista refez um novo acordo com Adolf Eichmann. David Ben Gurion, do movimento sionista, mandou um enviado, de nome Rudolph Kastner, para se encontrar com Eichmann na Hungria e concluir um acordo pelo qual os sionistas concordaram em manter silêncio sobre os planos de exterminação de 800 mil judeus húngaros e mesmo evitar resistências, em troca de ter 600 líderes sionistas libertados do controle nazista e enviados para a Palestina. Portanto, o mito de que o sionismo e o Estado de Israel são o legado moral do holocausto tem um particular aspecto irônico, porque o que o movimento sionista fez quando os judeus na Europa tinham a sua existência ameaçada foi fazer acordos, e colaborar com os nazistas.

Stylianos Tsirakis é arquiteto.

O livro chega ao Brasil

Em 1989, The Hidden History of Zionism (A História Oculta do Sionismo), de Schoenman será lançada em português

Fato inusitado, o sr. Fernando Henrique Cardoso, senador da (Nova) República, terminou sua coluna na Folha de S. Paulo saindo em defesa do Estado de Israel. Ele, ou os interesses que representa, reagia assim a um ato público, realizado dias antes em defesa do povo palestino. Promovido pelo Sindicato dos Médicos, presentes a CUT, o PT, o PCB e o PCdoB, além da representação da OLP (Organização para a Libertação da Palestina), o ato contou corri a presença especial de Ralph Schoenman, vindo dos EUA para a ocasião. Repercutia entre nós a campanha internacional, lançada nos EUA, "Pelo Fim de Toda Ajuda ao Israel-Apartheid, por uma Palestina Laica e Democrática".

Desde o início, a campanha tivera a adesão de importantes intelectuais brasileiros, como Raimundo Faoro, Paulo Freire, Florestan Fernandes e Francisco Weffort. Agora ela ganhava adesões nos meios sindicais e políticos (no Brasil, Schoenman encontrou-se com diferentes lideranças em São Paulo, Rio e Brasília). Isso parece ter constrangido o sr. Fernando Henrique Cardoso.

Mas o incômodo deve crescer. É que em 1989 será lançada no Brasil A História Oculta do Sionismo, de Schoenman. Publicada este ano nos EUA (Veritas Press, Santa Bárbara, Califórnia), a obra vem encontrando importante repercussão, tendo já ganhado traduções francesa e espanhola. Não por acaso. Ralph, que nos anos 60 foi secretário do Tribunal Internacional Bertrand Russel sobre os Crimes de Guerra Americanos na Indochina, desmonta neste livro as mentiras da "história" oficial do sionismo. Não sobra nem o chamado "sionismo de esquerda".

Por trás dos mitos

Apoiando-se em farta documentação histórica e sociológica, Schoenman mostra a falsidade dos mitos em torno dos quais o sionismo procura justificar-se:

1º "Uma terra sem povo para um povo sem terra." Procura-se apresentar a Palestina pré-lsrael como um deserto vazio, civilizado e ocupado pela imigração sionista; tenta-se esconder assim a rica tradição cultural dos palestinos para negar-lhes o direito histórico a reclamar o território, negar enfim sua identidade como nação.

Schoenman mostra a guerra traída pelas milícias sionistas para expulsar a população, destruir as aldeias em seguidos massacres, "despopulacionar" o território, como diziam líderes sionistas.

2º "Israel, única democracia do Oriente Médio." O mito visa esconder a natureza desse Estado democrático, baseado na exclusão étnica, praticamente tão democrático para os judeus quanto o Estado-apartheid da África do Sul para os brancos. Um lugar onde, para ser proprietário de um pedaço de terra, é preciso provar a ancestralidade judaica – "filho de ventre judeu", segundo o preceito bíblico – por três gerações!

O livro traz uma ampla documentação sobre a legislação ultra-repressiva, sobre o emprego sistemático da tortura, os campos de prisioneiros e os métodos de prisão em massa contra o movimento nacional palestino.

3º "A segurança de Israel é o móvel de sua política externa". É o mito em que se esteia a quarta potência militar do mundo. O que se demonstra, na realidade, é uma estratégia de conquista, de dividir para reinar, apoiando-se nos frágeis, corruptos e opressivos regimes árabes da região.

O ideal do expansionismo, que vem dos fundadores do sionismo, é sustentado hoje pelo imperialismo norte-americano. De 1949 a 1983, Israel recebeu subvenção dos governos norte-americanos, no valor de 92 bilhões e 200 milhões de dólares. A dissolução do Líbano, por exemplo, foi proposta em 1919, planificada e 1936, lançada em 1954 e realizada 1982.

4º "O sionismo é o legatário moral das vítimas do holocausto." O mais cruel dos mitos, ao menos para os judeus. Pois o sionismo, corrente historicamente minoritária na comunidade judaica, só se consolida nos pós-guerras graças ao nazismo. Para isso colaborou ativamente com o fascismo - cujos ritos e concepções copiou nos anos 30, inclusive obtendo instrução militar - e com o próprio nazismo. Está ricamente documentado no livro o abandono dos judeus alemães e húngaros pelos sionistas ao nazismo, durante a guerra Além disso, a organização Sionista Mundial quebrou o boicote judeu ao comércio com a Alemanha nazista, distribuindo suas mercadorias. Seus dirigentes felicitaram-se publicamente pela expulsão dos judeus da Europa pelo nazi-fascismo, porque assim a população judaica suplantaria os árabes na Palestina.

Reacionário, o sionismo nunca respondeu às aspirações da comunidade judaica de viver sem discriminações ou perseguições; sua capitulação ao nazismo o demonstra. O sionismo não pode, por isso, pretender reivindicar as ricas tradições democráticas do povo judeu.

Palestina democrática e laica

Em Israel como na África do Sul, diz Schoenman, a simples justiça exige o desmantelamento do Estado-apartheid, substituído por uma Palestina laica e democrática, onde os direitos de cidadania não sejam determinados por critérios étnicos.

Os defensores do direito à autodeterminação para os negros na África do Sul nunca propuseram a criação de dois Estados - um dos afrikaaners (os europeus que lá vivem há décadas) e outro dos negros africanos. Afinal, como na Argélia ou em Zimbabwe, a supremacia dos colonos brancos nunca justificou um "Estado de colonos", usurpando o território a um povo oprimido.

Por que então os palestinos teriam que aceitar o reconhecimento do Estado Israel? O argumento "de esquerda" a autodeterminação dos "dois" serve, na verdade, para mascarar a anistia para o Estado de Israel E a "tática" de aceitar como "etapa" um mini-Estado ao lado de Israel - verdadeiro Bantustão palestino - só servia para desmoralizar os lutadores palestinos e justificar Israel para o futuro.

Concordamos com Schoenman, na OLP uma direção política que retome o programa lançado originalmente pela AL Fatah (a organização de Arafat), 1968, e depois abandonado. Esse programa apontava para a Palestina como uma nação "onde judeus e palestinos viveriam iguais e sem discriminação".

Markus Sokol é tesoureiro do Diretório Municipal do PT em São Paulo e membro do Conselho Editorial de Teoria e Debate. (14 de outubro de 88)