Nacional

Centralizada pela Comissão Nacional de Eleições Municipais, a jornada petista nas cidades do Brasil todo conheceu limitações orgânicas, vícios, percalços e surpresas. Aqui, um relato de quem viveu o dia-a-dia deste árduo trabalho, desde o começo de 1988, quando as eleições eram incertas, até o limiar das vitórias. Com o desenvolvimento da disputa, o município se nacionalizava cada vez mais: a antevéspera da campanha presidencial se tornava realidade

A apatia e a indignação do eleitorado com "a" política e os "políticos" deram o tom inicial da campanha nos municípios no ano de 1988. Imediatamente, os partidos tradicionais embarcaram na onda-que-elege, o oposicionismo superficial e fácil. Ninguém se sentia confortável diante dos eleitores segurando a alça do governo, um verdadeiro caixão de césio, que espantou o situacionismo do horizonte. Acentuava-se, assim, o componente negativo do voto (não querer o velho), sobre seu componente positivo (afirmar o novo). Coube ao PT fazer política em sentido pleno, sem maniqueísmos ou demagogias. Foi a história do PT, narrada pela transparente unidade entre fatos e palavras, que começou a ganhar as eleições.

A executiva nacional percebeu a necessidade de enfrentar a rua com coerência, polemizar com a descrença programada pelas elites e seus partidos, dizer do governo que vamos implantar e suas prioridades. A curta - mas substantiva história do PT e a defesa intransigente da necessidade dos trabalhadores desfrutarem de autonomia, de independência política e organizativa deram o fundamento da orientação geral da nossa campanha. Vale a pena, agora, rememorar as passagens e as decisões que marcaram esta trajetória vitoriosa.

Conquistando a disputa

Tomada a decisão de disputar as eleições de novembro, seguindo as resoluções do V Encontro de dezembro de 1987, o Diretório Nacional constituiu a CNEM (Comissão Nacional de Eleições Municipais), a quem coube centralizar, política e administrativamente, todo o processo eleitoral. Logo em fevereiro, realizou-se a primeira reunião da CNEM com presidentes e secretários gerais dos diretórios regionais para os primeiros levantamentos e diagnósticos. Em março, iniciamos a montagem dos Comitês Unificados, a elaborações das listas de pré-candidatos, as discussões sobre coligações e alianças, a avaliação dos municípios com mais de 160 mil eleitores onde, com a incorporação do eleitorado maior de 16 anos, poderiam ocorrer os dois turnos.

É bom lembrar que, àquela altura, não havia legislação que regulamentasse a eleição. A rigor, o Congresso Constituinte, conservador e insensível, não sabia sequer quando e como terminaria seus trabalhos - não havia definição precisa que confirmasse a existência das futuras eleições, e muito menos os cargos que elas preencheriam. O PT precisava, neste quadro, antecipar-se - até mesmo para garantir o pleito. As consultas ao Tribunal Superior Eleitoral se avolumavam. A CNEM, a Secretaria Nacional de Organização o a bancada federal prepararam um projeto de lei convocando e regulamentando as eleições para forçar a discussão no Congresso e, assegurar, dessa maneira, a sua viabilização. Preocupações da mesma ordem levaram a direção nacional a acelerar o lançamento dos candidatos - certamente o PT com essas ações, ajudou a acuar os defensores da suspensão das eleições.

Em junho, antes das convenções oficiais, houve uma nova reunião em Brasília com dirigentes regionais. Estavam lá a CNEM, a Secretaria Nacional de Organização, a Secretaria Geral Nacional e a Tesouraria Nacional. O partido estava preparado para oficializar seus candidatos, metade deles, por sinal, já lançada antecipadamente nos municípios em que disputamos. Tomou vulto, na ocasião, a discussão da propaganda no rádio e na televisão, exigindo unificação nacional da linguagem e um intercâmbio maior entre os responsáveis regionais. Foi realizado no Instituto Cajamar, em São Paulo, um Seminário de Propaganda com representantes dos diretórios de todo o país.

Finalmente, no dia 4 de agosto, na cidade de São Paulo, onde jogávamos a maior cartada, foi feito o lançamento nacional das campanhas com a apresentação de nossos candidatos à imprensa pela executiva nacional e, em nome de todos, falou Luiza Erundina. As eleições estavam garantidas, o partido estava preparado, mas uma nova avalanche de problemas estava a caminho.

Repensando erros

Se a decisão acertada de centralizar política e administrativamente as campanhas na CNEM superou entraves iniciais - estabelecendo instâncias oficiais sobre intrigas pessoais, vencendo com a disciplina o medo do fantasma da "burocratização" que muitos militantes enxergam em qualquer tentativa de organização, levando as resoluções nacionais à situação concreta dos municípios, através de comunicados internos, manuais, circulares e ofícios -, a especificidade de cada pequeno município, suas demandas próprias e suas inúmeras formas diferenciadas revelavam-se questões importantes para um partido que procura manter sua coerência nos quatro cantos do país, mas que estavam longe de se resolver dentro de uma comissão. A realidade municipal exagera ao limite - e ao detalhe - a divergência ideológica dentro da esquerda e faz perder de vista a perspectiva e os objetivos que temos para mais adiante. Em muitos casos, o ativismo sindical era o critério para que se selasse (ou não) uma coligação eleitoral. Em outros municípios, a situação era oposta. Às vezes, o pragmatismo da vida no interior, o imediatismo das soluções adotadas pela comunidade, em combinação com a nossa filiação em massa ocorrida após 1986 (que colocou dentro das fileiras do PT filiados de muitos matizes), produziam os quadros mais esdrúxulos. "Direita e esquerda são coisa da capital", "aqui não se precisa de ideologia" - impressões como essas sustentavam tentativas de acordos, e de acordos por baixo do pano, com partidos da direita, mas considerados, na localidade, "à esquerda" do coronel de plantão. "Aliançazinhas inofensivas", afirmavam seus patrocinadores.

Tanto num caso - em que o critério era o ativismo sindical rígido demais - como no outro - alianças espúrias seguiram-se intervenções políticas -, procuramos dar mais consistência ideológica ao debate, a partir das resoluções nacionais. Muito se conseguiu na luta contra o oportunismo eleitoralista e contra o sectarismo esquerdista quando houve unidade e agilidade das direções locais para atuarem sobre os desvios.

Outro problema foi a chegada, para dentro do PT, de candidatos formados numa cultura política estranha à nossa.

Total de votos

Partidos Eleições

1982

1985

1986

1988

PT
PDT
PMDB
PDS
PFL
PCB
PTB
PC do B
PL
PSDB
1.458.719
2.394.723
17.673.682
17.779.849
-
-
1.829.055
-
-
-
1.492.030
1.776.836
4.165.768
536.402
1.107.051
59.866
1.810.619
-
-
-
3.489.950
4.000.000
27.800.000
4.100.000
10.400.000
350.000
3.300.000
550.000
1.000.000
-
2.826.782
1.527.002
2.402.763
1.626.573
702.262
33.167
517.772
14.630
648.967
993.619
1982: Resultado para deputado federal
1985: Resultado para prefeitos das capitais
1986: Dados aproximados (não oficiais) para deputado Federal
1988: Resultado para prefeitos das capitais

Com pedagógica paciência, respondemos a inúmeras cartas e incontáveis telefonemas que solicitavam desde carro de som até dinheiro para a compra de fogos de artifício. Explicávamos que, no costume político do PT, não cabe nem o clientelismo e nem cabe a despolitização seja da própria campanha, seja das dificuldades que ela enfrente. A tudo isso, somou-se o fato de que muitas de nossas campanhas não tiveram coesão política, pois algumas das forças políticas que disputavam as convenções não lançavam nas chapas proporcionais o número de candidatos correspondentes à força que haviam obtido na disputa pela chapa majoritária. O resultado é quase que automático: a "prefeiturização" da campanha de alguns vereadores e a virtual anulação da campanha de prefeitos. A imaturidade de setores do partido, o realismo brutal que empregam na disputa do poder interno, a prevalência do prestígio parlamentar sobre o extraparlamentar são alguns dos sinais que configuram esta situação ruim, este vício grave identificado pela direção do partido como uma prática de autêntico parasitismo interno.

A cara de classe

O uso que fizemos da televisão, que deu dimensão nacional à campanha, unificada por meio de propostas divulgadas por dirigentes e petistas de várias áreas de atuação, também não ficou imune a erros. Foi a TV, em muitos lugares, que glamourizou nossos candidatos, contribuindo para reforçar o comportamento espontaneísta do cidadão que vota sem acreditar que seu gesto constitua qualquer atitude transformadora de caráter superior. A virada de mesa ocorreu quando decidiu-se enfrentar a desilusão do eleitorado e combater de frente a abstração jurídico- institucional a que se reduz a maioria dos partidos deste país. Acertamos ao estamparmos a cara de classe dos nossos candidatos. Mostramos também o candidato como o elo que liga o problema do eleitor aos interesses e concepções do PT - o que faz a consistência ideológica da escolha.

À medida que o caráter do PT ganhava concretude e nitidez, o eleitorado se mobilizava, impulsionado pela crescente empolgação de nossa militância. A vinculação com as lutas do povo, a experiência e a autoridade de quem anda com as próprias pernas foram clareando o horizonte, aumentando a possibilidade da vitória. Intensificaram-se as viagens de constituintes e lideranças sindicais às regiões estratégicas e prioritárias. O município se nacionalizava a cada dia e nossa capacidade de luta superava, na maioria dos lugares, a inorganicidade da estrutura partidária. A antevéspera da campanha presidencial se tornava realidade.

Total de eleitos

TOTAL DE ELEITOS

Estado Prefeito e Vice Vereadores**
AC
AL
AP
AM
BA
CE
ES
GO
MA
MG
MT
MS
PA
PB
PR
PE
PI
RJ
RN
RS
RO
RR
SC
SP
SE
-
-
-
-
02
01+1*
02
01
-
07
-
01
-
-
02
-
-
01
01
04
-
-
01+1*
13+1*
-
06
04
05
03
25
11
53
58
11
250
05
03
37
05
32
03
03
19
07
125
17
01
45
276
03
Total de prefeituras: 36
Total de vereadores eleitos: 1007

*Subprefeituras: 3
** Até o fechamento desta edição, alguns municípios ainda não haviam fornecido os resultados oficiais. Nestes casos, os números se baseiam em projeções e/ou números extraoficiais.

Do setor mais desenvolvido, consciente e avançado da luta popular, sindical e política veio a resposta mais espetacular. Como se espera que seja, classicamente. O eleitorado vem migrando para a esquerda de forma relativamente permanente desde o pós-guerra. As cidades crescem, a luta se fortalece. Em muitos lugares, porém, a mera conscientização não leva "pra diante" o povo em sua caminhada pois, sem a necessária politização, a vontade individual não se converte em força política de mudança. E esta vontade se forma é pela persistência, pela qualidade da organização partidária que a sustenta pelas características da ação, pelas necessidades correspondentes ao comportamento concreto do eleitor diante daquela situação que ele quer ver pelas costas. O eleitor vota em quem fará o que ele faria se fosse o eleito. Só assim o sentimento de perda e transferência de poder pode desaparecer do eleitor, substituído pelo sentimento de partilha deste poder através da identificação com o partido escolhido. Manter cativos esta consciência e este voto é o grande desafio do PT. Isto depende de serem criadas, com nossa intervenção, as condições políticas, sociais e econômicas para que não permaneça o estado de coisas que conduziu o eleitorado àquele voto. O que o eleitor espera, na subjetividade da sua expressão eleitoral, é que seja mudada a realidade que deu origem à vitória do Partido dos Trabalhadores.

Se isto é correto, significa que temos que desenvolver objetivos democráticos que possam elevar a qualificação civil dos amplos setores populares e explorados. Mas simultaneamente, significa privilegiar objetivos de caráter social que possam promover modificações na posição econômica dos indivíduos das cidades onde ganhamos.

E esta é, mais do que nunca, uma questão nacional.

Paulo Delgado, deputado federal pelo PT-MG, secretário nacional de Organização do PT, foi responsável pela Comissão Nacional de Eleições Municipais.