Cultura

Estou acostumada com o fato de que as pessoas sentem mais medo do desconhecido, do novo - e então, da liberdade -, do que de qualquer forma de sofrimento familiar. Por isso, diante da possibilidade do novo, freqüentemente se escolhe a repetição do velho, do conhecido. O novo exige que a gente admita que sabe muito pouco. Quase nada. Exige a humildade do aprendizado e da reflexão. O problema é que o tempo não pára pra gente aprender. Tem-se que aprender fazendo

(17 de outubro)

Domingo calmo demais. Ninguém nas ruas. A cidade tem um clima e depois do último capítulo da novela das oito: não é que haja alguma solução, mas ontem mesmo desligamos o último conflito.

Tento lembrar qual era a ordem das estações do ano, se é que ainda não foi revogada por um cataclisma ecológico qualquer. É possível que depois de alguns anos de Itaipu inundando o Sul do país e Amazônia ardendo ao Norte, o inverno tropical se desloque para dezembro, sem que ninguém se espante particularmente - mas até onde posso me lembrar, outubro é mês de primavera. Em épocas de futuro incerto demais (pensando em inflação, não em revolução) sinto um apego feroz por qualquer coisa que marque permanência nesse mundo. Fico grata a essas árvores das ruas de São Paulo, que no tempo das chuvas chovem flores amarelas, deixando os bairros com um ar de expectativa, de instabilidade - flores cobrindo o asfalto de amarelo, prontas para o sacrifício -, de alguma coisa por acontecer.

É próprio da infância a espera. Pelo menos esta espera carregada de gozo, de antecipação feliz. Não é próprio da infância ser feliz, mas antecipar felicidade. Crianças são utopistas da sua própria existência, constroem diariamente na imaginação um futuro de absolutos, de grandes coisas, de superação maravilhosa dos limites do agora. Alguma coisa desse desejo poderoso não se perde (muita coisa da infância não se perde no adulto, para o melhor e o pior de todos nós) e se transforma em projetos de vida melhor. Olho as janelas das casas onde deve haver vida inteligente ainda, nesse domingo onde aparentemente só as árvores das ruas antecipam alguma coisa, e penso que, mesmo assim, quase todo mundo deve ter seu projetinho de "vida melhor". Projetinhos secretos: nada no ar da cidade revela sua existência. Imagino o que possam ser: trocar o carro, comprar um vídeo, um freezer, cair fora do país, ver todos os filmes da Mostra do Leon Cakoff (a última, dizem), perder a barriga nas férias de verão, ter férias de verão, ter férias algum dia, pelo amor-de-deus, ter dinheiro para um cinema ao menos, comprar um fusca usado no ano que vem, voltar pra classe média, mudar de emprego, voltar pro emprego, conseguir emprego, conseguir a URP (Unidade de Referência de Preço) de agosto, conseguir viver com o salário, criar os filhos, sobreviver.

(20 de outubro)

Fui à padaria de manhã. Só gente estranha no caminho. Alguém já me disse que é assim mesmo, que o mundo é feito de estranhos. Mas outro dia mesmo, ontem mesmo, ainda era possível reconhecer alguns cúmplices aqui e ali. Quem não experimentou a poderosa alegria da cumplicidade não vai saber do que eu estou falando, mas talvez não sinta a menor falta.

É claro que eu sei: toda cumplicidade é ilusória. Cansei de ser chamada de "companheira" por pessoas que no dia seguinte passavam a me desprezar profundamente - pra dizer o mínimo - por divergências sobre, por exemplo, se a revolução deveria partir do campo ou do proletariado urbano; ou de "minha irmã" por gente que só queria saber se eu tinha fumo em casa e algum disco que eu pudesse emprestar e nunca receber de volta. Cumplicidade dura o tempo que dura a ilusão de se compartilhar profundamente alguma coisa, de preferência alguma diferença em relação à norma (a melhor cumplicidade é na contravenção); mas enquanto dura é uma beleza. Dá aquela sensação de superioridade moral, existencial, estética em relação ao resto do mundo, de pertencer a um povo eleito qualquer - de preferência auto-eleito - para uma terra prometida qualquer, secreta, em gestão. Utopia.

Li trechos do Coração Desnudado do poeta: "Minha embriaguez em 1848. De que natureza era essa embriaguez? Gosto da vingança. Prazer natural da demolição. Embriaguez literária; lembrança das leituras". Mais adiante: "E tudo, no entanto, se pacificou. Não tem o presidente um direito a invocar?"1. Saudades de uma certa felicidade guerreira. Nenhuma, nessas eleições municipais, por exemplo. A última, aliás, foi em 82: a praça do Pacaembu embandeirada, até os punks querendo amizade com o PT. Depois, me desculpem - virou só um partido...

O que não é pouco, concordo, mas adeus felicidade guerreira.

E o que fazer da pulsão de morte? Vai ficar levando a gente pra dentro de casa, pra cama, pro tédio, pros videocassetes, pra Aids, pro Jânio que promete botar ordem em toda a bagunça, pro Maluf que rouba, reprime, "mas faz", pra indiferença, pra depressão, pro cabide de empregos, pra esperança de também pegar uma boquinha, pra mediocridade geral?

Ou para a restauração do já vivido? Até esteticamente a nostalgia é pífia. Politicamente, então, nem se fala. "Toda época que tem medo de si mesma tende à restauração", escreveu Thomas Mann. Para quem não passa fome no Brasil hoje tudo é estilo. Não temos revistas de cultura, mas temos revistas de moda. A moda é um lugar possível onde desfilam citações das utopias das décadas passadas. Retrô.

Pode ser que o tempo atual tenha "medo de si mesmo". Motivos não faltam. Eu cito três "cavaleiros do apocalipse", sem pensar: a Aids, a morte dentro do sexo, sem metáforas; a destruição ecológica, onde o pior terror não é a perda da qualidade material da vida, mas a idéia de viver num mundo sem reservas para a fantasia inconsciente, sem paisagem que não esteja ocupada pelo humano, e o que é pior, por um determinado tipo de construção humana, uma linguagem só para todo o planeta, uma lógica só, um tempo só, o do mercado, mercado, mercado. O terceiro é o extermínio nuclear como possibilidade iminente, dominando o horizonte do possível. Bom, só falta um.

(22 de outubro)

O carro quebrou na avenida Sumaré. Fiquei um tempão fazendo sinal pra motoristas que fingiam não me ver. Já vi muita gente fazer isso pros moleques que vendem badulaque nos faróis, mas "ninguém sabe como é que dói". Nessas horas sempre me lembro do filósofo marxista2 que se suicidou depois de ter passado pela experiência de ser atropelado em Paris e ficar na rua um tempão, sem ninguém parar pra socorrer: desilusão completa em relação à "natureza humana", mas isso é pra quem alimenta ilusões. Procuro me manter firme na minha posição freudiana de quem não alimenta ilusões ou, se alimenta, sabe o que está fazendo. Mesmo assim, acusei moralmente um por um dos proprietários de automóveis que passaram por mim nessa tarde, até que um deles parou e um senhor muito sério, preto, malufista (um enorme adesivo no vidro), distintíssimo, me ajudou, disse "não tem de quê" e foi embora, me deixando ainda muito mais confusa em relação à humanidade.

Ninguém ajuda ninguém - dizem - com medo de ser assaltado, mesmo que eu seja mulher, em plena luz do dia e tal, isso deve valer no meu caso também. Ninguém pára o carro, ninguém abre o vidro, ninguém olha pro lado, ninguém socorre o atropelado, ninguém desce a não ser na porta do prédio (nem que seja para parar em fila dupla e alimentar o caos), ninguém deixa as crianças andarem nem um quarteirão até a escola, quem tem salário tem medo, como se valesse a lei do Bandido da Luz Vermelha do filme do Sganzerla: "quem estiver de sapato não sobra!".

Acabo de descobrir o quarto cavaleiro; é a horda. Quem está de sapato tem medo da horda. Um medo imbuído de culpas confusas, inconscientes, das multidões miseráveis cada vez mais perto dos nossos calcanhares e cada vez mais remota nos nossos projetos, até mesmo por absoluta falência dos projetos. A horda que a modernidade prometeu libertar - seja via "progresso" ou via "revolução" - e não libertou; prometeu emancipar dos grilhões da miséria e não emancipou; prometeu civilizar, introduzir nos benefícios e privilégios da chamada civilização - e não civilizou. A horda dos excluídos de todos os benefícios da modernidade assombra quem tem sapato, quem tem salário. Assaltando, seqüestrando, matando e morrendo em grandes bandos, esmolando, exigindo, implorando, tomando, ou suportando em silêncio resignado, cheio de religiosidade. A horda, esses "Outros" sem solução, que gostos de banir e (ainda) não conseguimos.

O medo desmesurado sempre carrega uma parte de paranóia, a paranóia implica projeção. Assim posso pensar que o pavor que as pessoas têm em relação aos miseráveis tem muito a ver com seus próprios desejos inconscientes, de parentesco názi, de eliminá-los todos da face da terra e começar de novo, num mundo mais limpinho, arrumadinho, mais parecido "conosco", mais viável. Uma utopia fanática, regressiva, baseada no medo e na insegurança. Já vi em mais de um carro o adesivo da campanha do Delfim Neto (em 85 ou 86), escrito: "eu era feliz e não sabia", acompanhado da caricatura de um gordo bonachão, maternal. Saudades dos militares, da ditadura, do "pulso forte", da inflação de 40% ao ano, da paz dos cemitérios, do totalitarismo.

Digamos: hoje o cara ganha X e dá justo pro chamado leite das crianças. Amanhã ele ganha X + 1 e não dá mais pro leite das crianças. Que outra utopia ele é capaz de imaginar? Inflação, regressão; parece que as pessoas estão sendo infantilizadas nesta situação em que nada que você faça garante um mínimo de controle sobre o seu destino. A insegurança causada por uma inflação real de quase 30% ao mês nos atira numa situação de dependência em relação a alguma autoridade abstrata e onipotente (que costumamos representar como Estado, governo etc.) que deveria fazer algo por nós e não faz. Uma espécie de mãe sádica: o cara trabalha, dá duro, faz tudo direitinho como lhe ensinaram, mas em vez de ser recompensado é cada vez mais punido. A cada mês seu trabalho vale menos, cada mês ele próprio sente que vale menos, a cada vez a mãe sádica imaginária coloca a fartura mais longe do seu alcance. Deprimido, impotente, este cara (este cara somos nós) regride. Quer ser criança outra vez, quer o pai forte que o conduza por trilha segura, quer segurança, pelo amor-de-deus, nem que seja a ditadura.

Sinais de perigo no ar: a utopia da classe média hoje (só da classe média?) pode ser representada por um enorme quartel onde todos obedeçam, onde tudo funcione direitinho.

(27 de outubro)

Um grande quartel ou um grande supermercado. Descobri uma mulher neste prédio que estoca fraldas, leite em pó, açúcar, óleo. A vizinha pediu uma lata emprestada pelo fim de semana e ela recusou. Essa mulher vive como se estivesse esperando a qualquer momento ter que embarcar na arca de Noé. Ela se preparou para ser feliz num mundo inabitado, pronta para partir no expresso para o século 21 - sozinha.

A classe média não estava moralmente preparada para se proletarizar tão depressa.

(29 de outubro)

Parece que nada está acontecendo e ao mesmo tempo o país está atravessado por greves e manifestações. É que elas perderam a capacidade de nos comover. Cada "setor" luta por si e nenhum deus por todos.

E lutar pela reposição da URP, pelo salário, não tem a mesma beleza que por "liberdades democráticas", como nos anos 70. A luta pela necessidade é muito diferente (é necessária, apesar disso) da luta pelo desejo. Salário é necessidade, da mais legítima. Liberdade é desejo - do mais legítimo também, mas tem outra dimensão. Simbólica.

O que ainda guarda hoje um certo poder de sonho é a luta ecológica. Uma reserva ecológica, por exemplo, mesmo que pouquíssimos de nós cheguem a pisar nela, é uma espécie de reserva imaginária para onde são atraídas as nossas melhores esperanças. Hoje, preservar alguma natureza significa estabelecer alguma espécie de limite para a voracidade destrutiva das economias de mercado. São reservas de inocência, no sentido em que essa palavra se contrapõe à perversidade das razões de mercado e de Estado: os utopistas ecológicos querem acreditar que alguma coisa vale mais do que dinheiro e poder (é incrível como parece inocente escrever nesses termos), que alguma coisa não-lucrativa e não-negociável tem direito à existência fora de nós - e se assim for alguma coisa improdutiva tem direito a existir dentro de nós também, no terreno da subjetividade. O que é ainda mais fundamental.

É possível, evidentemente, que "razões ecológicas" só comecem a prevalecer quando coincidirem, chocarem, com razões de mercado e de Estado. O que não está muito longe de acontecer. E as razões subjetivas, aonde ficam nesse quadro?

O problema com o materialismo, assim como com a psicanálise, é que ambos vieram para destruir ilusões. E como será viver sem elas, de uma vez por todas?

(1º de novembro)

Em 86, os Titãs compuseram um rock pós-apocalíptico chamado "Bichos Escrotos", que denunciava o advento de ratos, baratas, pulgas e outros monstros sobre a face da terra, acima de todas as coisas. Paradoxalmente as crianças adoravam a letra, o que indica que seu significado para o inconsciente deve ter muito mais a ver com a liberação dos "impulsos escrotos" do que com a ameaça de extinção da humanidade e a emergência dos bichos escrotos para fora dos esgotos. Me fez pensar muito nessa radicalidade hoje um pouco declinante - de jovens artistas e seu público que conclamam o fim do mundo. Evidentemente existe gozo nisso. A arte sempre vai além da consciência. O gozo do extermínio (imaginário; ainda não aconteceu!) é "narcisismo de morte", já que investimentos em narcisismo de vida parecem bloqueados pela perspectiva de liquidação total do planeta.

O apocalíptico e o yuppie: existe alguma diferença de fundo entre eles? Enquanto o segundo se locupleta, o primeiro goza uma espécie de esperança às avessas: finalmente a realização da fantasia milenarista do juízo final parece estar nas mãos de alguns seres humanos. Para um e outro importa que não exista futuro a não ser o imediato. A diferença é estética: o apocalíptico tem alguma grandeza trágica, o yuppie é o bobo que não se dá conta da tragédia.

E a mim, o que importa o futuro? O que importa o que ainda não é, o que não tem lugar, o que é lugar-nenhum? Por que preciso projetar a mim mesma no tempo, para suportar o agora, e não só a mim mesma, mas a todo um contexto a humanidade, o planeta - ao qual me sinto pertencer? As utopias não são determinadas pelo futuro, mas pelo passado - ou melhor: por uma imagem paradisíaca de passado perdido ao qual tentamos sempre retomar. É na esperança de recuperar um passado feliz, e imaginário, que se constrói não o passado, mas o futuro. O qual por sua vez, quando se torna presente, é sempre decepcionante.

Estranha tarefa, a de imaginação humana: ter que equilibrar a vida nesse espaço tenso, entre a esperança e a desilusão.

Maria Rita Kehl, psicanalista e escritora, é do Conselho Editorial de Teoria e Debate.