Nacional

Dentro de poucos meses, ele receberá a patente de general-de-brigada, conforme a anistia aprovada para os militares. Será o primeiro general do PT. Em seu formidável depoimento à Teoria e Debate, Apolônio relembra sua militância de comunista internacionalista, que lutou no Brasil, na guerra civil espanhola, na resistência francesa. A entrevista que se segue, com esclarecimentos inéditos de fatos históricos, só faz dignificar as 21 páginas abertas excepcionalmente para a seção "Memória"

 

 

 

Figura legendária, a trajetória de vida do primeiro general do PT se confunde com o roteiro de um romance épico. Oficial do Exército brasileiro, engaja-se na luta democrática contra a ditadura getulista. Preso em 1935 como membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL), vive, com centenas de outros presos políticos, o drama retratado por Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere.

Libertado, filia-se ao PCB e segue para a Espanha juntamente com outros milhares de revolucionários internacionalistas de todas as partes do mundo para lutar contra as tropas nazi-fascistas de Franco, em defesa da República popular; como os personagens de Por quem os sinos dobram, de Ernest Hemingway.

Derrotado na Espanha, Apolonio, o "Apolinário" de Jorge Amado em Subterrâneos da liberdade, asila-se na França, junta-se à Resistência e participa da guerrilha dos maquis, responsável por importantes e decisivas derrotas das tropas de ocupação alemãs.

Apaixona-se por Renée, sua mulher até hoje, na época adolescente de uma família de comunistas franceses. Na companhia dela, retorna ao Brasil em 1947, participando da militância clandestina do PCB. Mais tarde, os "rachas" do partido o levaram a fundar o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Enfrentando a ditadura militar, sofre torturas na prisão, até ser resgatado por um comando guerrilheiro em troca do embaixador alemão.

Exila-se na Europa onde reflete, reexaminando criticamente a trajetória das esquerdas brasileiras. Vem desta época a decisão de luta pela formação de um partido de massas, democrático e revolucionário, sem os ranços da esquerda tradicional.

Durante dois dias, Teoria e Debate compartilhou do carinho e abusou da generosidade do casal de revolucionários. Desta conversa, nasceu esta entrevista com Apolonio de Carvalho, um dos fundadores do PT, lúcido em seus 78 anos.

TeD - Apolônio, sabemos que, em 1935, boa parte do Exército do Rio Grande do Sul estava envolvida no processo insurrecional, mas acabou não participando. Assim mesmo, você foi preso e transferido para o Rio de Janeiro. Como oficial do Exército, como foi seu engajamento na Aliança Nacional Libertadora (ALN)? Você já era do PCB?

Apolônio de Carvalho - Antes de tudo, foi uma opção voluntária muito colada a problemas e impulsos muito particulares e ligados a uma época muito original. A minha geração foi uma geração privilegiada, porque ela abarcou três das fases mais altas de presença popular na vida do país e de crises econômicas que agitaram inteiramente a vida nacional: as fases de 1930, 1960 e a fase nova, que nós estamos vivendo desde o final dos anos 70. A geração de 1930, eu considero uma geração privilegiada: tivemos diante de nós os grandes dilemas do mundo e da humanidade. Dilemas que não se limitaram apenas a exigir opções, mas que exigiram soluções imediatas ou a muito curto prazo. Por exemplo: o problema da paz ou da guerra nos anos 30. O problema da democracia, da liberdade ou dos regimes totalitários (o nazismo alemão, o fascismo italiano, o franquismo na Espanha, [o Marechal] Pétain na França) ou, dentro das características nacionais, o Estado Novo brasileiro. Também tivemos o problema da crise econômica e a grande questão: sobre quem recairiam os efeitos da crise econômica.

Esses eram os grandes dilemas da época que vinham um pouco das agitações que tinham ocorrido em anos anteriores. No Brasil, os anos 20 são anos de governos autoritários no mais alto nível: quatro anos de Estado de sítio no governo [Artur] Bernardes, de 1922 a 1926; o governo Washington Luís, que considerava o movimento social, o socialismo e o comunismo questões de polícia; como reação houve a primeira tentativa de uma Frente Única de caráter popular que o Bloco Operário e Camponês, dos anos 1926 e 1927, tentou ressuscitar depois e não conseguiu. Essa situação nova impunha a predisposição para a participação na vida política. Mas também havia outros elementos: havia a presença política organizada da classe operária na cena política nacional. A presença do PC, fundado em 1922, que só aparece verdadeiramente como uma força política organizada e independente, trazendo mensagens próprias, na primeira metade dos anos 30. Inclusive com a versão brasileira da política das frentes populares: a Aliança Nacional Libertadora em 1935. Tudo isso determinou que a minha geração participasse mais diretamente dos acontecimentos. Na minha família havia também os efeitos, desde a infância, de um outro momento muito particular na história do país, que vinha do final do século passado, das grandes crises políticas, da crise geral do escravismo, da crise geral do regime de monarquia, dos anseios de mudança e da modernidade, a busca da República e de um pouco de liberdade e de participação, dentro dos limites e da consciência trabalhadora da época.

Foi a primeira ruptura com o passado e o primeiro ensaio de entrada na era contemporânea de nosso país, porque estávamos muito atrasados. Tudo isso contribuiu para formar uma idéia de liberdade, de apego à idéia republicana, aos princípios dos direitos humanos e, sobretudo, a recusar regimes de força. Todos esses, também, são elementos que conduziam para um afluente a disponibilidade interna da vida política, dentro de uma organização revolucionária contestatória. Não ainda socialista.

TeD - O positivismo era muito forte nesse momento e, principalmente, junto ao Exército brasileiro, às Forças Armadas. Como é que você tratou esta questão, ou até 1935 isso não teve força maior?
Apolônio de Carvalho - Há os que dizem que na própria existência, no próprio espírito das concepções que, em parte, geraram a vida do Partido Comunista nos primeiros anos a influência positivista estava presente, inclusive nos setores das Forças Armadas, da oficialidade. E meu pai, que tinha sido cadete de Benjamin Constant, uma das figuras mais conhecidas dos adeptos do positivismo naquela época, nunca revelou simpatia por regimes autoritários. Pelo contrário, prevalecia a visão de espírito de liberdade, de espírito de apego aos princípios republicanos, dos direitos humanos e, sobretudo, a recusa do regime de força. Talvez o velho refletisse alguns elementos herdados de sua origem: filho de camponeses pobres, migrado para Salvador para poder viver, operário em Salvador, foi soldado do Exército. Depois, fazendo exame na Escola Militar da Praia Vermelha, saindo oficial e continuando com este espírito, apesar de se dizer e se sentir positivista. Como eu vou para a Escola Militar do Realengo...

TeD - Em que ano?
Apolônio de Carvalho - Em 1930. Então, eu vou para a Escola Militar do Realengo e encontro estímulos a este espírito. Por quê? Porque todo o Exército, neste momento, e a juventude da Escola Militar, em particular, todos nós sofríamos influência muito grande dos estados românticos e da trajetória de lutas e heroísmo dos combatentes da Coluna Prestes, do tenentismo e de suas bandeiras. Eram bandeiras de austeridade dos governos, de respeito ao povo de uma maneira geral, de democracia, sobretudo de recusa aos regimes de força: dignidade, liberdade e democracia. Então, na Escola Militar, a gente encontra este ambiente gerativo da democracia. É um Exército que está muito envolvido por uma contestação armada que percorre o Brasil durante dois anos, em novos ensaios de contestação que se repetiram em 1928 e, também, toda uma crise política que prepara o movimento armado no país, que é o movimento de 1930. Essa situação abre campo para debates, uma certa liberdade de opinião e de pensamento no interior da Escola Militar.

TeD- A Coluna Prestes teve grande participação de militares. Esse fato não desencadeou uma ação repressiva nos quartéis, como ocorreu depois de 1935, depois de 1964 mais ainda, aumentando o rigor no processo de seleção dentro do Exército?
Apolônio de Carvalho  - Eu creio que os efeitos foram outros porque a crise política que intervém, no momento, tem um caldo de cultura extraordinariamente forte. É a maior crise cíclica, a mais brutal das crises econômicas de que se tinha conhecimento. A crise de 1929 é, portanto, algo que abala, inclusive, a rotina da vida de cada cidadão. Estamos entrando na preparação de grandes choques, das eleições, do movimento político-militar de 1930. Ao mesmo tempo, nós temos o Exército dividido e marcado por um certo mal-estar, porque a Revolução de 1930, que iria dar lugar especial aos tenentes, e, também, a revolução da burguesia industrial, que fez sua revolução democrática neste momento. Então você tem, além dos tenentes, a co-autoria dos capitães que são generais. Cordeiro de Faria, num trabalho muito interessante sobre sua biografia, fala da divisão relativa entre certas esferas da oficialidade: as que tinham participado dos círculos oficiais e as que vinham dos círculos contestatórios, que eram os círculos dos tenentes. O movimento de 1932 iria colocar em choque as duas alas do Exército. Mas, em cada uma delas, haveria os que antes eram partidários da rebelião e os que eram partidários do círculo de oficiais, portanto legalistas. Então, cada lado uniu estas forças que estavam antes taticamente contrapostas. Era um período de transição na vida política do país. O movimento de 1932 permitiu amenizar esta situação e buscar o rumo para a homogeneidade do quadro da oficialidade que se veria de maneira mais completa e categórica diante dos acontecimentos de 1935.

TeD - Getúlio Vargas é uma figura polêmica na história do Brasil. Qual o papel que ele desempenhou nesse período?
Apolônio de Carvalho - Cada figura tem seus dois lados. Os anos 30 não têm um momento político-militar arbitrariamente escolhido por esta ou por aquela personalidade ou grupo político ou grupo econômico. São anos que marcaram a escalada do capitalismo no Brasil. É a revolução democrática no país, ocupação de postos importantes e determinantes no aparelho de Estado por sua parte mais forte e mais voltada para as mudanças, que era a burguesia industrial. Getúlio tem um papel de agente ativo, participante, que dá fim à República Velha e que deve criar uma situação nova. É quando entra na cena política e inicia o seu governo, numa situação em que o Brasil está com uma imensa onda de inconformismo diante dos regimes de força. É, ao mesmo tempo, o período em que o movimento operário faz avanços e levanta problemas de tática e de estratégia que não levantava antes e em que o Partido Comunista busca a aliança com o tenentismo. A primeira medida tomada por Getúlio, após a vitória em novembro de 1930, é uma lei que estabelece o regime autoritário no país. Não se diz um governo ditatorial, mas um governo dotado de poder discricionário no país. Fica anulada a presença do Parlamento, do Poder Judiciário, a Constituição, com o absoluto arbítrio dos novos governantes etc. Isso ajuda a compreender por que certas áreas se sentem prejudicadas, como em São Paulo, fazendo com que o movimento popular alcance a classe operária, as classes médias, profundamente influenciadas pelo movimento constitucionalista. E assim se tem, também, uma idéia de que há razões dentro do Brasil para querer um governo democrático que ouça as aspirações populares de liberdade e mudanças dentro do país, como prometia o antigo programa da Aliança Liberal.

TeD - Como é que se formou e como foi a sua inserção na ANL? Como é que a ANL chegou aos quartéis, como essa proposta era recebida e o que representava nesse momento?

Apolônio de Carvalho - Eu saí da Escola Militar no final de 1932, em fins de 1933 eu já era oficial. Eu não era de tendência socialista, não tinha a visão de um regime diferente, mas o período da Escola Militar me ajudou muitíssimo a ter uma idéia contestatória desse período. Eu não tinha a alternativa, não tinha uma visão do socialismo, conhecia vagamente o que se dizia sobre a Rússia socialista da época etc. Mas achava, primeiramente, que era necessário mudar a sociedade brasileira. Ao sair da Escola Militar, eu já levava uma visão muito clara de que essa sociedade era muito injusta e de que era preciso modificá-la. Um colega do Rio Grande do Sul, um capitão do Exército, Rolim, muito amigo, me falou da ANL, o que era essa frente popular, o que era esse movimento democrático nacionalista, voltado naturalmente para profundas modificações econômicas mas também com muitas possibilidades de participação na sociedade, na vida política do país etc. E eu gostei do quadro geral, mas achei que era, ainda, pouco profundo e pouco avançado em relação à visão genérica que eu tinha das pessoas dessa época. Mas fiquei, mais ou menos, “ganho”. Logo depois, as circunstâncias me levaram a participar mais ativamente da criação da ANL. Então, eu participei da organização dessa frente popular, dessa organização de frente única, ampla, dentro da cidade de Bagé e outras cidades próximas.

TeD - O que fez com que você se engajasse na construção da ANL?
Apolônio de Carvalho - Foi mais um problema de tática, de compromisso humano. Porque esse amigo meu, capitão Rolim, enfrentava discussões muito sérias nos sindicatos dirigidos pelos anarquistas, que tinham dúvidas sobre uma tática de frente popular. Ele me pediu ajuda nas tarefas de organização da ANL. E eu pensei que iria ajudá-lo apenas materialmente, cedendo casa, local, facilitando outras possibilidades etc. Mas, na realidade, ele queria que eu o acompanhasse aos sindicatos, fizesse debates, apresentando a ANL.

TeD -Isso em 1935?
Apolônio de Carvalho - Sim. A Aliança existiu em 1935, de março a junho de 1935. Acontece que, ao acompanhar aquele companheiro aos debates que ele fazia, fui levado normalmente por ele, pelas circunstâncias, pelo meu compromisso moral de ajudar, a participar do debate. A prática fez com que eu me engajasse na luta, mergulhasse fundo no trabalho político.

TeD - E o papel do PC?
Apolônio de Carvalho - Não existia naquela época. Pelo menos na minha cidade não existia. Eu não conhecia o PC até aquele momento. A ANL era uma frente popular, uma formação de frente única, de frente ampla, com a presença e influência crescente dos comunistas. Mas sem ter sido criada pelos comunistas. Criada pelo movimento do inconformismo, pela luta contra as ameaças do regime de força, pela luta contra as ameaças de uma organização de tipo fascista, que se apoiava, em 1932, no que se chamava Ação Integralista Brasileira. Dentro desse quadro, havia o movimento operário combinando temas e bandeiras econômicos com temas e bandeiras políticos. A ANL surgiu dentro de um momento de preparação da primeira Lei de Segurança Nacional, da luta contra as ameaças de um regime de força, da luta contra o imperialismo. Havia uma corrente muito grande de movimentos, do movimento sindical, do movimento operário, da intelectualidade. O PC integrou-se a esse movimento, influenciou esse movimento. Mas, no Rio Grande do Sul, onde eu atuava, não existia o PC. Não existia em Bagé nem em Pelotas. É possível que existisse clandestinamente, mas não tinha expressão. Os que falavam comigo em nome da ANL não se diziam comunistas: Rolim devia ser comunista, membro do PC, mas não se apresentava como comunista.

TeD - Quando se deflagrou o movimento armado, vocês foram surpreendidos?
Apolônio de Carvalho -Nós fomos surpreendidos.

TeD -  É curioso, porque eu fiz uma matéria com Armando Mazzo, um operário que foi o primeiro prefeito comunista do Brasil, e ele se referia a 1935 como uma quartelada, mostrando que o movimento operário em São Paulo já era organizado e que eles foram pegos totalmente de surpresa. E você afirma que, lá no Sul, o pessoal ligado às Forças Armadas, no seu caso, a ANL, que tinha esse ramo militar, também foi pego de surpresa. Então, como é que foi esse processo que levou a detonação do movimento armado a ser tão fragmentada e sem maior expressão?
Apolônio de Carvalho - A pergunta está muito ligada ao que verdadeiramente deve ser debatido em bases mais amplas: a uma velha dúvida das esquerdas. A esquerda não explicou ainda, para o nosso povo, as origens, as condições, os erros e os acertos de sua trajetória, sobretudo em momentos altos de sua participação na vida política do país. Isso é real para 1935, é real para 1947, 1948, até 1957. Para depois do fim do Estado Novo. Real também para os anos 60. Nós temos ainda uma dúvida muito grande para explicar as razões de nossa luta e as razões de nossa derrota, e a justeza e dignidade de nossa luta. O que posso dizer é que, em 35, o erro principal não vem de novembro. O erro principal vem de julho, no momento em que se dá de mão beijada ao poder de Estado a possibilidade de jogar a ANL na ilegalidade: é o manifesto de 5 de julho. Na realidade, é uma verdadeira declaração de guerra a Getúlio. E aí...

TeD - Cutucar a onça com vara curta?
Apolônio de Carvalho - Eu não diria nem isso. Não foi feito também com o desejo de espicaçar o adversário, de provocar o adversário. Foi feito, naturalmente, dentro de uma imensa vontade de acertar e depois de uma enorme convicção de que havia condições para isso. Mas aí é que eu lembro para vocês a nossa dívida da esquerda: o erro estava em avaliar mal e subestimar o adversário. Essa confusão entre desejo e realidade é uma das fontes de erro da esquerda em todas as fases de nossa vida, de nossa trajetória.

TeD - Será só isso?
Apolônio de Carvalho - Não. Em 1935 houve esse erro fundamental e também outras causas de erro: o manifesto de 5 de julho poderia se chamar “luta armada”. Havia, assim, uma espécie de continuidade do espírito tenentista na visão preferencial da luta armada como forma de luta política, sem ter em conta os níveis da luta de classes e das ações de massa. E sem a visão de que, se o adversário pode precipitar os gestos de violência e instaurar um regime autoritário, nós poderíamos impedi-lo e fazê-lo antes. Acreditávamos que tínhamos condições para isso. A alternativa do poder antecipava-se à alternativa de governo. Antecipava-se à visão das possibilidades novas que poderiam se abrir com as eleições...

TeD - Mas havia também uma situação internacional presente, havia uma estratégia da III Internacional*, idêntica para outros países. Essa orientação teria influenciado a decisão de 1935?
Apolônio de Carvalho - Eu creio que havia a vocação para a solução armada, própria do nosso país. Nós viemos da experiência do tenentismo dos anos 20, da solução armada para as crises de 1929 e 1930 e de uma situação em que as soluções armadas se colocavam como caminhos obrigatórios no quadro das contradições internas, como foi a guerra civil de 1932, o movimento armado constitucionalista.

Agora, a situação internacional pesou particularmente nessas decisões em virtude das orientações que certas forças políticas, no Brasil, procuraram dar aos choques que estavam em curso. E, naquele momento, só havia uma força de esquerda no Brasil: o Partido Comunista Brasileiro. O Partido Socialista existia, mas era relativamente fraco. O peso da orientação do PC nessa visão da solução armada foi determinante nos anos 30 como o caminho privilegiado, o caminho preferencial e mesmo como o caminho necessário e único para a solução dos problemas do povo. Foi uma concepção que a Internacional Comunista trouxe, a partir de 1928, no seu VI Congresso, para partidos comunistas em todo o mundo: o mundo estava verdadeiramente às vésperas de uma deflagração geral revolucionária. A Europa estava em marcha para uma revolução depois do hiato que foi de 1923 a 1928. E, no Brasil, também se tinha a impressão, por intermédio da Internacional Comunista, de que havia uma situação revolucionária em gestação. O caminho natural, portanto, era não esperar que o adversário — que poderia estar preparando um golpe de Estado, um regime de força — se antecedesse às forças populares. Na Conferência dos Partidos Comunistas da América Latina, em agosto ou setembro de 1929, esses preceitos e essa orientação tornaram-se efetivos e chegaram ao nosso partido. No início de 1930, uma resolução do Comitê Executivo — talvez o primeiro documento da Internacional Comunista voltado para o Brasil especificamente — condenou qualquer participação nas eleições de março de 1930, qualquer ilusão não ligada à via armada, à violência, assim como qualquer frente única com as forças pequeno-burguesas. Também proclamou que estariam sendo criadas condições para, de um momento para outro, deflagrar espontaneamente a insurreição popular. Essa orientação explica 1935, e explica por que se precipitaram os acontecimentos.

TeD - Mas como se explicam o descompasso e o desentrosamento do Rio Grande do Norte e do Rio de Janeiro com os demais estados? Por que o movimento ficou restrito aos quartéis? Por que não houve uma reação das forças populares, já que a Aliança tinha grande penetração nos setores populares?
Apolônio de Carvalho - Acontece que o manifesto de 5 de julho abriu espaços à clandestinidade. Com a decretação da ilegalidade da ANL, não havia mais contato com a sociedade. A polícia e os integralistas vinham, desde 1933, 1934 e nos meses iniciais de 35, fazendo todo o possível para perturbar os comícios, as demonstrações e as manifestações de massa. Após a criação da ANL, a força conjugada da polícia e dos integralistas tornou-se ainda mais aguda, mais corrente, mais constante. A ilegalidade da Aliança a impossibilitou de atuar legalmente com suas bandeiras e suas forças de articulação. Houve, então, uma orientação dos comunistas e da ANL para preparar o movimento armado para o final do primeiro trimestre de 1936 e não em 1935. Contava-se que ele seria o detonador de uma grande faixa de insurreições parciais. Mas o quadro de apelo à grande derrubada do governo, com o manifesto de 5 de julho, provocou o movimento em Natal, com alguma participação popular, que se expandiu para Recife e, em última instância, o movimento do Rio, que se reduziu à atuação em dois quartéis.

TeD - Qual a repercussão no Sul?
Apolônio de Carvalho -De nossa parte, surpresa, da parte do governo, do poder constituído, a repressão. Nós, que participávamos da faixa legal da ANL, fomos presos.

TeD - E não houve esboço de reação?
Apolônio de Carvalho - Não. Não havia possibilidade, não havia nenhum desejo de fazer qualquer coisa improvisada, em função do que se passava em outras áreas do país.

TeD - Você já era oficial quando foi preso?
Apolônio de Carvalho -  Era tenente. Já tinha dois anos de tropa. Eu fui preso e fiquei de fim de novembro até metade de março em Bagé, preso nos quartéis. Depois fui transferido para as prisões do Rio.

TeD -  Fale um pouco das prisões do Rio. Você concorda com a visão de Graciliano Ramos no seu famoso Memórias do cárcere?
Apolônio de Carvalho -  Eu tenho grande carinho pelas Memórias... do Graciliano, eu tive a alegria de conhecê-lo na Casa de Correção do Rio, estudamos juntos e eu tenho respeito enorme pela sua condição de romancista, de mestre, sua força, a riqueza de criação que ele apresenta... Mas eu não estou de acordo, absolutamente, com a visão que ele tem do espírito das prisões, das tropas que estavam nas prisões e de qual era o nosso espírito em 1936. Nós estávamos contaminados pela idéia de que o movimento de 1935 era legítimo, a Aliança Nacional Libertadora era uma iniciativa inteiramente legítima e necessária e seu programa correspondia às necessidades do país e que, embora derrotado em novembro daquele ano, havia forças que acreditavam na continuidade desse movimento. Cheguei ao Rio como um simples militante da Frente Popular da Aliança Nacional Libertadora.

TeD - Você estava com quantos anos nessa época?
Apolônio de Carvalho - Eu estava com 25 anos. Na prisão, eu encontrei companheiros da Escola Militar. Passei a conhecê-los como comunistas, como membros do PC. Os comunistas tinham a visão de que a revolução não estava derrotada, o movimento revolucionário não estava derrotado, que 1935 era apenas um episódio e que viriam muitos outros episódios. Esse sentimento persistiu até agosto de 1936. Eu vivi esse ambiente, parte na Casa de Detenção e parte na Casa de Correção. Graciliano olhou todo esse movimento com espírito crítico muito acentuado e seguramente com muitas razões para criticar essas ilusões. Agora, é preciso compreender o espírito dos jovens que estavam ali. Nós acreditávamos, uma certa faixa ainda não engajada no PC, na justeza da luta da Aliança Nacional Libertadora e, portanto, embora surpresos, nós pensávamos que haveria ainda a continuidade do movimento revolucionário.

TeD - Em função do quê?
Apolônio de Carvalho - Em função do idealismo dos jovens e, também, em função da mística entre os militantes comunistas da infalibilidade das direções do PC, da infalibilidade das orientações vindas da Internacional Comunista. Havia, também, uma grande diversidade de presos: companheiros que participaram diretamente da luta armada, companheiros vindos de outras áreas, como nós, oficiais e, também, uma parte da antiga direção da Aliança Nacional Libertadora. Aí havia profissionais liberais, políticos que seriam conhecidos de maneira mais direta mais tarde, dirigentes da ANL do mais alto nível: Ercolino Cascado, presidente executivo da Aliança Nacional Libertadora; Roberto Sisson; Benjamim Cabejo, como secretário-geral; professores como Castro Rabello, Leônidas de Rezende, Hermes Lima; jornalistas do Rio e de São Paulo; e professores, como Febus Gikovate; políticos como Francisco Mangabeira.

Renée - Havia uma perplexidade muito grande. Afinal de contas, eles aderiram a um movimento, uma frente ampla que tinha objetivos nacionalistas e democráticos em geral e talvez nas próximas eleições. E, de repente, são postos na clandestinidade por causa de um manifesto feito à revelia deles e também por um movimento revolucionário do qual não participaram.

TeD - Você concorda, Apolônio?
Apolônio de Carvalho -  Eu é que contei a ela. Acontece que essas coisas ficavam no quadro das discussões internas. O problema era o seguinte: havia divergências porque membros da direção da ANL estavam, como diz a Renée, em desacordo com o curso tomado pelos acontecimentos, como o manifesto de 5 de julho e os movimentos armados. Nós, na Casa de Correção, sentíamos isso de longe, porque eram discussões internas, que se davam entre dirigentes do PC e a direção da ANL, quer dizer, os elementos correspondentes à antiga direção da ANL. Isso, como era natural, influenciava amplamente a visão do velho Graciliano, sem dúvida nenhuma, a visão real. A única reserva que faço a Graciliano é o fato de não ter sentido o porquê de um entusiasmo de jovens e o porquê de novas ilusões. Ele não aprofundou essa questão e, no entanto, estava muito presente em todo o período da prisão. Isso faria com que muitos de nós entrássemos para o PC no período da prisão. Eu entrei para o PC nesse período. Não me inscrevi no partido porque, no período de prisões em 1936, 1937, não se fazia recrutamento para o partido. Mas no primeiro dia de liberdade eu já era membro do partido. Saí em junho de 1937 e, no dia seguinte, eu me inscrevi no partido. Esse entusiasmo, essa confiança na capacidade do partido, apesar da derrota sofrida, era uma coisa que nos marcava. Era a visão mística do partido que marcou a geração que verdadeiramente participou da luta de classes, da política do proletariado dos anos 1936, 1937, tendo como pano de fundo a direção bolchevique que fez a primeira revolução mundial, o primeiro Estado socialista.

TeD - Foi durante esse período de prisão que você avançou na sua formação?
Apolônio de Carvalho - Eu conheci a existência do PC na prisão, a grande escola de formação política. Lá eu entrei em contato com o dirigentes internacionais que participaram da luta: Rodolfo Ghioldi, Olga Benário, [Luís Carlos] Prestes. De longe na prisão, conheci Lise Berger, esposa do Harry Berger. Conheci Eneida, Rosa Meireles, Maria Werneck. A intelectualidade que estava engajada na luta ampla da ANL. Conheci os grandes catedráticos das faculdades do Rio, esse quadro todo que não era comunista. Mas foi, sobretudo, a faixa comunista que me fez conhecer a sociedade, as classes da sociedade, a luta de classes, um pouco da luta operária no mundo e no Brasil, e a razão de ser... E aí eu me senti já no caminho do militante comunista.

TeD - A saída da prisão foi provocada pelo quê? Anistia?
Apolônio de Carvalho - Não, foi a volta da vigência da Constituição brasileira. A Constituição de 1934 voltou a vigorar. Macedo Soares, ministro da Justiça, foi o instrumento, o artesão, que refletiu a recusa, inclusive de setores amplos das classes dominantes, de se manter um regime de força. Não havia mais estado de guerra no Brasil nem estado de sítio. Então, a Constituição voltou a vigorar. E os que estavam sem processo foram postos em liberdade, centenas de companheiros soltos. Talvez milhares no Brasil. Mas centenas ali.

TeD - Ao sair da prisão, você foi expulso do Exército brasileiro?
Apolônio de Carvalho - Não, fui expulso quando ainda estava preso em Bagé, em 9 de abril de 1936, sem processo, sem ser ouvido.

TeD - E quando você foi para a Europa?
Apolônio de Carvalho - Eu fui poucas semanas depois.

TeD - Como foi esse período de definição para ir à Europa?
Apolônio de Carvalho - Na prisão, o processo de formação política estava ligado também à prática geral, à discussão dos problemas gerais, acompanhando os acontecimentos internacionais por meio da imprensa, das visitas. Acompanhamos a vitória da Frente Popular em fevereiro na Espanha e em maio na França e depois o levante dos militares do coronel Franco, depois generalíssimo. Estávamos identificados com a luta da República espanhola e com o seu programa, que era muito parecido com o da ANL: contra os monopólios estrangeiros, pela reforma agrária, pela autonomia sindical, pelas liberdades sindicais, pelas amplas conquistas sociais etc. O fascismo ameaçava alastrar-se em todos os países. A luta antifascista era uma bandeira universal naquele tempo e eu estava apaixonado pelos problemas da luta antiimperialista. Ao sair da prisão, houve uma reunião do Comitê Central do PC em que se decidiu participar da luta internacional contra o fascismo e recrutar voluntários. Havia uma boa leva de militares, desde cabos, sargentos, até oficiais, todos excluídos da Forças Armadas, convidados para ir à Espanha.