Cultura

Muito mais do que uma coleção de livros a biblioteca pública deve ser o centro de informações. Deve-se estimular o debate e fazer circularem todos os tipos de dados, valendo-se para isso dos recursos modernos da informática e a mais ampla variedade de meios. O importante é que haja liberdade total de opinião, mesmo que ela não coincida com a nossa.

O homem que lê vale por dois; "Abrir uma biblioteca é fechar uma cadeia." Estas duas frases-carimbo circulam com frequência e mostram um pouco do valor positivo que os livros adquiriram no país.

São poucos os municípios que não criaram a sua biblioteca, são raros os administradores públicos que, em seus discursos, não demonstram o apreço pela leitura. Afinal, esses elementos enquadram-se ou na Educação ou na Cultura, ambos identificados como marcas de civilização. Por isso, a cidade, por menor que seja, tem, ao lado da Igreja, da prefeitura, da delegacia de polícia e do Bradesco, uma Biblioteca Pública Municipal - por mais precária que seja. No Brasil existem milhares delas, ainda que não se saiba exatamente o que sejam. A sua configuração é variadíssima: uma sala, um prédio ou uma estante. O que pouco se altera é a função que se dá à entidade: a mais persistente é de que se trata de livros à disposição do público, uma espécie de banco onde as pessoas, principalmente os estudantes, vão ler ou emprestar obras literárias que, por um motivo ou outro, deverão conhecer. Quase sempre se trata da chamada "pesquisa escolar", uma prática que, implantada na década de 70, espalhou-se compulsoriamente por toda parte, alterando o perfil das bibliotecas públicas. Por isso, elas foram assumindo as funções das bibliotecas escolares, uma vez que os responsáveis pelo ensino público preocuparam-se em instituir a tal "pesquisa" mas não em dar condições mínimas de realizá-la. De qualquer forma, bem ou mal, as bibliotecas públicas persistem e, às vezes, apenas como uma mostra levemente empoeirada de cultura para constar.

Essa ideia de biblioteca como coleção de livros é uma herança de difícil descarte até para seres bem-pensantes. Séculos de colonização com a marca da Companhia de Jesus, o primado dos bacharéis, o torneio das palavras, a República das Letras, condicionaram o gosto pelo livresco, ainda que mais fascine o literário como símbolo do que a informação como serventia. E biblioteca é, essencialmente, um centro de informação e não apenas uma coleção de livros.

Se por séculos persistiu a escrita, incluindo aí a imprensa, como veículo básico do registro de conhecimento, em poucas décadas a humanidade, não excluindo os países subdesenvolvidos, foi atropelada por uma série de avanços tecnológicos, na área da informação, que ameaçam provocar uma ruptura entre a leitura tradicional e essa parafernália tecnológica que fornece os dados pretendidos em poucos segundos, via satélite. Dentro dessa perspectiva de ampliação de acesso à tecnologia, constata-se a rápida difusão do vídeo - que já chegou à classe média antes de ocupar espaço nas bibliotecas. A sua utilidade como instrumento de informação é óbvia. No entanto, integrá-lo à rotina de retira-e-devolve livros é tarefa que oferece alguns problemas. E o tradicional silêncio, como fica? Então, já se torna necessário criar espaços diferenciados: para a leitura e para o audiovisual. Quem desejar textos sobre a região amazônica poderá ler livros ou artigos na área de silêncio; quem optar por um documentário sobre o mesmo assunto dirige-se a um outro local, onde poderá ver documentários, fotos, ouvir canções ou o canto dos pássaros - o que, sem dúvida, ampliará o grau de informação do interessado. Com isso, transforma-se o perfil da biblioteca, rompendo a tradicional sacralidade do ambiente que os séculos moldaram.

O vídeo é citado como um elemento que rompeu com a rotina das bibliotecas. Há, no entanto, uma profusão de máquinas e procedimentos que estão incluídos na tecnologia da informação em disponibilidade e que permitem às pessoas ter acesso a textos, imagens, sons, com rapidez e precisão sem que as distâncias sejam barreiras. Basta que sejam feitos investimentos nisso. Entretanto, as bibliotecas, como regra, recebem mínimos recursos, nem sempre constando dos orçamentos públicos - e quando constam é, brasileiramente, pró forma. Daí o seu caráter precário. Não é identificada com clareza a sua utilidade. E, nesse sentido, antes de serem aperfeiçoados os serviços oferecidos à população, congelou-se o seu perfil à feição do século XIX, como um adorno, um símbolo civilizado de cultura. Os recursos públicos, esses são escassos e, por isso, devem ser canalizados para áreas de emergência. Se a escola está caindo, se não há posto de saúde, como investir serenamente em bibliotecas públicas? Então, os modelos mais avançados permanecerão inacessíveis nos mostruários do Primeiro Mundo. Este, é bom que se frise, investe na circulação de informação e de bens culturais não porque tem recursos, mas porque quer ter mais.

Informar/discutir/criar

Informar é o verbo fundamental. Estrategistas do desenvolvimento e das lutas políticas afirmam que informação é poder e que em estado de ignorância não é possível avançar muito. Na perspectiva da biblioteca, é preciso distinguir o acesso às informações (como uma necessidade básica) da busca de leitura (como passatempo prazeroso), ainda que isso nem sempre seja possível de forma clara. No primeiro caso, as pessoas procuram o conhecimento como instrumento específico para determinadas situações: adquirir técnicas, conhecer procedimentos, dominar a legislação, pesquisar sobre um assunto em particular, enfim, juntar dados em vista de um problema a ser esclarecido. Deverá ser incluída aqui a denominada "informação útil", aquela de primeira necessidade e até de emergência (como orientações básicas ao cidadão, objetivando a realização plena da cidadania, a relação entre seus direito e seus deveres, encaminhamento para questões jurídicas, informações sobre a administração e serviços municipais, dados sobre o mercado de trabalho e empregos oferecidos, formas de obtenção de documentos e de utilização de benefícios públicos etc.). No segundo caso, a leitura e o acesso ao conhecimento guiam-se pelo prazer: ler um romance ou um gibi, ver um filme, ouvir música.

Em ambos os casos, é preciso que haja uma decisão, movida pela necessidade. Apesar do caráter positivo da leitura como marca simbólica da sabedoria, na prática não existe a exigência de bom funcionamento das bibliotecas. Se elas deixassem de existir, não haveria comoção, como no caso do fechamento de um posto de saúde. A informação não é percebida como um instrumento fundamental de sobrevivência; e na perspectiva do lazer, outros existem, muito mais emocionantes para a sensibilidade condicionada do público. Há uma tendência romântica de identificar os operários e todos aqueles que integram o bloco dos assalariados como seres carentes de informação e que manifestam essa necessidade: basta abrir bibliotecas para que o público apareça. Ou, como foi sugerido, se os patrões concedessem um horário para leitura, o operariado mergulharia nos livros. Visão distorcida por lentes que mais refletem o desejo de quem vê do que a realidade analisada. As bibliotecas estão cheias de escolares copiando enciclopédias. O público adulto é minoria.

Acredita-se, talvez, que o baixo índice de leitura possa ser atribuído às precárias condições das bibliotecas: nada de útil ou de agradável poderia ser encontrado lá. Outros acham que a população, premida pelas condições subumanas em que vive, não tem e não pode ter condição de se agarrar à leitura, seja para o que for. Esses são dois fatores consideráveis mas não únicos. O brasileiro pouco lê porque foi condicionado a isso. Criou-se um estado de anorexia da informação: aquilo que as pessoas recebem ao ligar o rádio ou a televisão é o que basta. E o que vem através desses veículos dá as respostas necessárias. A dúvida é irrelevante, pois a credibilidade que se atribui a eles é forte. Não há conflito. A novela conduz suavemente e a leitura, quase sempre, é uma sobrecarga que exige decisão e persistência de quem já está cansado.

Nesse sentido, uma questão fundamental aparece: as bibliotecas, como centro de informação da coletividade, devem apenas atender à demanda informativa? Se o público é restrito e com um perfil claramente determinado em termos de exigência, a biblioteca deve direcionar as suas atividades para essa demanda? No outro extremo, sendo heterogêneo o meio, reunindo classes sociais diferentes e vários níveis de escolaridade (inclusive nenhuma), a biblioteca perderá a idéia tradicional de oferecer o que o público pede, pois os pedidos são exíguos e, às vezes, desconcertantes. Daí surge a dúvida: se houver atendimento à demanda, serão dadas respostas às necessidades do meio? Enfim, o que o público quer é exatamente aquilo de que ele precisa? Se o desejo não coincidir com a necessidade, o que deverá ser feito?

Existem dois caminhos que refletem posturas políticas nítidas. De um lado estão os "autoritários" e do outro os "basistas". Estes pregam a discussão e a votação, respeitando-se os resultados; já aqueles, entendendo saber mais, tomam decisões pelos outros êxitos e fracassos acontecem dos dois lados. Como possibilidade salvadora, circulando entre esses dois pólos, surge a relação de diálogo que, no entanto, alguns acreditam ser uma forma extremamente sutil e perversa de persuasão ou um simples disfarce de "autoritarismo".

Aplicando-se esse enfoque às bibliotecas, seriam encontrados acervos que se formam e se ampliam através da demanda e acervos constituídos pela visão do responsável por sua seleção. Entre esses pólos está a ação do bibliotecário dialogante, que molda a biblioteca a partir da sua relação com a cidade ou o bairro. No caso do "basismo", haveria um risco óbvio: ao atender aos desejos da coletividade, a biblioteca apenas reforçaria a demanda viciada de informação, fortalecendo o fluxo já estabelecido que faz com que o público só tenha acesso a informações que reforçam o seu papel na sociedade, como faz a chamada indústria cultural. Operários, por exemplo, só obteriam informações que os transformassem em bons operários. Já no caso do "autoritarismo", os referidos operários poderiam entrar em contato com obras que nunca desejaram e que, no entanto, poderiam alterar a sua visão de mundo.

Discutir/criar/informar

A quebra desse movimento pendular e da rejeição de diálogos sedutores é a abertura da biblioteca como espaço de discussão sem dirigismos. Os temas de debate deverão ser detectados pela capacidade de leitura da sociedade, pela sensibilidade em relação aos sinais da população, pelo conhecimento da história do país e do local, pela capacidade de perceber os movimentos culturais. Podem ser temas que afetem o conjunto da população ou que mobilizem setores restritos, nacionais ou circunscritos ao município, discutidos por estudantes ou por donas de casa, por professores ou por analfabetos... A forma mais usual e de maior alcance é a exposição e o debate, de preferência com a formação de pequenos grupos. Antes e depois dos debates, as informações sobre o assunto ficam disponíveis, de maneira visível e estimulante. Desse modo, se o tema for as reivindicações da mulher, livros, revistas, jornais, filmes e tudo o que for possível devem ficar à disposição dos interessados. Assim é feita uma ponte entre a informação e a reflexão, levando esta a exigir constantemente o acesso a novos conhecimentos. É um processo sem fim como o próprio ato de conhecer. O importante nos debates é que haja liberdade total de opinião, mesmo que ela não coincida com a nossa.

Criar/informar/discutir

A prova dos nove do trabalho cultural é a criação, a capacidade de inventar um novo discurso. A ordem no corpo social é rígida, com a sua essência encouraçada, ainda que dê a impressão de uma mutabilidade moderna. As amarras da ordem nem sempre são mantidas pela força explícita mas pelo controle ideológico àquilo que parece ser mas não é, ou que é mas não demonstra. As atividades culturais, como a escola, a religião, podem ser caracterizadas como elementos reprodutores de homens bem adaptados às regras que existem (e não a outras que poderiam existir). Há uma cultura de sustentação e outra de desordem, sem que se perceba um meio-termo. A primeira cria condições de manutenção das regras e procedimentos existentes como normais, e a segunda contradiz o que está estabelecido. As bibliotecas podem ser, também, de sustentação (atendendo à demanda) ou de conflito (criando demanda). No primeiro caso, elas vão a reboque de outras instituições; no segundo, a partir do conhecimento do meio, elas se contrapõem, buscando criar uma nova demanda. Isso pode ser realizado a partir da chamada "ação cultural", essa que não acomoda, mas incomoda, que não é lazer, mas contradição, que não repete, mas inventa. Ela agride as couraças dos homens e da sociedade, introduzindo elementos inventivos da desordem, possibilitando um repensar contínuo.

Os três verbos - informar, discutir e criar - são indissociáveis do ponto de vista político. Separá-los, isolando-os, é quebrar a ação íntegra da transformação. A biblioteca pública é, hoje, a unidade cultural mais freqüente no país, ainda que centre sua ação quase exclusivamente no texto literário. Agora, não só se abre para outros meios de informar como parte para a discussão sistemática das informações (tanto as registradas como aquelas da memória), para poder chegar à criação de uma nova informação. O que faz com que se feche o círculo.

Rever

Para ser vitalizado, o espaço biblioteca deve buscar o reconhecimento público. Para isso, é preciso firmar dois princípios: ser reconhecidamente útil e necessariamente prazerosa. A utilidade será dada pelos serviços informativos, e o prazer, pela fruição dos bens culturais e pela convivência. Biblioteca é lugar de encontro. A industrialização, inclusive da cultura, tornou os homens impessoais (sozinhos na multidão) e domesticados. A convivência é uma alternativa, uma nova tribalização que abre o homem para os outros homens, no tempo e no lugar. O acesso à informação pode ser impessoal; a discussão, jamais. E a criação é a plenitude do gesto de comunicar tornar comum.

Para que essa biblioteca exista, é fundamental que haja a decisão política de concretizá-la por parte dos dirigentes esclarecidos. O empreendimento é barato, comparado, por exemplo, ao preço do asfalto das estradas, e deve estar incluído nos orçamentos municipais. A população pode e deve acompanhar o cotidiano desse serviço, organizando-se em associações ou conselhos - desde que isso seja uma iniciativa dela.

O sentido da biblioteca surgirá claro ao tornar livre o acesso a todo o conhecimento - sem travamentos. Ela poderá ser arma ou alavanca, permitindo ao cidadão, possuidor de voz própria, mover-se e mover.

Luís Milanesi é professor da Escola de Comunicações e Artes/USP. Implantou e dirige o Sistema de Bibliotecas Públicas na Secretaria de Estado e Cultura.