Sociedade

O combate contra a opressão da mulher na sociedade já obteve conquistas, já errou, amadureceu e tem agora um novo desafio, numa nova conjuntura. Após a vitória dos candidatos petistas em 36 prefeituras e a eleição de quase 1000 vereadores, é preciso avançar. A tarefa agora é estabelecer políticas públicas que ataquem as causas e as manifestações do preconceito contra a mulher. Os governos do PT devem criar organismos com autonomia financeira e administrativa, para formular e executar políticas que atendam as necessidades das mulheres e enfrentem as diferentes formas de discriminação sexual.

A década de 70 em nosso país foi marcada, por um lado, pela política ditatorial dos governos militares; por outro, entretanto, foi povoada pelos diversos movimentos sociais populares. Movimentos que fizeram emergir novos atores e novos temas políticos 1. Entre esses novos atores estão as mulheres, que, ao transcenderem seu cotidiano doméstico, fazem despontar um novo sujeito social - mulheres anuladas emergem como mulheres inteiras, múltiplas, heterogêneas. Estão nos movimentos contra a carestia, pela anistia, na luta por creches, criam associações e casas de mulheres, entram nos sindicatos para seus encontros. Novos temas entram no cenário político, introduzidos pelo feminismo.

Esse movimento que ressurge na década de 70 traz heranças, mas vem com cara nova. Ainda que vinculado às ideologias da esquerda, expressará uma série de questões e problemas que as esquerdas foram incapazes de solucionar e assumir. Traz uma redefinição da política: incluirá nela as relações de poder presentes no cotidiano, ampliará os espaços de participação. Denunciará ainda diversas formas de dominação, que se criam e recriam cotidianamente. Esse feminismo torna visíveis as relações de poder estabelecidas entre as pessoas, por todo o tecido social, atuando como fios invisíveis que cruzam as relações humanas: são sistemas de opressão, igualmente determinantes da e na vida das pessoas e dos grupos sociais; são as relações hierarquizadas entre sexos. A interferência feminista torna visível, compreensível, a relação dialética e reforçadora entre a estrutura de classes do capitalismo e a estruturação sexual hierárquica do patriarcado.

Ao apontar que capitalismo e patriarcado (como supremacia dos homens) não constituem sistemas nem autônomos nem idênticos, mas interdependentes, o feminismo indicou que opressão e revolução não são conceitos equivalentes. A exploração fala da realidade econômica, da relação de classes no capitalismo, para homens e mulheres; a opressão refere-se às mulheres e às minorias, definidas por meio das relações patriarcais, racistas e capitalistas. A junção desses dois conceitos desvenda a exploração específica.

As feministas debatem com as esquerdas e forças políticas progressistas alguns pontos da teoria e da prática do fazer político.

Estabelecem uma diferença entre sexo e gênero, para diferenciar o social do biológico: enfatizam a construção social da identidade da mulher e do homem. Não se nasce mulher, chega-se a sê-lo2.

Deste modo, enfatizam que os fatores de poder condicionantes da situação feminina não se referem somente ao domínio político, como se entende no sentido clássico. É necessário agregar outras categorias, outros sistemas de opressão, como o patriarcado, para desvendar as ligações entre relações sociais de produção e relações sociais de reprodução; entre trabalho assalariado e trabalho doméstico; reino do público e do privado; divisão sexual do trabalho e relação de classe.

As feministas formaram, assim, o conceito de autonomia do movimento de mulheres, uma questão decisiva: as mulheres tinham de organizar sua própria luta contra a opressão, isso não podia ser feito pelos homens3 ou pelos partidos.

"Nessa relação de opressão, mulheres e homens são os termos em contradição, para cuja solução ambos devem ser superados: aos homens compete a responsabilidade da opressão, aos oprimidos compete a rebeldia." (Julieta Kirkwood)

Trazendo as relações pessoais para debate, as feministas querem uma política que veja as ligações entre vida pessoal/opressão da mulher na casa e a exploração entre homens e mulheres no trabalho assalariado. O feminismo questionou a visão estadista da mudança social, assinalando que não basta apenas transformar o Estado - é preciso mudar também as relações pessoais e as idéias. Não se trata de esperar que estas se modifiquem, num passe de mágica, pelas transformações econômicas e políticas: pode-se começar as mudanças políticas desde já. O feminismo rejeitou, assim, uma hierarquia de lutas: a libertação das mulheres começa já. Quebrou a separação radical entre privado e público, conceituando que o pessoal também é político, descompartimentalizando os problemas de ordem privada para transformá-los em questões públicas, coletivas, a serem tratadas como tais na arena política. Deste modo se faz necessário desenvolver políticas que transformem a família, que regulem a sexualidade e que busquem novas formas de convivência entre os sexos.

As feministas, juntamente com as mulheres dos movimentos populares e sindical, vão constituir um movimento cuja característica fundamental é a heterogeneidade, a pluralidade. Movimento que mostrará ser multifacetada a opressão das mulheres.

Nos partidos políticos o feminismo reivindicará uma política diferente e um espaço de poder no Estado.

Idas e vindas do movimento

O movimento de mulheres tem marcado sua presença política, resistindo às tentativas de desqualificação bem como às tentativas de cooptação partidária e institucional4. Refluiu em certos momentos, partiu-se com a reorganização partidária, reinventou novas práticas.

O 9º Encontro Feminista, realizado em setembro de 19875, na cidade de Garanhuns, Pernambuco, reflete o crescimento e a vida atual desse movimento. Estiveram lá aproximadamente mil mulheres, das quais 70% vindas de setores populares, urbanos e rurais, e mais ou menos 20% das chamadas "feministas históricas". O relatório final, elaborado pela comissão organizadora, reflete a heterogeneidade desse movimento:

"...Foram muitas horas de trabalho, olho no olho, fala, choro, riso, tensão, discordância, dilema, medos, prazeres, descobertas. Por tudo isso, não foi possível em todos os grupos registrar tudo. Em todos os lugares havia montões de diferenças, de origens, linguagem de classe, de profissão, de cor, de idade, de sentimentos, de horas de vôo no feminismo, de estilo de vida, de posição política... Daí que a síntese tampouco pretende representar a pluralidade do encontro, mas certamente ela reflete sinais desse universo".

O feminismo trouxe novos temas para o conjunto do movimento de mulheres: direito de ter ou não ter filhos, punição aos assassinos de mulheres, aborto, sexualidade, prazer, lesbianismo como exercício da livre sexualidade, violência doméstica. O que constitui o privado e o cotidiano começa a estar presente e a impugnar a prática política.

Desenhando sua identidade, as mulheres vão construindo a trajetória do movimento, identificando os temas. Descobrem a centralidade do trabalho doméstico em suas vidas, descortinando a divisão sexual do trabalho, que lhes reservou um espaço "natural" - a casa, a família -, a partir do qual a mulher vê o mundo e é vista por ele. Ela é excluída do mercado de trabalho (ou nele incorporada intermitentemente) por ser a responsável pela reprodução da força de trabalho, tarefa cotidiana, pesada e invisível.

Quando as mulheres se encontram, retratam seu dia-a-dia, descobrem traços comuns, desenham reivindicações divisão dos encargos domésticos, creches como responsabilidade do Estado, fim da discriminação salarial, profissional e sindical -, exigem condições de trabalho compatíveis com as tarefas de reprodução.

Das discussões sobre o seu corpo, das reivindicações por melhores condições de atendimento à saúde, descobrem que apresentam necessidades específicas e exigem ser vistas inteiras, não só como um útero. A reflexão conjunta mostrou que o capitalismo patriarcal aprisiona a sexualidade da mulher no controle da capacidade reprodutiva. As mulheres passam a exigir políticas que lhes garantam o direito de optar conscientemente por ter ou não filhos, o direito à informação, o acesso a programas de saúde, e o direito ao aborto, como última opção individual. Os assassinatos de mulheres, antes simples fatos policiais, adquirem nova visibilidade. Os julgamentos mostram que quando a vítima é mulher não se julgam os atos, mas os atores e, principalmente, a própria vítima6. A violência doméstica é percebida como um dos efeitos perversos da educação diferenciada. A violência contra as mulheres passa a ser apresentada como um crime, como questão social e não privada. "Em briga de marido e mulher, deve-se meter a colher": exige-se, assim, que a mulher tenha proteção da lei.

As trabalhadoras, rurais e urbanas, passam a se ver como mulheres trabalhadoras, diferentes dos homens trabalhadores. Entender essa diversidade, mexer com ela no trabalho sindical não é dividir. As mulheres contestarão as relações de produção, as condições de trabalho, as desigualdades salariais, as relações de dominação dentro da fábrica, da família, na sociedade. As trabalhadoras apontam um desafio ao conjunto do movimento sindical: as direções têm que dar conta desta dimensão da luta de classe7.

Os encontros de mulheres vão explicitando como a opressão feminina articula indissoluvelmente casa-família-trabalho.

Esse movimento de mulheres, com sua heterogeneidade, com suas invisibilidades, fez emergir dimensões múltiplas da opressão, levantou a questão da mulher na sociedade e na política, estabeleceu demandas para o Estado, para os partidos, para a família, para o indivíduo. São reivindicações reais de conquistas, mas nunca inteiramente fechadas: igualdade salarial, acesso profissional, direitos civis e direitos inéditos, creches, saúde, família, sexualidade.

Essa troca e convivência das feministas com as mulheres dos movimentos populares e sindical não se dá sem conflito. As desconfianças são motivadas porque as primeiras tocam em valores e papéis sociais que essas mulheres muitas vezes não questionam e que, por vezes, são reforçados nos seus espaços de atuação. O conflito decorre também da transparente postura de rebeldia e transgressão colocada pelo feminismo, apontando as relações de poder entre os sexos, que perpassam mesmo as atividades políticas. Temas antes considerados tabus são agora debatidos, escancarados, e o receio de que essas questões superem a questão de classe social faz com que esse confronto se estabeleça. Do outro lado há o conflito vivenciado pelas feministas, temerosas de que as questões de classe se superponham, de que se estabeleça a hierarquia das lutas gerais e específicas. Mas isso não tem impedido ações concretas conjuntas; há mesmo uma mistura, que torna difícil identificar claramente cada segmento do movimento de mulheres.

Feminismo no Estado dá samba?

As feministas que militam nos partidos políticos incluirão a questão da mulher nos programas e nas candidaturas das eleições majoritárias e proporcionais. As diferentes trajetórias do feminismo nos diferentes partidos políticos são um tema interessante para o debate. Elas refletem as diversas concepções sobre a articulação entre o capitalismo e o patriarcado bem como as concepções políticas mais amplas, espelhadas nas opções partidárias e nas forças políticas que as sustentam. Esse tema não será tratado neste artigo; vamos nos restringir a alguns de seus aspectos.

No ano de 1982, as feministas militantes no PMDB propuseram para o Executivo a criação de um órgão que viabilizasse políticas relativas às mulheres, que atendesse às reivindicações do movimento. Optaram naquele momento pela criação de conselhos ligados a uma secretaria como por exemplo a de governo, no caso de São Paulo. Embora Minas Gerais tenha criado o primeiro desses conselhos, a atuação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo será o modelo para os restantes, até 1985, quando se cria o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Até o final de 1988 existiam oito conselhos estaduais, 26 municipais e uma Secretaria da Condição Feminina. Além da diferença quanto ao nome (alguns são conselhos da Condição Feminina, outros conselhos dos Direitos da Mulher, o que não os diferencia na prática), alguns serão criados por decreto, outros por decreto-lei. Mas a diferença entre eles está na sua maior ou menor autonomia quanto às condições administrativas e financeiras. O que terão em comum é sua característica de conselho; ou seja, fazem parte da direção desses organismos mulheres representantes dos diversos segmentos da sociedade, além de, em alguns casos, representantes do Executivo. Serão organismos interfaciais entre a sociedade e o Estado, subordinados a outras instâncias do Executivo.

Tendo como atribuição principal a elaboração de políticas públicas sobre a mulher, mas marginalizados das instâncias do poder, de decisão e execução, os conselhos funcionam, no melhor dos casos, como órgãos consultivos, pois, diferentemente de outros conselhos, não terão nada a normatizar. Assim, a sua estrutura para elaborar políticas tem se demonstrado pouco eficaz.

A constituição desses conselhos representou um elemento progressista dentro da política da Nova República (que de nova só teve o nome). Representou o reconhecimento da questão da mulher como uma questão a ser tratada na esfera do Estado. Poderia ter representado o efetivo reconhecimento de que políticas públicas são reforçadoras e estimuladoras da discriminação sexual, sendo portanto da responsabilidade do Estado intervir com uma política antidiscriminatória. Mas isso só ocorreria se a capacidade real de ação desses conselhos não fosse tão limitada e, na prática, ilusória, refletindo a política conservadora e demagógica da Nova República.

Esses conselhos tiveram papéis diferenciados em cada Estado, município e no plano nacional, dependendo de sua composição política e das características do Executivo - afinal o PMDB, como partido majoritário no governo, é um "bonde" em que cabe de tudo. Alguns conseguiram influir na implantação de novos equipamentos sociais - como as delegacias especiais de defesa da mulher e os centros de orientação jurídica - ou modificações em serviços de saúde. Quando tiveram condição de funcionamento, o que realizaram com maior eficiência foi tornar mais visível a situação das mulheres, ampliar o espaço das denúncias e elaborar material de divulgação. Entretanto, em alguns casos, serviram como instância de promoção do Executivo, estabelecendo ações que reforçam os estereótipos femininos.

Na relação com o movimento de mulheres alguns conselhos conseguiram manter uma postura de respeito à sua autonomia e estimular sua organização e ampliação. Mas o mais freqüente foi o conselho constituir-se como pólo de articulação do movimento, ou criar um distanciamento do movimento.

De um modo geral, podemos dizer que esses conselhos trouxeram conquistas mais no plano cultural, ideológico, jurídico do que prático. Do ponto de vista da Constituinte houve conquistas, pois sem esses conselhos se tornaria quase impossível pressionar os constituintes na elaboração da nova Constituição.

Criados na expectativa de incorporar as questões das mulheres no âmbito do Estado, esses conselhos se mostraram incapazes de realizar programas que interferissem nas instâncias dos executivos. Ambíguos na sua composição, sem poder político, sem uma área de atuação específica, sem a exigência de que projetos envolvendo a mulher devem ter seu aval e acompanhamento, não são órgãos de elaboração nem de execução: limitam-se no máximo à assessoria na elaboração de projetos, cuja aplicação e execução estará a cargo de outras instâncias.

E agora, PT?

O PT tem tido uma orientação política acertada para a relação com o movimento de mulheres, tanto no sentido de identificar os mecanismos de exploração e opressão que se criam e recriam no interior das relações sociais como no respeito à autonomia desses movimentos. O partido vem atuando no sentido de multiplicar as formas de organização, respondendo às diferentes condições de vida e trabalho das mulheres, e apontando rumos que potencializem a intervenção nesse movimento. No entanto, no desenvolvimento de políticas que se reflitam no seu programa e nas plataformas, de governo, que apresentem propostas de como essa questão será tratada no governo petista, não se tem saído de generalidades. Agora não dá mais para escapar. A vitória do PT em 88, ao conquistar 36 prefeituras (em cidades onde o movimento de mulheres é expressivo) e ter eleito quase mil vereadores, torna urgente a resposta a essa questão.

Se o eixo de ação dos governos petistas nas administrações municipais estiver de acordo com as resoluções do 5º Encontro - "Um programa democrático e popular, de mudanças e reformas econômico-sociais como garantia de liberdade política e sindical (...), como tarefas eminentemente de democratização radical do espaço da sociedade, tarefas que se articulam com a negação da ordem capitalista (...)" -, esses governos terão que implementar políticas que priorizem os interesses dos trabalhadores, que criem condições para ampliar seus direitos e os canais democráticos representativos da população nas administrações.

No âmbito feminino, isso significa avançar além do reconhecimento da discriminação é a possibilidade de estabelecer políticas públicas que ataquem efetivamente as causas e manifestações da opressão sobre as mulheres. Os governos do PT deverão criar organismos com atribuições claras para formular, executar e/ou coordenar, com outras instâncias, as políticas que atendam às necessidades das mulheres e que enfrentem as diferentes formas de discriminação sexual. Organismos com autonomia financeira e administrativa, com poder de interação com outras instâncias no que diz respeito à mulher, que proponham programas, aprovem recomendações, acompanhem a implementação de planos. Não se trata de ignorar as experiências dos conselhos, mas de reelaborá-las.

A interação desses organismos com o movimento de mulheres deve refletir a relação da administração com todos os movimentos sociais, garantindo sua autonomia e estabelecendo mecanismos concretos de participação na formulação e no controle das políticas. Esses organismos deverão atuar para que, na prática, se cumpram os direitos conquistados pelas mulheres e se estendam esses direitos ao campo, onde não existem; deverão enfrentar as barreiras à incorporação real e concreta das mulheres ao mundo do trabalho e da cidadania; criar políticas que tragam os temas do espaço interior, doméstico e privado, para o mundo público; garantir às mulheres o direito à informação e atuar no sentido de tornar cada vez mais visíveis os mecanismos de reprodução capitalismo patriarcal.

Vera Soares é militante do movimento de mulheres, SP.