Economia

A crise política está intimamente ligada à crise do padrão de relacionamento do Estado com a economia. Em termos mais precisos: uma crise do padrão de financiamento público da economia brasileira. Quais são as saídas? O PT precisa discuti-las com urgência, pois sem uma mudança qualitativa no aspecto chamado "finanças públicas", os caminhos das soluções para a crise econômica, política e financeira tendem a ser os que estão sendo alimentados pela crítica da direita e da mídia.

O debate em torno da crise na economia e na sociedade brasileiras no mais das vezes banaliza o seu porte e obscurece seus significados. Apesar da retórica e das bombásticas frases - "a mais grave crise da economia" - a insistência dos "clichês" economicistas e o falso acento de sua natureza política escondem que os diagnósticos e as saídas frequentemente propostas subestimam gravemente os sentidos da crise. Os economistas de plantão teimam em diagnósticos conjunturais - a ameaça da hiperinflação, sobre o que se perdem em minuetos tipo qual a taxa mensal que ultrapassa o "seuil" entre uma inflação alta e a hiper - e os políticos e politólogos fazem do ridículo "herói de Pericumã" o centro nevrálgico e mesmo a expressão da crise política.

Os temas ou questões que, no debate, assinalam a crise enfeixam-se na dívida externa, no déficit público, na altíssima inflação, do ponto de vista econômico, e no "herói de Pericumã" e no sistema presidencialista, no fisiologismo e na exagerada intervenção do Estado, do ponto de vista político. Todas essas questões estão, sem dúvida, no centro da crise, mas o sentido com que elas aí estão não é nem óbvio nem unívoco; e mais, as receitas apontadas não têm nenhuma viabilidade nem apresentam nenhuma saída. Isso porque, do ponto de vista metodológico, em primeiro lugar, tanto as análises quanto as receitas operam num campo isomorfo e isônomo, em que as questões críticas apenas se desviam do equilíbrio e, portanto, o refazer não implica nenhuma mudança qualitativa - o que é um grave defeito propriamente metodológico das análises de conjuntura - e, do ponto de vista político, aquele defeito metodológico leva a um defeito ideológico, qual seja: o de que, na política, a crise pode ser contornada também sem nenhuma mudança de qualidade, sem nenhuma ruptura.

A crise da dívida externa revela, mais que uma simples dívida - que se resolve fazendo o haver maior que o deve, eterno exercício de contador -, o fato de que a economia brasileira, para crescer no padrão concentracionista que é seu perfil desde os anos 50, exige uma capacidade de investimento mais alta que os recursos reais da economia brasileira podem proporcionar. Esclareçamo-nos: a economia pode crescer a taxas até bem mais altas que a experimentada durante a ditadura, sob a condição de não seguir o padrão concentracionista excludente. Pois este padrão, que é impulsionado pelo progresso técnico produzido alhures, implica obsolescência recorrente do capital e de suas formas técnicas: a indústria automobilística é bem a prova, pois já está se robotizando, enquanto o custo da mão-de-obra nacional é incrivelmente mais baixo que o dos grandes países produtores de automóveis.

Essa tentativa desesperada acaba pressionando os custos, e o efeito paradoxal é que isto se reverte em diminuição do excedente para reinversão. A espiral perversa se completa com o fechamento progressivo do mercado nacional de automóveis novos, com redução das escalas, com o que os altos custos da obsolescência rápida pressionam os preços. Este esquema foi "curto-circuitado", até então, pela estatização da dívida externa, de um lado, pelos enormes incentivos para exportação e, no plano interno, pelo uso abusivo da dívida pública interna, que mantém a valorização dos capitais, como um substituto do lucro produtivo. Mas o curto-circuito se projetou na forma do déficit público, e daí para a permanente exaustão fiscal que, por sua vez, impede o Estado de relançar a economia em espiral ascendente. Os gastos do Estado têm uma enorme importância na economia brasileira e continuariam - não fosse a exaustão fiscal - a desempenhar o clássico papel anticíclico keynesiano.

A inflação é alimentada pelos fatores já mencionados; ela não é uma luta distributiva, salvo no sentido de que a burguesia procura puncionar parcelas maiores dos recursos estatais. Com a exaustão fiscal, a burguesia recorre à dívida pública interna: aqui, existe uma bela metamorfose, geralmente desconhecida. A dívida pública, olhada sob o prisma do contador, é uma tomada de recursos do Estado junto às fontes do setor privado. Na ótica real, ela é o oposto: representa a sustentação dos capitais pelo Estado, pois que outra aplicação que não a da operação com títulos do Estado proporciona os elevados lucros financeiros do mercado de capitais? Na ótica real, o empréstimo que o Estado faz junto ao setor privado é uma transição - que está se revelando tão longa e tão permanente quanto a própria transição política - que garante a manutenção da rentabilidade do setor privado enquanto este refaz seus investimentos com novo padrão tecnológico. Dada a alta obsolescência, este refazer nunca termina... É um suplício de Sísifo.

A crise política está intimamente associada com o anterior, que outra coisa não é senão uma crise do padrão de relacionamento do Estado com a economia, ou em termos mais precisos, uma crise do padrão de financiamento público da economia brasileira. Não convém banalizar, desta feita, os elementos de crise próprios da tentativa de uma transição de um Estado autoritário para um Estado democrático de direitos, mas a hipótese é que, mesmo estes elementos, são a expressão da crise do relacionamento Estado-economia. Não estavam presentes no Estado autoritário os germes dessa crise? De fato, aí foram germinados, mas é apenas a tentativa da transição para um Estado democrático de direitos que os expõe. As lutas na Constituinte o provam.

O "herói de Pericumã" é apenas a tragédia maranhense latifundiária, ou melhor, é a expressão maranhense latifundiária da crise política. Seu despreparo, que uma certa imprensa não deixa de sugerir que é o despreparo "maranhense", revelando o grave preconceito antinordestino que lavra despudoramente no Centro-Sul do Brasil, é o despreparo da antiga ordem de coisas autoritária para lidar com urna crise do acesso aos recursos estatais, que o período autoritário enviesou duramente. Pois numa economia em que os liames com o Estado, na forma da sustentação da acumulação de capital, se intensificaram ao ponto de hoje a administração dos fundos públicos como coisa privada fazer dos grandes orçamentos públicos o palco de uma intensa luta, "de foice num quarto escuro", entre os grandes grupos burgueses. Na política, essa luta não se traduz por uma demanda de maior transparência, ou de "glasnost", mas no seu contrário: de maior intransparência, ou de maior escuridão.

A grita contra o déficit público tem se resumido a petições de corte dos gastos correntes do governo, verbi gratiae, ao corte de salários dos funcionários públicos. Esconde o fato de que é o serviço da dívida pública interna, e seu irmão siamês, o honrar o serviço da dívida pública externa, o principal responsável pelo déficit. Em ocasiões extremas, como a da conjuntura de hoje, membros do governo chegam até a sugerir a suspensão temporária - e nas facções mais radicais, permanente - de incentivos tais como os que são dados para a industrialização do Nordeste e da Amazônia. Mas nenhuma palavra sobre a dívida interna pública.

Quais são as saídas? É aqui que comparece a mudança de qualidade que a conjuntura apresenta, e sem sua percepção corre-se o risco de embarcar nas "canoas furadas" da gritaria geral. A mudança de qualidade é que as organizações da sociedade civil querem tomar o pulso das coisas, e não mais deixarem-se conduzir passivamente. A burguesia perpetra um grande avanço ideológico, ao enfeixar o debate e conduzi-lo por seus sendeiros: o déficit público, a exagerada intervenção do Estado, o fisiologismo e a ineficiência como "atributos" do Estado. Para quê? Para não deixar emergir uma outra forma de gestão das relações Estado-economia, que desfavoreça sua sede de maiores extrações dos recursos estatais que alimentam sua capacidade de acumulação. Por isso, e não porque sejam incompetentes - embora seus economistas freqüentemente o sejam - é que o acento é posto naqueles "cavalos de batalha", populares e de senso comum.

As classes populares, os trabalhadores e o PT o que têm a ver com isso? Muito. Infelizmente, o debate sobre essas questões não tem estado presente no debate do próprio PT, não se materializou na atuação de seus constituintes - deixaram à competência de José Serra e Delfim Netto as questões chamadas "orçamentárias" e de finanças públicas, e obteve-se um artigo na Constituição que assegura isenção de impostos para exportação! -, os sindicatos tampouco prestaram atenção às mesmas, e as organizações populares continuam à cata das migalhas do orçamento para viabilizar suas reivindicações.

Sem uma mudança qualitativa no aspecto chamado "finanças públicas , os caminhos das soluções para a crise econômica, financeira e política tendem a ser os que estão sendo alimentados pela crítica da direita e da mídia. Isto é, em termos simples, menos Estado para os pobres e mais Estado para os ricos. A direita está fortemente aparelhada, o centro tenta administrar sua inserção na solução da direita, e a esquerda está fortemente despreparada. Sem mudança qualitativa, o que quer dizer que a ofensiva da direita será vitoriosa, pode-se zerar a inflação, à custa dos salários, pode-se simplesmente transferir as empresas estatais para a órbita privada, pode-se cortar os gastos do governo para salários e fins sociais. Nada disso está excluído no horizonte das perspectivas.

Mas haverá menos recursos estatais para atenuação das graves desigualdades, e os movimentos sociais continuarão a ser manipulados com as sobras do banquete "fiscal" dos ricos; a ligação dos salários reais dos trabalhadores com o aumento da produtividade estará comprometida no altar da manutenção da competitividade das exportações; a dívida externa se resolverá pelo descaminho das conversões. Uma mudança de qualidade exige a publicização dos gastos públicos, sua amarração aos salários, o aumento dos gastos por fora das limitações do mercado, a discussão e o controle público de todos os incentivos dados ao setor privado, a queima dos fogos de artifício da dívida pública interna.

A conjuntura política dá mostras de que esses objetivos, ou esse processo dos objetivos, encontra sustentação pública. Os dados pré-eleitorais mostram que disposição política de tratar a coisa pública afinal, a respública por outros caminhos encontra respaldo na população, muito longe da apatia que se cansa de proclamar a mídia. A colocação, por exemplo, de companheiros do PT nas principais cidades mostra essa força. É preciso aprofundar esse debate, é preciso deslocar e conter a ofensiva da direita, tirar a iniciativa da burguesia.

O Estado não é propriedade da burguesia; o Estado é uma relação de forças. Ao lado do debate e da intervenção no campo estrito dos interesses imediatos dos trabalhadores, é preciso levar esse debate e essa intervenção ao campo dos recursos públicos estatais, que é o campo para onde convergem todos os interesses, burgueses e operários. Se não soubermos debater e intervir nesse campo, então a frase do Manifesto Comunista pode se transformar num triste consolo ideológico, mas também num epitáfio.

Francisco de Oliveira é pesquisador do CEBRAP, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP e fundador do PT.